Crônica

Relatos e retratos de museu

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Relatos e retratos de museu

Levei um grupo de pessoas para visitar o museu Fernand Léger/André Mare. O museu é casa de infância de Fernand Léger, um dos motivos que faz a pequena Argentan celebrar o artista. André Mare era amigo de Léger, poeta que também é comemorado pelos argentaneses. O grupo que está comigo é de gente que nunca, ou quase nunca, entrou em um museu, pessoas que pouco tiveram contato com escola, que pouco se organizam nas tarefas quotidianas e que precisam de assistência social nas questões que envolvem seus filhos, suas contas, seus papéis administrativos. No trabalho que desenvolvo encontro situações diversas, níveis sociais muito distintos. E esse grupo tem como aspecto comum a diversidade de condições precárias que os unifica. 

Vamos a eles.

A senhora N. chegou na França em 1982, fala francês com certa desenvoltura e compreende bem. Mas N. nunca foi alfabetizada e precisa da oralidade para se sentir participativa e incluída. A vida social de N. é restrita ao grupo familiar e ela impõe resistência ao convívio em sociedade. Para que participe de maneira frequente às aulas é necessário um esforço enorme da parte dela. Tem vezes que preciso ligar para saber como ela está, que preciso reforçar o convite a fim de entender se ela virá ou não. As faltas se repetem e não sei quanto tempo N. vai levar para conseguir uma certa autonomia. Eu nem sei se ela vai ter autonomia algum dia nessas questões relativas à formação que desenvolvo, essa é a verdade. Afinal, são mais de quarenta anos de pouca mudança na condição pessoal. Para que ela viesse ao museu, telefonei. Ela atendeu com a voz fraca, me disse que estava mal e que uma tosse a incomodava. Eu disse que entendia e que ela podia descansar. Vinte minutos depois ela apareceu no endereço da associação em que trabalho. Estava pronta para fazer a visita, mas reclamando de dores e dizendo precisar de um médico.

O senhor S. é nigeriano, não consigo saber que idade tem. Eu diria entre cinquenta e sessenta anos. Mas é um homem maltratado, sem quatro incisivos frontais, sempre a mesma jaqueta fina de nailon, no frio ou no calor. Seu idioma é o hauçá. E a língua francesa, mesmo depois de muitas aulas, é bastante difícil para ele. S. tem dificuldades para associar imagens e textos, não compreende exercícios em que se precisa ligar pontos, tem grande problema na compreensão de linhas e colunas. Mas S. me espantou algumas semanas atrás quando, mesmo sem saber falar árabe, começou a redigir de maneira automática as palavras do corão. Ele escreve ainda que sem compreender o que ali pode ser lido. Um movimento de repetição decorado e mecanizado. Mesmo os outros colegas muçulmanos se intrigaram com o que fez S. para demonstrar essa, para mim, estranha capacidade. Os filhos de S. não são bons alunos para o modelo francês, faltam aulas constantemente. Eu sei disso porque ele recebe ligações quase todos os dias em que estamos juntos e o telefone toca alto, ele deixa no viva-voz. A pessoa do outro lado fala como se ele compreendesse tudo, sem muita paciência. É da escola, é quase sempre da escola, posso dizer com certeza.

O senhor A.Q. é outro homem que nunca aprendeu a ler nem a escrever no seu idioma natal. Nunca compreende o que digo. Não, minto, compreende quando ligo e digo que ele deve vir agora. “Sim, senhor A.Q., agora. Pode vir agora?” E ele vem. Aí eu atualizo seus dados administrativos, pergunto se tudo vai bem. Às vezes A.Q. me traz bolo como forma de agradecimento. “Bonjour, monsieur Angélo!”. Aqui sou Angélo, e não Ângelo. Na visita ao museu, o senhor A.Q. é o mais distanciado, dorme. Ele não pode dar atenção à mediadora cultural, que preparou um material bem simples e explica com muita paciência. Não adianta, A.Q. se senta em algum canto e cochila. Me pergunto: como ele poderia dar atenção aos quadros, às fotografias? Como ele poderia se interessar pela história que remonta à Segunda Guerra Mundial? Eu sinceramente acho que ele não poderá. A luta de A.Q. é dizer uma simples frase, uma frase que sua língua (e aqui falo do órgão de seu corpo) não obedece. Lábios e língua não entram em sintonia para que eu compreenda A.Q. Ele está cansado, posso ver que sim quando procuro por A.Q. nos cantos do pequeno museu a cochilar.

Esse grupo, como eu já disse, tem a senhora N., tem o senhor S. e também o senhor A.Q.; mas estão comigo mais pessoas. E a particularidade que os unifica é o fato de estarem à margem da sociedade, são os estrangeiros que os outros estranham. Então o que pode ser feito são oficinas e encontros em que haja um mínimo de interação visual, manual, oral. Dar atenção e pedir atenção, insistir para que tentem repetir o que está sendo mostrado. “Entendeu?”. Um silêncio. “Pode repetir, por favor.” Outro silêncio. “Como?” Grande silêncio.

Já disse que o Museu Fernand Léger/André Mare é uma casa, casa de infância de Fernand Léger. E dentro de um museu nós sabemos que fica conservada uma memória que presta favor ao coletivo. Os dois artistas que dão nome ao espaço que visitei nos remetem a momentos correspondentes às suas vidas nas décadas de 30, 40 e 50, principalmente. E desses dois artistas ramificam-se noções de movimentos artísticos, expressões que remontam a anos difíceis na França e também a anos de reconstrução. Na visita vemos arte impressionista e cubista. Em desenhos e formas arquiteturais percebemos o estilo art nouveau, formas que eram consideradas escandalosas no seu tempo. Vemos cadernetas de guerra com desenhos de camuflagem, autorretratos, fotografias. 

Mas o que mais ficou registrado na memória desse dia foi perceber que nada disso faz muito sentido. A principal memória da minha visita – os quadros que vi pintados e que não estavam nas paredes – são a senhora N., o senhor S., senhor A.Q. e seus colegas.


Ângelo Chemello Pereira é um brasileiro que vive na França, edita a Revista Parêntese e retrata seu ambiente em imagens e palavras.

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