Crônica

S. e R., os Irmãos H.

Change Size Text
S. e R., os Irmãos H.

Os Irmãos H. são vindos da Síria. Os dois, S. e R., são gêmeos. E a história deles, que tem a ver com o Brasil, é um tanto fora do comum. 

Em geral, quando tenho alunos refugiados da guerra civil síria – gente perseguida, torturada, pessoas que se recusaram a pegar em armas pelo exército do ditador Bachar el-Assad – o percurso deles, antes de entrar na França, é traçado pelos territórios vizinhos da Líbia, da Turquia, do Egito. 

Mas o caso dos irmãos H. é outra coisa. Eles decidiram pegar um avião e entrar na França através do Brasil.

Quando um deles me disse, “Bom dia, tudo bem?”, eu fiquei um tanto surpreso. Não acontece isso normalmente por aqui com os arabófonos. Os sírios não arranham a nossa língua portuguesa a ponto de tecer uma frase como me dirigiu S. Aí fui descobrir que os Irmãos H. estiveram antes em São Paulo, depois em Brasília, depois subiram até o Amapá. E no Amapá, em Oiapoque, cruzaram a fronteira para alcançar a Guiana Francesa.

Uma coisa que suponho, afinal eles pegaram o avião para cruzar o Atlântico, é que S. e R. tinham uma boa reserva financeira. E com essa reserva permaneceram um ano inteiro no território brasileiro. Dentro do Brasil fizeram uma aventura, que foi a maluquice de cruzar o nosso país – meu e teu, leitor, leitora – através das estradas que rasgam a Floresta Amazônica. As marcas nas suas peles guardam as recordações das picadas de insetos que o Brasil esconde no seu ambiente tropical. Um percurso muito difícil, eles dizem. 

– É muito complicado por lá – me confirma S. ao mostrar a imagem do tradutor em seu telefone. 

– Impossível permanecer tranquilo, tem muita pobreza – traduz também R..

Depois da entrada na Guiana Francesa, uma série de broncas precisaram ser resolvidas. Até porque pisar no território francês ultramarino (a France d’outre-mer) é bem diferente de chegar diretamente ao território metropolitano (a France metropolitaine). Por mais que digam que é a mesma França, no fundo o tratamento é outro. 

Assina aqui? Assino. 

Comprova ali? Comprovo. 

Dá entrevista! 

Entrevista de novo pra ver se não entra em contradição.

“Por quê?” uma vez.

“Por quê?” de novo.

“Por quê?”, “Por quê?”, “Por quê?” sem parar. 

O que eu sei é que agora eles estão aqui em Argentan. Uma vida mais estável que antes, uma rotina de aulas de francês que é quase diária. Há sem dúvida mais sossego e estabilidade que a saga no trajeto brasileiro. Só que a reserva financeira, aquela que os levou à América Latina, essa eu acho que terminou. E por isso os Irmãos H. estão ainda na luta. Parte dessa luta, eu posso afirmar, é com a papelada que comprova que eles existem. Quer saber por quê? Quer que eu conte?

Pois é assim: S. e R. possuem nomes bem similares. A diferença é de apenas uma letra, a inicial. Seria algo como Paulo e Saulo; ou então como Raul e Saul, compreende? Esse fato de terem o mesmo sobrenome e apenas uma letra diferente na grafia do nome gerou um problemão administrativo. Não sei se o sistema – a tal combinação de algoritmos – entendeu que a troca da letra era uma falha de digitação. No fim, essa leitura equivocada da tecnologia resultou em uma confusão de registro: os Irmãos H. são vistos como um só pelo governo francês. 

Consequência: toda a ajuda financeira que eles receberiam para sobreviver como dois (até aprenderem a língua e conseguirem viver com autonomia para encontrar um emprego) está reduzida a um. Por isso os gêmeos se viram entre eles como podem. Além disso, ainda precisam contar com a boa vontade dos outros para leitura dos papéis, para preenchimento de fichas, para orientações básicas.  

Como um caso desses é pouco comum, a demora existe. Então é necessário uma enorme dose de paciência. E, é claro, a confiança de que a letra que diferencia seus nomes possa melhorar as coisas por aqui.


Ângelo Chemello Pereira é um brasileiro que vive na França, mestre em literatura, hoje além de retratar seu ambiente em imagens e palavras dá aulas de francês para estrangeiros.

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.