Crônica

Que merda, minha gente

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Que merda, minha gente

O Fischer me pede um artigo sobre o Quilombo dos Palmares. Sim, o Quilombo dos Palmares existe e eu estive lá.

Já conto. Só preciso pular esse esgoto aqui.

Estou em Maceió. Pela primeira vez. Num resort na praia de Jatiúca. Não sou de ficar em piscina de hotel. Gosto de banho de mar. Gosto de me esfregar no planeta.

Há muitas embalagens plásticas na água. Faço questão de arremessá-las de volta à areia. Imagino que seja lixo da praia que rolou para o mar. Coisa de turista porco. Me divido entre pegar jacarés e caçar sacolas, tubos, copos e garrafas. As únicas coisas que podem boiar sobre aquele oceano divino somos eu e meus filhos.

Quase ninguém no mar. Como a turma pode ficar indiferente àquelas águas verdes e cálidas, num dia perfeito como esse? 

Então, à tardinha, em nosso segundo dia no paraíso, proponho que caminhemos pela praia. É coisa de que gosto. Andar sobre a marola, sentindo as ondas me engolirem os tornozelos. Sob o sol do fim do dia, que bronzeia gostoso, sem machucar. Quem sabe conseguimos ir até Ponta Verde?

Em trezentos metros, um enorme cano joga esgoto in natura na praia. Um córrego escuro escava a areia e desliza fétido para as águas. Um fluxo manso, ininterrupto, cínico. Litros inesgotáveis de nojo. Bem ao lado de onde, há dois dias, venho me banhando com a família. 

Paramos. Chocados. Agredidos. Era impossível cruzar aquele riacho de imundícies. E eu percebi que já tinha me banhado nele. Que meus filhos já tinham tomado goles daquilo numa ou outra onda mais ouriçada que lhes pegara de frente. 

Caminhamos para o lado oposto. Em direção à Cruz das Almas. (Nome adequado.) Fugindo do horror. Quem sabe aquela era uma excrescência isolada, uma exceção ao padrão sanitário dos alagoanos? Então encontramos outra fossa. Do mesmo calibre. Estávamos cercados. Na orla que dizem ser a mais bonita entre as capitais nordestinas, a cada trezentos metros, rigorosamente medidos, você encontra uma cloaca – quente, azeda, orgânica, pulsante – na qual se lambuzar.

Voltamos ao nosso hotel chique. Me sinto um idiota. Pagando caríssimo para chafurdar na merda. Ou então para sentar defronte a uma das praias mais bonitas do país, tendo que guardar distância dela, porque tudo ali é insalubre. Se é para olhar de longe, eu não precisava ter vindo até aqui.

Me vejo, ainda agora, catando lixo e imaginando que se tratava de restos de piquenique esquecidos na areia por famílias distraídas ou casais afogueados. Ou galgando ondas com meu surfe de peito, e imaginando que elas fossem feitas de água marinha. Me dou conta de que investi alguns milhares de reais – as economias de um ano – para estar ali. Que grande imbecil.

O modelo brasileiro de egoísmo radical é tão deletério que chegamos a isso: você tem, mas não pode usufruir. A gente não zela pelo que é de todos, só nos interessa o que é somente nosso. Nosso desprezo pela coletividade é tão grande que acaba nos atingindo no que é particular. Não cuidamos da água e do esgoto, porque são públicos – só nos preocupamos com aquilo que é privado. 

Então urinamos na água que todos bebem. Defecamos na água em que todos se refrescam. É como se aquilo não fosse nosso, e não nos dissesse respeito – simplesmente porque é também dos outros. Desde que estejamos do lado certo do muro do condomínio ou do resort, a gente não dá a mínima.

Mas eu ia falar do Quilombo dos Palmares. Sim, o Quilombo. Já falo dele, Fischer. Só preciso terminar de pular esse esgoto aqui.

Será que tínhamos errado de praia? Não. Dez dos 15 pontos de banho em Maceió estavam impróprios ao banho – com mais de 2 000 Escherichia coli por 100 mL. (Caramba, é isso que os caras vendem. É isso que eles oferecem. Como podem tratar assim seu produto? Como podem tratar assim seu cliente?)

Duvido que o próprio hotel tratasse seu esgoto. Ou seja: estávamos pagando caro para ajudar a emporcalhar uma praia que estava em nosso pacote e que não podíamos usar exatamente por estar emporcalhada.

Será que tínhamos errado de capital no Nordeste? Não. Em Fortaleza, 23 dos 33 pontos de banho estavam interditados. Salvador tinha 36 praias impróprias.

Será que tínhamos errado de região no Brasil? Não. Em Florianópolis, metade das 42 praias estava sem condição de banho – a cidade tinha decretado um surto de diarreia. (Que merda, minha gente.) No Rio, dos 37 pontos monitorados, 14 estavam contaminados.

E não pense que nas praias consideradas próprias não havia coliformes fecais, enterococcos, estafilococcos, e toda sorte de vírus, bactérias, fungos e protozoários sebentos. Fugimos para a Praia do Gunga e para a Praia do Francês, ao sul de Maceió – e estou convicto de que não havia saneamento básico nem tratamento de esgoto por lá também. 

Do Leme ao Pontal, da Praia do Cassino à Ilha de Marajó, o litoral brasileiro tem uma constante: microrganismos patogênicos à farta. Só o que varia é se esses elementos cocozildos e remelentos estão mais concentrados ou mais diluídos, a depender do dia, do vento, da maré, das chuvas ou da sua sorte (ou azar) como banhista.

Como resultado, ficamos todos doentes. Um a um, por vários dias. Provavelmente, sucumbimos ao norovírus – um sujismundo que adora os mesmos ambientes espúrios que nós, brazucas praieiros. Em Floripa, há quatro anos, as crianças também tinham ido parar no hospital. Será que é isso – veraneio brasileiro bom tem que incluir náusea, vômito, febre, churrio e uma noite no pronto-socorro?

Com mil penicos – será que tínhamos errado de país?

Ah, sim. O Quilombo dos Palmares. Com a interdição da nossa praia, no segundo dia da temporada, ficou fácil contratarmos o passeio até a Serra da Barriga, a 90 km de Maceió. 

No início do Século 17, uma congolesa chamada Aqualtune fugiu com quarenta companheiros de escravidão, subiu por um rio na então Capitania Hereditária de Pernambuco, hoje estado de Alagoas, e fundou o Quilombo dos Palmares. (Como se vê, The Woman King aconteceu de verdade no Brasil.)

Mãe de Ganga Zumba e avó de Zumbi, Aqualtune foi a primeira mulher a liderar essa espécie de cidade-estado, que chegou a acolher 20 mil pessoas (mais de três vezes a população do Rio de Janeiro à época) e que resistiu por 130 anos aos ataques dos homens brancos proprietários de terras e de pessoas – esses mesmos que ainda estão por aí emporcalhando as praias.

Ao chegar ao Quilombo, hoje um Parque Nacional (que precisa de visitas como a sua para justificar sua manutenção), você será recebido pelo guia Mano Gill e por um time quilombola, com jogo de capoeira, banho de cheiro, um tiro de xequeté (um chá típico), além do mergulho numa certa história do Brasil que o Brasil prefere ignorar. 

Há uma árvore por lá que, segundo dizem, é anterior à invasão do Quilombo pelo bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, em 1694 – Zumbi seria capturado e morto no dia seguinte, decapitado, e sua cabeça seria exposta em Recife. Veja: conhecer mais a fundo o passado significa também pular um esgoto – uma das tantas bocas de lobo escancaradas em nossa história.

Por fim, o argumento definitivo para que você coloque o Quilombo dos Palmares no seu bucket list: encerrar o passeio no restaurante Baobá, de Mãe Neide. Cozinha quilombola autêntica, de raiz, de roça, de encosta de Serra, telúrica, com alma, como você quiser chamar. Apenas vá. 

De alguma maneira, tanto em Maceió, quanto no Quilombo, tivemos contato com o que o Brasil tem de melhor – e de pior. Em contraste vertiginoso.

Sou grato pelas tapiocas, acarajés, macaxeiras, queijos coalhos, caldinhos, farofas, cocadas e castanhas. Trouxe na boca o gosto bom dos sucos de caju e graviola, das águas de coco, das caipirinhas.

O Brasil como ele é – uma realidade. E o Brasil como ele poderia ser – um sonho. O nosso pêndulo.

Saravá, Fischer.


Adriano Silva é jornalista, fundador e publisher do Projeto Draft, plataforma de jornalismo de negócios lançada em 2014 que se dedica a cobrir o avanço da inovação e do empreendedorismo no Brasil. Desde 2019, mora em Toronto, onde está lançando o Draft Canada. Adriano foi diretor de Redação da revista Superinteressante, na Editora Abril, e chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo. É autor de nove livros, entre eles os memoirs A República dos Editores (2018) e Treze Meses Dentro da TV (2017), e a trilogia do Executivo Sincero.

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