Crônica

Terceiro sinal

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Terceiro sinal

Quando cheguei a Porto Alegre, no verão de 1993, três coisas me fascinavam: a livraria do Globo, o Carrefour e a locadora Alta Games. Na livraria do Globo, seguindo as ordens generosas da minha tia Sonia, eu podia pegar qualquer livro que a minha imaginação pedisse. Eu nem gostava muito de ler, mas é que, às vezes, quando chovia, faltava luz. E sem luz não tinha videogame. Eu sentia o prédio tremer. Pensava no desabamento, pensava no concreto esmagando cada parte do corpo do filho da dona Ilma. Imaginava a Paola Vernareccia conversando com os populares. Familiares desesperados pediriam justiça. Alceu Collares decretaria luto oficial por três dias. A única coisa que conseguia romper essa espiral de delírio era a leitura. Lendo eu tinha medo do fantasma do Tio William, eu ia para o Peru, com as meninas do vôlei, eu perseguia o vampiro com o Dudu. 

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Quando a luz retornava, a SEGA me tinha de volta. Combustível não faltava: a Alta Games era uma espécie de anti-biblioteca, cheia de cartuchos para o meu mega-drive e um cheiro de politileno que, na falta de uma cultura proustiana adequada, eu chamarei de maravilhoso. Do outro lado da cidade, bem distante, ficava o Carrefour. Meu fascínio por esse hipermercado tinha uma razão concreta e mesquinha: patins. Eu não sei quem determinou, mas naquele ano os funcionários do local usavam patins para se locomover. Em Rio Grande, onde cresci, naquela época patins eram instrumentos recreativos para se usar em praça. Vê-los em um ambiente de trabalho confirmava uma suspeita: Porto Alegre era diferente de tudo o que eu conhecia. Aqui o labor – vamos fingir que eu conhecia essa palavra aos doze anos – andava lado a lado com a diversão. 

Ontem, nesse mesmo supermercado, João Alberto Freitas, um homem negro como eu, que tinha quarenta anos como eu, foi espancado e morto por seguranças brancos em uma sessão de tortura que se espalhou por todas as telas do mundo, escancarando mais uma vez a miséria da vida social brasileira. 

Não sei ao certo por quanto tempo o Brasil – especialmente o Brasil, onde a maioria negra aparece como minoria em todos os lugares de comando: universidades, hospitais, parlamentos, bancos, emissoras de televisão, editoras, agências de publicidade, tribunais de Justiça – vai resistir à putrefação do projeto civilizatório. Tenho a sensação de que nosso tecido social é sustentado por um fio roto, constantemente tensionado por pessoas brancas dispostas, por ignorância ou pulsão autodestrutiva, a rompê-lo. Os indivíduos brancos antirracistas (que existem bem antes do brasileiro médio aprender a soletrar es-tru-tu-ral) vão precisar enfrentar os indivíduos brancos racistas. Não vai bastar chamá-los à razão, é preciso demiti-los. Não vai bastar lamentar suas declarações infelizes, é preciso denunciá-los. Não vai bastar ter empatia pelas vítimas do racismo, é preciso promovê-las nos espaços de protagonismo decisório.

Racistas usam o medo que pessoas boas têm do macartismo para se proteger. Eles manipulam a boa-fé dos outros e limpam o sangue dos escravizados nas roupas dos moderados. Contam com seu silêncio. Não aceite. Fale. Racistas não podem ter as rédeas de uma sociedade que se pretende justa porque não desejam outra coisa senão a perpetuação das senzalas. Não existe meio-termo de intolerância. Não existe uma zona de conforto racial, quando o genocídio bate à sua porta. Você não pode ficar do lado de fora e do lado de dentro ao mesmo tempo. Você não pode ser antirracista e racista ao mesmo tempo. Não há manobra sofista que nos salve dos fatos. Se os racistas estão na sua mesa, então você é um deles.

Uma vez, ao voltar de uma ida ao supermercado, minha tia – a mesma dos livros – me explicou que Carrefour, em francês, é cruzamento, encruzilhada. Depois advertiu: “Você precisa saber o que as coisas significam, Maurício. Não pode ficar andando por aí feito um apalermado.” Ela me disse isso há quase trinta anos. Hoje, sexta-feira, vinte de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra, a chuva que desaba em Porto Alegre já não me assusta. Agora, quando penso em patins, temo uma eventual lesão de menisco em caso de queda. Envelheci. À noite, irei ao Carrefour. E o farei não mais para fetichizar a vida adulta, nem para sonhar com curvas fechadas no corredor de cosméticos. Vou para marchar ao lado das lideranças negras que fazem valer a pena viver nessa cidade. A gente não pode ficar andando por aí feito um apalermado. É preciso saber o que as coisas significam, mesmo que doam muito.

Porto Alegre, 20 de novembro de 2020.


Luiz Maurício é editor da Figura de Linguagem; autor de Boca de conflito: Universidade brasileira, racismo e Marx.

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