Crônica

Só tinha que ser com vocês

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Só tinha que ser com vocês Elis & Tom | Reprodução

Águas de Março já havia sido lançada em um compacto solo do Tom Jobim e depois ainda no seu álbum Matita Perê, mas estourou mesmo logo depois, quando virou um dueto, o maior da história da música brasileira. O filme “Elis e Tom, só tinha de ser com você” documenta a gravação do álbum genial da dupla em 1974, e é dirigido por Roberto de Oliveira, empresário da Elis na época e mentor da ideia para dar um help na imagem da cantora, enxovalhada por uma participação artística nas Olimpíadas do Exército. O material ficou enlatado até poucos anos atrás, quando o produtor Diogo Pires Gonçalves tomou a iniciativa de ligar pro Roberto e capitaneou o projeto que ganhou a Mostra de São Paulo ano passado.
O filme estreia só em agosto. Em 8 de março, houve ainda uma sessão especial na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, quando eu pude assistir. Tivesse ele sido lançado na época, seria, claro, um documento importante, mas pouco mais que um making of à sombra do brilhantismo da criação artística não só dos dois gênios mas de outros grandes como o produtor Aloysio de Oliveira e César Camargo Mariano tentando achar seu lugar como arranjador diante do maior de todos e da figura imponente da Elis, com quem era casado.
Foi também o primeiro trabalho de um engenheiro de som que, de tão junior, era o único presente naquele período de férias quando a turma toda – gravadora, produtor, músicos, César, Tom e Elis – bateu na porta dos estúdios da MGM em Los Angeles e se instalou por lá na base do chega aí. Humberto Gatica tem hoje mais de 20 Grammys, Thriller entre eles.
Meio século depois – tendo o álbum limpado a barra da Elis e cumprido todo o seu ciclo possível, um sucesso monumental no mundo inteiro e um dos melhores de toda a MPB – o filme adquire uma outra dimensão. Na era do audiovisual, ele devolve esta obra prima para quem já a conhecia para ser redescoberto através da história tensa, mas produtiva, de como dois estilos bem diferentes iriam acabar por se encaixar depois de quase dar errado. Onde o mortal pensaria em um time dos sonhos, o filme revela o conflito dentro da lógica emocional da criação artística com personalidade: Tom, econômico, não gostava do estilo espalhafatoso da interpretação da Elis. E ela, que não achava seu lugar nos arranjos e quase foi embora algumas vezes, acabou chegando no que muitos cravam que foi seu apogeu, a partir do qual o filme defende que ela nunca reencontrou um caminho que parecesse lhe fazer sentido.
O filme seguramente apresentará o álbum a novas gerações no Brasil e no resto do mundo, justo neste momento emblemático em que recém emergimos das trevas e onde a arte é ao mesmo tempo oxigênio, Fluoxetina e Lexotan. Elis e Tom, álbum e filme, vêm para nos lembrar quem fomos, quem somos, resgatar o orgulho que devemos sentir por nossos artistas e nossa cultura. O quanto o Brasil é maior, mas muito maior, que a idiotia amalgamada por ignorância e aridez de alma. Como diz o engenheiro Gatita, a obra de Tom e de Elis segue viva e radiante tanto tempo depois, enquanto que sucessos produzidos nas últimas duas décadas se esfarelaram tamanha a falta de profundidade.
Por isso tudo e – vá lá – dando um leve desconto das emoções anabolizadas pela empolgação de uma sessão mágica, quero pensar que “Elis e Tom, só tinha de ser com você”, nascido 50 anos após sua gestação, se torna tão importante quando o disco de vinil da minha gaveta.


Diego de Godoy é diretor de cinema e roteirista.

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