Crônica

Sem a ponta dos dedos

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Sem a ponta dos dedos Eu não tenho mais condições de lembrar de uma frase que o estudante Z. me mostrou dois dias atrás no seu telefone celular. Ele veio até mim com a tradução do árabe para o francês e eu li rapidamente até que ele me fez um gesto mostrando a mão direita com dois dedos amputados. Amputados na verdade é uma palavra inapropriada para o que se precisa dizer. Z. teve parte do dedo médio e parte do dedo indicador arrancados. Depois que me mostrou os dedos para justificar algo que ele não conseguia fazer com as mãos, esse aluno me gesticulou mais uma vez. Agora sua atitude, um tanto brusca, se deu cruzando os dois antebraços e me informando que isso foi na prisão, na Síria. Os braços cruzados indicam a detenção, eu já conhecia o gesto por conta de um outro sírio que também foi perseguido naquele país. Dá pra entender a tortura? Tortura.  Que palavra mais difícil. Esse aluno torturado é um homem casado, é pai, me contou ter sido dono de um restaurante, hoje está em Argentan, aqui na França, com a sua companheira. Esse homem foi preso e na prisão tiraram à força duas partes do seu corpo. Eu não sei como, eu não sei por quê. O que eu sei é que Z. tem dificuldades para pegar a caneta, é ruim para ele fazer uma atividade manual. Faz um certo tempo que nos encontramos pela primeira vez, mas eu nunca havia me dado conta de que ele tinha passado por algo desse tipo. Eu já tinha notado uma dose de agressividade no seu rosto, uma certa força, um tanto assustadora. Mas eu nunca tinha percebido que havia resquícios de tanta brutalidade nas suas mãos. Me lembro agora que algumas semanas atrás estivemos numa exposição de arte. Ele se sentou em um banco e ergueu uma das pernas para repousar. Eu nunca tinha entendido qual a razão de sua perna precisar de tanto descanso. Z. não usa muletas, ele dirige. Só que em certas ocasiões ele sente muita dor, tanto que não sobe as escadas, prefere o elevador. Muitas vezes esse homem passa um tempo confortando seu joelho nos aquecedores da calefação. Pois foi lendo o texto no seu telefone que eu percebi que além das partes dos dedos que faltam, fizeram alguma coisa com sua perna. Por conta dessa mesma prisão em que ele esteve na Síria, Z. me disse aos gestos que realiza infiltrações constantes para se aliviar de uma dor que eu não consigo sequer imaginar. O que será que foram capazes de fazer? Escrevo para lembrar que dou aulas e convivo com pessoas que passaram por momentos de extrema violência.  Argentan (França), 2 de dezembro de 2022.

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Eu não tenho mais condições de lembrar de uma frase que o estudante Z. me mostrou dois dias atrás no seu telefone celular. Ele veio até mim com a tradução do árabe para o francês e eu li rapidamente até que ele me fez um gesto mostrando a mão direita com dois dedos amputados. Amputados na verdade é uma palavra inapropriada para o que se precisa dizer. Z. teve parte do dedo médio e parte do dedo indicador arrancados. Depois que me mostrou os dedos para justificar algo que ele não conseguia fazer com as mãos, esse aluno me gesticulou mais uma vez. Agora sua atitude, um tanto brusca, se deu cruzando os dois antebraços e me informando que isso foi na prisão, na Síria. Os braços cruzados indicam a detenção, eu já conhecia o gesto por conta de um outro sírio que também foi perseguido naquele país. Dá pra entender a tortura? Tortura.  Que palavra mais difícil. Esse aluno torturado é um homem casado, é pai, me contou ter sido dono de um restaurante, hoje está em Argentan, aqui na França, com a sua companheira. Esse homem foi preso e na prisão tiraram à força duas partes do seu corpo. Eu não sei como, eu não sei por quê. O que eu sei é que Z. tem dificuldades para pegar a caneta, é ruim para ele fazer uma atividade manual. Faz um certo tempo que nos encontramos pela primeira vez, mas eu nunca havia me dado conta de que ele tinha passado por algo desse tipo. Eu já tinha notado uma dose de agressividade no seu rosto, uma certa força, um tanto assustadora. Mas eu nunca tinha percebido que havia resquícios de tanta brutalidade nas suas mãos. Me lembro agora que algumas semanas atrás estivemos numa exposição de arte. Ele se sentou em um banco e ergueu uma das pernas para repousar. Eu nunca tinha entendido qual a razão de sua perna precisar de tanto descanso. Z. não usa muletas, ele dirige. Só que em certas ocasiões ele sente muita dor, tanto que não sobe as escadas, prefere o elevador. Muitas vezes esse homem passa um tempo confortando seu joelho nos aquecedores da calefação. Pois foi lendo o texto no seu telefone que eu percebi que além das partes dos dedos que faltam, fizeram alguma coisa com sua perna. Por conta dessa mesma prisão em que ele esteve na Síria, Z. me disse aos gestos que realiza infiltrações constantes para se aliviar de uma dor que eu não consigo sequer imaginar. O que será que foram capazes de fazer? Escrevo para lembrar que dou aulas e convivo com pessoas que passaram por momentos de extrema violência.  Argentan (França), 2 de dezembro de 2022.

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