Crônica

Seria demais

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Seria demais

Se você é do tempo em que Porto Alegre era demais e a gente queria mesmo era ir-pra-Porto-e-bah-tri-legal, então você vive a saudade de uma cidade. Saudade da Porto Alegre que transformou uma velha chaminé em centro cultural. Da cidade que meio que inventou, no Brasil, a ideia estapafúrdia de que um trabalhador merece pegar ônibus com ar-condicionado e poesia. Da cidade que cuidava das suas lindas árvores como se fossem frágeis tesouros – o que elas de fato são. Como dói essa saudade quando a gente vê os monstrengos que sobem das entranhas das construtoras, atravancando o vento, o sol e as estrelas.  

Depois do temporal da terça-feira, 16 de janeiro, fiquei 67 horas sem luz e 103 horas sem internet. Como sei que tem gente em situação bem pior, ainda bate aquele constrangimento, como se não tivesse direito a me queixar. 

Sejamos justos: o problema não é só o prefeito Sebastião Melo. É a sucessão de péssimas escolhas dos eleitores nas últimas duas décadas, incluindo o atual. Não consigo esquecer do ex-prefeito Nelson Marchezan Júnior, em 2017, embasbacado com as modernidades do mundo civilizado. Postou vídeo e tudo. Imaginem, os pontos de ônibus de Paris tinham tomadas para carregar os celulares!! A pessoa ficava ali, aguardando o bus, e já ia carregando o gadget. Não era ótimo? (Sim, eu acho ótimo.) Por que ninguém tinha pensado em fazer isso no Brasil? Vamos implementar, ora essa. Dizem que a ideia só foi enterrada depois que a equipe deixou Júnior sozinho numa parada da avenida João Pessoa por cinco minutos, às nove da noite, como uma espécie de treinamento de príncipe sobre a rotina da plebe. (Mentira, essa última informação eu inventei. Mas que a cena é verossímil, é. Imagine os seguranças espalhados pela Redenção falando por radinhos que apitam enquanto monitoram quem se aproxima do Rodolfo Valentino – que também é um bom codinome. Me contrata, Jorge Furtado.)

Mas voltemos ao mundo real dos temporais, ciclones e downbursts. Lembram da noite de 29 de janeiro de 2016? Depois dela não foram 67 horas sem luz, foram 98. Centenas de árvores arrancadas como se fossem penugem. Os parques ficaram pelados. Janelas arrebentadas, caco de vidro por tudo que é lado. Um amigo viu dezenas de pessoas chegarem no hospital sangrando, algumas com cacos ainda fincados na pele. 

O prefeito da época, José Fortunati, estava de férias, “em uma embarcação no Oceano Pacífico” (achei chique). Sem problema: o cara tem direito a férias, e vice-prefeito é pra isso. E quem era o vice? Sebastião Melo. Lembro bem, ele aproveitou o vácuo e ocupou todos os espaços. Virou o rei do Twitter. Falava com a população, orientava, ia a todos os lugares. Quem trabalha com comunicação sabe que foi ali que Melo se afirmou como um gestor “presente”. E quem é Melo hoje? Um mandalete do setor privado. Deu chilique, indignado com a CEEE Equatorial – que, diga-se, assim que foi privatizada demitiu a rodo. Mas foi fotografado num restaurante, tomando espumante geladinho enquanto a gente bebia água quente e jogava fora a comida podre. 

Eu sei que não foi ele que privatizou a CEEE, que foi o Eduardo Leite. Mas ele teria privatizado, se fosse o governador. Melo segue a cartilha: sucateia até o limite, aí a população começa a achar que o serviço funciona mal, aí vende a troco de banana. Não foi assim com a Carris, sucateada até o talo e depois privatizada com apoio da nossa “grande imprensa”? Esse tipo de gestor gosta de demitir funcionário público, porque o que interessa é enxugar o estado, e contratar empresas terceirizadas. Todos os serviços de Porto Alegre são ruins: luz, água, esgoto, coleta de lixo. A cidade é suja, escura, insegura. 

O fato é que toda cidade precisa de gente pra cuidar de árvore, de fio, de buraco. Pessoas, seres humanos. Não máquina, não robô; gente. Porto Alegre precisa de um gestor que ame a cidade e suas lindas árvores. Nossa, isso seria demais. 


Marcia Benetti é professora titular do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

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