Crônica

Zé Celso em Gramado

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Zé Celso em Gramado Foto: Diego Vara /Agência Pressphoto

Primeiro Festival de Gramado após a anistia e o Zé Celso estava lá. Por onde ele andava, o seguia uma turma de jovens aspirantes a qualquer coisa na área da Cultura, que considerava, com razão, que acompanhá-lo era a melhor coisa se fazer. Zé Celso falava pelos cotovelos, uma usina verborrágica incontrolável, mas sabia ouvir. Quando alguém lhe colocava uma questão aparentemente ingênua, ela tratava de valorizar a pergunta e fazer as apreciações politizadas adequadas. 

O fato que vou narrar – estava de férias e dormia na mesa de pingue pongue da igreja, imaginem o estado – ocorreu na noite daapresentação de “A Volta do Filho Pródigo”, filme de Ipojuca Pontes. Ipojuca Pontes era irmão do grande dramaturgo Paulo Pontes, pra quem não sabe, parceiro de Chico Buarque em “Gota D’água”, um dos maiores sucessos teatrais do país naquela época, com Bibi Ferreira (esposa de Paulo Pontes) arrasando no papel de Medeia. 

A peça foi premiada com o Prêmio  Molière, que os autores recusaram em sinal de protesto contra a proibição, no mesmo ano, de obras de outros autores, como “O abajur lilás”, de Plínio Marcos, e “Rasga coração”, de Oduvaldo Vianna Filho

Ipojuca não tinha toda essa bola, mas era casado com Tereza Rachel, grande atriz e principal protagonista do seu filme. Na noite da exibição de “A Volta”, tudo preparado, Zé Celso irrompe no palco com um grupo de jovens e faz uma performance de uma canção de roda revolucionária de Moçambique, onde ele estivera exilado, cuja base era A-E I-U-O, alterando as duas últimas vogais como formade subversão. Produziu um impacto enorme. 

Todos sabemos que o público do Festival de Gramado se divide entre pessoal do cinema e pessoal do turismo, com expectativas bem diferentes. Imagine-se a repercussão, lembrando que ainda estávamos nosestertores da ditadura.

Não bastasse, logo após Paulo Cesar Pereio sobe ao palco, sem nenhuma previsão na programação oficial, e lê uma carta dos jovens cineastas articulados por Zé Celso, dando pau na Embrafilme, pelo que me lembre. Talvez quando o Collor extinguiu a Embrafilme, em 1990, o papo seria outro, mas isso é outra história.

Bueno, ficou o climão. A festa daquela noite – tinha festas todas as noites – era no Hotel Serrano, patrocinada por uma grande joalheria de Porto Alegre. Zé Celso não foi. Encontrou coisas mais interessantes pra fazer. Mas Pereio apareceu e eu vi tudo. Ao chegar, foi interpelado pelo Ipojuca.

– Que história é essa de estragar a noite do meu filme?

Pereio é grandão. Ipojuca, franzino.

Na terceira interpelação, Pereio acertou um soco no Ipojuca que derrubou rival. Tereza Rachel viu de longe, tomou as dores do amado e jogou uma taça de champanha no Pereio. Ele se esquivou e a taça acertou a mão da Ciça Guimarães, mulher do Pereio. Com um talho sangrando na mão, ela vociferou:

– Eu quero o sangue dessa mulher!

Houve um início de conflito, logo dissipado, como se nada houvesse acontecido. Vi tudo. Ipojuca e Tereza acabrunhados num canto, Ciça, esparadrapo na mão, botando fogo pelas ventas e Pereio, malucão, circulando pelo salão:

– Dei uma porrada nesse otário.

José Lewgoy, cada vez que cruzava com ele,cochichava:

– Babaca!

Pereio respondia:

– Vou dar uma porrada nesse velho.

Mas não houve mais nada digno de nota.

Nos dias seguintes, vi o Zé Celso mais duas ou três vezes com sua entourage, mas acredito que foi embora antes do final.

Naquele ano, o vencedor foi “Raoni”, documentário de Luiz Carlos Lacerda e do francês Jean Pierre Dutilleux, sobre o personagem que recentemente subiu a rampa junto com o presidente Lula. Ganhou também melhor trilha, de Egberto Gismonti.

Marlise Saueressig ganhou melhor atriz, no papel de Jacobina, no filme “Os Mucker”,parceria de Jorge Bodanski com o alemão Wolf Gauer, derrotando a favorita Tereza Rachel. “A Volta” contentou-se com melhor ator para o ótimo Helber Rangel e atriz coadjuvante pra adorável Dilma Lóes.

É o que eu lembro.


Rafael Guimarães é escritor.

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