Ensaio | Parêntese

Demétrio de Freitas Xavier: Eulogia e Heloísa, duas garotas

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Demétrio de Freitas Xavier: Eulogia e Heloísa, duas garotas

Anos 60. Dois amigos boêmios. Um, exuberante poeta; o outro, compositor talentoso e original, músico, pianista, fundador de uma linguagem na canção popular. Uma parceria interessada na alma e na fisionomia nacional, que compôs boa parte da música que viria a identificar seu país, dentro e fora dele. Um bar e um encontro: uma adolescente, fascinantemente típica do seu entorno, belamente representativa de sua paisagem. Uma canção de antologia, que se tornaria conhecida em todo o mundo, por meio de muitos intérpretes. 

Todos esses elementos são comuns a duas histórias, ocorridas em dois países, envolvendo dois pares de compositores e duas mulheres (se ainda falta uma coincidência, ambas nascidas em 1945), que talvez não tenham notícia uma da outra. São as histórias de duas canções fundamentais: “La Pomeña”, argentina, e “Garota de Ipanema”, brasileira.

Da grandiosa dupla brasileira, sabemos de sobra. Vamos aos argentinos.

Manuel J. Castilla e Gustavo “Cuchi” Leguizamón, ambos da província de Salta; uma parceria criativa prolífica que se confunde com a hegemonia “salteña” no movimento de renovação e difusão massiva do canto de raiz folclórica naquele país. Para a memória brasileira, sobretudo do sul do país, a referência máxima de seus temas pode ser “Balderrama”, imortalizada por Mercedes Sosa. Cuchi tinha perceptível e declarada admiração pela música brasileira, além de fortes referências jazzísticas e eruditas, sobretudo relacionadas ao piano, seu instrumento principal – e devoção por formas autóctones de sua região, como a “baguala”, o canto montanhês entoado em quadrinhas e acompanhado apenas de uma rústica percussão. 

Castilla era um poeta simultaneamente grandiloquente e terno, como seu noroeste argentino, a cuja essência folclórica entregou sua poesia, em obra extensa e premiada. 

A dupla conheceu, em uma de tantas noitadas lírico-etílicas, em La Poma, uma pastorazinha de cabras que, como tanta gente nos carnavais da província de Salta, se dedicava a cantar coplas: quadrinhas entoadas com acompanhamento percussivo da “caja” pelos camponeses daquelas paragens pré-cordilheiranas. Um desafio, um contraponto de coplas de memória e de improviso levado a cabo no bar Flor del Pago, em que o poeta e o músico enfrentaram Eulogia Tapia. A vitória da menina inspirou os derrotados a compor uma canção em sua homenagem.

Vinícius de Morais e Tom Jobim tomavam trago profuso e regular, tanto quanto a criação musical e literária que regavam, na varanda do bar Veloso, em Ipanema. Ali, viam diariamente a musa adolescente que se eternizaria junto com eles. Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto Pinheiro caminhava pela praia, vindo da escola, e sempre recebia dos dois, segundo conta, algum assobio, algum galanteio… até que tiveram a ideia de dedicar-lhes “Garota de Ipanema”. 

Heloísa tem seu nome longo, de família tradicional carioca e portuguesa, encurtado para o apelido Helô, o que até nos ajuda a construir a atmosfera de semelhança, pela aproximação sonora com a pronúncia em espanhol de “Eulogia”. É formada em Direito; modelo, jornalista, apresentadora de TV e empresária. Vive entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Eulogia Tapia, a menina pastora de cabras e coplera de La Poma, Salta, segue sendo coplera e pastora de cabras, ainda agora, aos 74 anos – e vive em um posto de estância, na mesma localidade, em um rancho de barro, a três mil e poucos metros sobre o nível do mar que ainda unge a outra musa. Masca coca e mateia com o marido na varanda, quando não está na lavoura de alfafa ou com as cabras. Não tem luz elétrica. 

É claro que, esgotadas as coincidências, há uma distância enorme entre o “alero” do rancho de Eulogia e a varanda do Veloso, chamado hoje Garota de Ipanema. Maior do que os três quilômetros de altitude, maior do que mil vezes esse número, que é o tamanho do chão que se estende entre La Poma e o Rio de Janeiro.

Essa distância provoca, inquieta. Porque convoca antigas comparações entre platinos e brasileiros.

Procure-se Helô Pinheiro na internet e as notícias sobre a bela senhora de alta classe média carioca, de cabelos tingidos de loiro e produção esmerada, podem referir-se a uma viagem recente à Europa e suas fotos com uma estátua de cera de Tom Cruise; o estudo nu de há vários anos, para uma revista, ao lado da filha; opiniões sobre sua ausência na cerimônia de abertura das Olimpíadas, quando Gisele Bündchen desfilou ao som de Garota de Ipanema. 

Busque-se Eulogia Tapia. A pastora mestiça, de traços indiáticos envelhecidos, de roupas agrestes e chapéu preto de aba larga, aparece como uma personagem resgatada da música famosa, em reportagens que parecem renovar o orgulho um pouco assombrado de que ela exista de fato e esteja lá, no mesmo lugar, vivendo da mesma forma registrada pelos grandes compositores, há mais de 50 anos. Uma referência de crioulismo, um raro exemplo de correspondência fidedigna e permanente entre o motivo e a obra. Talvez o sonho de tantos criadores artísticos apologistas do regional: poder demonstrar a verdade sólida e inatacável do que retratam, para além da beleza e da potência emotiva. 

O fato é que não há como evitar um incômodo, nessa comparação de representações nacionais. 

Como não pensar na fama de futilidade; nessa imagem mundial de um sexismo coisificador da mulher; essa pecha de incapazes de ir além da lubricidade caricaturescamente tropical? Como manter apenas a justa argumentação que se apoia no quão preconceituosas são essas imagens de traços grossos, estrangeiras, coloniais, etno-coisa-e-tal?

Mesmo sem retomar a descrição das musas, pensemos no que provocou os criadores. A inspiradora da peça magnífica do Rio de Janeiro caminhou. Caminhou de biquíni, vista da mesa de um bar. A argentina desempenhou-se em duelo, no qual sua arma era o engenho poético ancestral do seu povo. Talvez não seja confortável; diga-se se é justo ou fidedigno… mas não seria estranho para ninguém no mundo dizer que a Garota de Ipanema e La Pomeña são, em grande medida, o Brasil e a Argentina.

LA POMEÑA – Cuchi Leguizamón/Manuel J. Castilla


Eulogia Tapia en La Poma
Al aire da su ternura
Si pasa sobre la arena
Y va pisando la luna

El trigo que va cortando
Madura por su cintura
Mirando flores de alfalfa
Sus ojos negros se azulan

El sauce de tu casa
Está llorando
Porque te roban Eulogia
Carnavaleando

La cara se le enharina
La sombra se le enarena
Cantando y desencantando
Se le entreveran las penas

Viene en un caballo blanco
La caja en sus manos tiembla
Y cuando se hunde la noche
Es una dalia morena

GAROTA DE IPANEMA

Tom/Vinícius

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela, menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
A caminho do mar

Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar

Ah, por que estou tão sozinho?
Ah, por que tudo é tão triste?
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha

Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo

Por causa do amor


Demétrio de Freitas Xavier é cantor, violonista, intérprete da obra de Atahualpa Yupanqui, e radialista, que manteve por muitos anos o programa “Cantos do sul da terra”. 

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