Crônica

Revolução digital na Copa da França

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Revolução digital na Copa da França

Em maio de 1998, quando eu recém havia retornado da temporada de sete meses como correspondente da Folha de S. Paulo em Buenos Aires, o jornal decidiu que ousaria ao ser pioneiro numa cobertura online, que abastecesse o UOL e a Agência Folha. O repórter a quem coube essa honraria fui eu. Durante 40 dias, tive o prazer de ser protagonista numa revolução digital, cobrindo jogos em cidades como Paris, Nantes e Marselha. Foi a Copa em que Ronaldo Fenômeno teve o famoso apagão na final vencida pela anfitriã. Passado quase um quarto de século daquele evento marcante, aproveitando que tive a cobertura toda impressa pela minha esposa, a também jornalista Dione Kuhn, reuni as reflexões sobre aquela esquina da História, acompanhadas de reproduções das notas, para perenizar esse riquíssimo material em livro. Veja a seguir trecho desse trabalho, que está em fase de impressão na gráfica e será lançado durante a Copa do Mundo do Catar. O livro sai pela editora AGE e terá versões em e-book e impressa. Em breve estará no varejo.

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Foi, sim, uma revolução a que ocorreu no final dos anos 1990, e aquela Copa do Mundo dividiu as águas caudalosas da tecnologia e da forma de informar. Apenas 10 anos antes, espaço extremamente exíguo em termos de História, nem telefone móvel era usado de forma massiva. Dependíamos dos telefones fixos analógicos. Apenas uma década depois, na Copa da França, os repórteres fotográficos enviavam a imagem às redações instantaneamente, de dentro do campo, pelo celular. As imagens iam pelo ar, viajavam milhares de quilômetros! Pode parecer algo trivial para você nesta terceira década do terceiro milênio. Mas, naquele momento, era uma mágica estonteante. E, como em toda revolução digna desse nome, em decorrência dessas alterações, outras ocorreram nos costumes.

O mundo se tornou outro.

O jornalista, escritor e professor da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) Eugênio Bucci, em conversa com este autor, pontuou certa vez uma série de alterações que o mundo digital opera em nosso cotidiano. As mudanças vertiginosas ocorrem na rapidez do processo informativo, mas também na facilidade de manuseio. E Bucci fala sobre a nova ética que se exige diante desse fenômeno. Se nos primórdios da imprensa surgiu a necessidade de códigos reguladores da atividade jornalística, agora o usuário da internet precisa também arcar com as novas exigências comportamentais. A instantaneidade por trás de uma máquina mascara o fato de que o meio até pode ser digital, mas as pessoas que se utilizam dele ou que dele são alvo nunca deixaram de ser reais. A magia de estar viajando o mundo dentro do próprio quarto por vezes tira das pessoas a noção dos seus atos. “A resposta para resolver isso passa pela regulação”, enfatiza Bucci, autor de A Superindústria do Imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível (Autêntica, 2021) e de Existe democracia sem verdade factual? (Estação das Letras e Cores Editora, 2019).

O jornalismo vive um enorme paradoxo no momento em que a internet mudou a dinâmica da transmissão de informações, e fatos se misturam com meias-verdades e inverdades, a ponto de Bucci dizer que “a informação é menos abundante que a desinformação”. A profissão, como negócio, enfrenta a pulverização da publicidade e a redução dos ganhos financeiros; na sua essência, porém, a rapidez, a superficialidade e por vezes a leviandade da internet aumentam a necessidade de o jornalista se qualificar no conteúdo (precisão), na forma (textos de excelência) e na credibilidade (o público sabe filtrar o que é confiável). 

Em uma analogia com a matemática, é como o número que se contrapõe ao zero (quando a imprensa surgiu como ferramenta de informação diante da ausência de alternativas) e o número que precisa ser mais robusto por se contrapor à desinformação (ao número negativo das fake news). Logo, o desafio é ainda maior, e o compromisso se torna mais crucial. O número positivo se opõe à negatividade da poluição verbal inconfiável, por vezes leviana, muito em especial na terra sem lei do espaço virtual. 

O problema é tão gritante, que em março de 2017 a ONU (Organização das Nações Unidas) divulgou declaração afirmando que as notícias falsas e a desinformação se tornaram uma ameaça global. Nunca foi tão fácil acessar a informação, mas nunca foi também tão fácil se informar de forma equivocada.

Bucci costuma lembrar o livro Protocolos dos sábios do Sião, “uma calúnia notória, uma infâmia a serviço do antissemitismo mais baixo”, para mostrar como as notícias falsas são antigas e como elas podem provocar tragédias – o Protocolos serviu de base para o nazismo e o Holocausto. A diferença, atualmente, é que a propagação de conteúdos tem difusão extrema. 

Pilares básicos do Jornalismo precisam ser tema de aprofundamento. Basicamente, deve-se ter no horizonte que a atividade jornalística busca a verdade objetiva, lembra Bucci, que sublinha a necessidade de diferenciar o que é fato do que é opinião. Vale a velha lógica de que, se você abre a janela de casa e vê que o céu está azul, deve escrever que o céu está azul. Entra aí uma questão muito atual. O negacionismo que defende teorias terraplanistas, delírios criacionistas e absurdos como negar o Holocausto ou dizer que o nazismo é de esquerda não pode ser levado a sério a ponto de se beneficiar de um pluralismo hipócrita e preguiçoso. Exemplo: deve-se “ouvir o outro lado” quando se fala na esfericidade da Terra?!

A própria rapidez da notícia, por vezes instantânea, exige do jornalista hoje uma destreza superior à de antigamente. Foi-se o tempo em que o repórter poderia ser bom investigador, mas ruim de texto. O jornalista hoje precisa ser completo, precisa ter aquilo que chamávamos de “texto final”, ou seja, o texto que chega ao editor já pronto para a publicação. A figura do copidesque se tornou obsoleta. Em outras palavras: profundidade, qualidade e credibilidade. O jornalista está exposto e precisa se diferenciar no pântano da (des)informação.

No Dia Mundial da Notícia, em 28 de setembro, há uma tradição de alguns jornais publicarem reflexões sobre sua atividade e os impactos que dela derivam. No ano de 2022 em que este livro está sendo escrito, o tema foi “Jornalismo faz a diferença”. Muito apropriado e oportuno, quase um slogan neste momento em que o mundo ainda vive a pandemia do coronavírus ao mesmo tempo em que vê a proliferação das chamadas fake news (“notícias falsas”), o que é uma contradição em si, porque, se é notícia, necessariamente não pode ser falsa e de governos negacionistas, de extrema direita, inclusive no Brasil.

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