Crônica

Ver a música

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Numa tarde gelada de sábado, em Porto Alegre, para espantar o frio fui pedalando até a Cidade Baixa, onde acontecia o “Concerto Jovem Instrumental”, com apresentação de quatro grupos: a OSPA Jovem, a Camerata L’Estro Armonico, a Orquestra Villa-Lobos e a Orquestra Jovem do RS. Deixo ao leitor a tarefa de pesquisar pela Internet sobre cada uma delas, limitando-me a dizer que possuem em comum o ensino da música e a prática orquestral voltada a crianças, adolescentes e jovens; e atendem, em alguma medida, pessoas e comunidades vulneráveis. 

Ao frequentar concertos (e no meu caso particular, também nos bancos da faculdade de música, que frequentei), aprendemos que a apreciação da música “séria” requer concentração máxima. Numa situação ideal, o ouvinte, de olhos fechados para evitar distrações, faz um esforço para colocar todo o seu cérebro a serviço da compreensão e fruição do que lhe entra pelos ouvidos. O silêncio do ambiente é condição essencial para não nos perdermos nos meandros das melodias e sutilezas das harmonias. A realidade, porém, não é pródiga em ambientes ideais para nada. E meu cérebro mal consegue se defender de todo o tipo de ideias e impressões que o atravessam, com a mesma liberdade com que as pessoas circulam pela rua em torno do palco onde aconteceu esse concerto.

Embora tenha tido contato eventual com o mundo da música de concerto ainda na idade escolar, minha formação como espectador regular de concertos (capaz de sair de casa num dia como hoje para assistir a um) deu-se no período em que a OSPA se apresentava no Salão de Atos da UFRGS, cujos estudantes tinham entrada franca. Alguns músicos eram ou tinham sido meus professores, e, com o passar do tempo, foram chegando os colegas de faculdade. Assim, ao assistir aos concertos, acostumei-me a procurá-los no palco, a prestar atenção em passagens nas quais eles se destacavam e até lembrar eventualmente de momentos vividos nos tempos de faculdade. E também, é claro, lembrar de outros concertos a que assisti ao longo das décadas passadas. Ou de alguma gravação da peça que consta no programa de hoje, para fins de comparação ou para testar minha memória (“São três ou quatro movimentos?” “Agora é que vem aquela passagem que eu mais gosto?” Etc.) 

Independente dessas relações pessoais que reduzem as minhas chances de obter uma audição ideal, dificilmente uma grande orquestra deixa de ser também um espetáculo visual aos olhos de uma pessoa leiga, com sua variedade de instrumentos esquisitos, e a uniformidade da vestimenta dos músicos contrastando frequentemente com a diversidade de tipos físicos, levando-nos a divagar sobre quem são aquelas pessoas e quais os caminhos que os trouxeram até ali. Sem falar nos gestos dos maestros, beirando ora o dramático, ora o cômico, e capazes de encantar as crianças.

Se todas essas distrações que impedem uma audição “perfeita” já se encontram na sala de concertos, imagine ao ar livre, em frente ao palco montado na rua da República, ao lado da igreja de Santo Antônio do Pão dos Pobres (cujo entorno já se encontrava decorado, na antevéspera da data do padroeiro). Imagine as pessoas e famílias chegando e se acomodando em suas cadeiras, com seus bebês, cachorros, mates e quentões. Imagine o ruído da avenida Praia de Belas, atrás do palco, e também do vento no belo arvoredo que recobre a rua. E imagine, claro, a duvidosa qualidade de reprodução dos sons emitidos pelos jovens, empenhados em controlar seus dedos e pulmões enregelados. Tudo isso nos leva para muito longe da bolha de silêncio ideal. Mas então, por que mesmo vale a pena estarmos aqui?

No palco, a professora Cecília Silveira sugeriu uma resposta, enfatizando que a Orquestra Villa-Lobos (que ela fundou e dirige há 30 anos), mais que um projeto artístico, é um projeto pedagógico. É por isso. O ouvinte que vier a este concerto imbuído da maior boa vontade de se concentrar totalmente na música enquanto som sairá com toda a certeza frustrado. Será preciso “olhar para a música” enquanto prática ou fenômeno social. Prestar atenção, por exemplo, na expressão dos jovens (de peles mais escuras e cabelos mais crespos do que os frequentadores habituais de concertos), circulando altivos com seus instrumentos, olhados com orgulho por seus pais e com encantada admiração pelos irmãos menores. Detalhes que, longe de representarem distrações à fruição da Arte (com maiúscula) em cima do palco, constituem o essencial.

Para cúmulo da “distração”, a fala de Cecília transportou-me a 1912, quando na gestão do intendente José Montaury criou-se a primeira Banda Municipal, junto à escola Hilário Ribeiro, como um desdobramento das aulas de música oferecidas a seus alunos. Seus integrantes eram trabalhadores, inclusive crianças, na maior parte empregados do próprio Município, em atividades como a capina das ruas. (Sim, leitor, o trabalho infantil era legal por aqui nessa época, embora moralmente não fosse uma unanimidade.) Entre eles, muito provavelmente, muitos negros, inclusive o contramestre André Avelino Rodrigues.

Desativada essa Banda em 1921, o sucessor de Montaury, Octavio Rocha, reorganizou-a em 1925, agora como um grupo de excelência artística, a tal ponto que o Município patrocinou a vinda de mais de trinta músicos da Itália e da Argentina. Embora o projeto previsse também a criação de uma “escola de aprendizes (…) a fim de formar um núcleo de bons instrumentistas nacionais”, essa função pedagógica não foi priorizada, só tendo início em 1928 (após a morte de Rocha), e logo interrompida em 1931. Neste período, jornais locais chegaram a acusar a Banda de discriminar, com a concordância tácita do intendente Alberto Bins, os cidadãos brasileiros (e negros, em especial) que nela buscavam vaga. A Banda seguiria em atividade por mais de duas décadas, antes de ser “fundida” com a recém criada OSPA (na origem, uma associação privada).

Enquanto pedalava de volta pra casa, eu perguntava aos meus botões se fazem algum sentido, caso ainda existam num país como o nosso, políticas públicas cujos objetivos se limitem a assegurar “condições ideais” de fruição da arte para uma minoria branca, com renda e escolaridade acima da média.

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