Crônica

Silenciados

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Silenciados

A parada na sinaleira impõe o encontro com os cartazes que declaram fome e pedem ajuda, com aquele que faz malabarismos em busca de algum trocado e com um exército circunstancial que distribui panfletos dos candidatos das eleições. A maioria dos carros, de vidros fechados para qualquer um dos apelos, é um muro atualizado. Uma expressão mais sofrida ou amistosa às vezes fura o bloqueio, fazendo baixar a guarda entre quem espera para seguir e quem espera os preciosos segundos da parada. Por vezes é possível testemunhar algo solidário nesse grupo que batalha no mesmo território, dominado pelos carros e seus motoristas, cumplicidade possivelmente gerada pela comunhão das adversidades.

Meu gesto foi sempre aceitar a entrega dos materiais de quem trabalha, algo que não me exige mais do que apertar botões e dar destino posterior aos papéis. Não está em jogo o conteúdo, isso eu decido com meu pensamento: entendo que o imediato é resolver aquela atribuição de quem tem os panfletos. Mas inicialmente meus filhos, que estão na carona e mais facilmente são acessados para a entrega, refutavam a ideia de receber algo que não se identificasse com a sua posição política, agradecendo gentilmente mas não aceitando algo que poderia marcar o ensejo de uma concordância. Depois de algumas conversas, resolveram também receber as propagandas, e seguiram agradecendo. Parece que se conciliaram mais com a possibilidade de diminuir o numero de pessoas que viessem a ter acesso aos panfletos, tanto que ficavam entusiasmados quando a entrega era ‘equivocadamente’ generosa, quando ao invés de um, eram duplicados, triplicados os informes. E parece estar tudo bem para ambos os lados.

Depois acontece um exorcismo através da leitura ácida, em voz alta, da apresentação do candidato, das propostas, seguida da análise das fotos, da estimativa os custos do material…, culminando com dobraduras ou rasgos, num jubiloso descarte final. Nesses tempos de sinaleiras disputadas, raramente encontramos os candidatos que pretendemos para a urna, mais presentes nas redes sociais.  Mas escutamos outras vozes.

Ainda na fase do impasse dos filhos entre pegar ou não os panfletos, uma senhora com mais de 60 anos se aproxima e oferece, recebendo uma negativa da minha filha. Ao que ela sorri, sensível ao tom da recusa, um certo constrangimento. E dispara, naqueles minutos cinematográficos da sinaleira: Eu também não vou votar nela, mas por favor pega. Minha chefe está me olhando, é meu trabalho e depois a gente vota em quem quiser. Lição quase em vertigem, compreensão muito bem humorada sobre tudo o que se passa. Reconheço a manobra sábia diante do impasse, algo diário e insistente no mundo dela. A convocação foi irresistível e definiu o término da resistência com as entregas para nós, seres automotivos.

Lembrei de uma cena recente num estádio de futebol. Um contexto por si excludente/elitista: um camarote, de uma personalidade apoiadora do atual presidente. Algumas pessoas pedem para fazer selfie com ele, numa inconteste reverência, e a turma do andar de baixo contesta, bradando que se tratava de um embuste. Corro com os olhos para tentar capturar o que se movimenta naquele pequeno enfrentamento. Encontro a minha angústia com a do funcionário do staff que servia aquele microcosmo. Ele me diz, quase em voz, mas sendo suficientemente expressivo no que diz: Eu não posso, mas digam por mim. E abriu um sorriso diante da minha procura.

Num desconforto incomparável aos protagonistas das cenas que descrevi, mas insistente, nessas eleições não consigo usar adesivos ou identificar meus candidatos sem uma escolha cirúrgica. Penso as possibilidades, os efeitos, os ruídos, cogito uma visibilidade sempre circunstancial. Acompanho isso além de mim, também. Meu filho posiciona estrategicamente a carteira com determinada face para cima ou não, dependendo de quem está no radar e poderá se deparar com seu voto. Na viagem para outro estado, o taxista hesita diante da conversa sobre as eleições porque sou do sul, tentando ter mais indícios para seguir. Sou nordestino, declara. E aguarda o que reverbero para dizer ou não, para falar ou ouvir.

Ao mesmo tempo sou afetada quando vejo as bandeiras do Brasil em profusão nos carros, sacadas e janelas. É algo que não me pede licença, mas privatizou a leitura de um símbolo nacional. Em meio a tudo, a urna é um desejo que se impõe diante desses balbucios. É mais um começo diante do constante diálogo, sempre provocado por muitas diferenças.


Denise Macedo Ziliotto é psicóloga, jornalista e professora universitária. Coordena o coletivo @psipracaemancipacao.

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