Ensaio

25 de Abril, Sempre!

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25 de Abril, Sempre! Foto: Henrique Matos/Wikimedia Commons

Quinta-feira, 18 de abril de 2024. Uma amiga do Tocantins, recém-chegada a Porto Alegre, está com suspeita de dengue. Íamos nos encontrar nesse dia, mas de manhã ela escreveu avisando que não estava em condições. Falámos em seguida pelo telefone e acabei a acompanhando ao Posto de Saúde do IAPI, para fazer um teste. O Posto, na Zona norte de Porto Alegre, é grande, concorrido e funcionou muito bem para nós. É difícil alguém interessado pela procura coletiva do bem comum não sentir um certo deslumbramento com a dimensão e o alcance do Sistema Único de Saúde brasileiro, apesar de todos os pesares. O posto do IAPI não é, no entanto, o típico lugar onde um cidadão acostumado às mordomias de um plano de saúde caro se sente completamente seguro. A densidade de utentes e a frugalidade na manutenção da infraestrutura temperam o deslumbramento com uma consciência do risco e uma natural vontade de sair dali o mais rápido possível. Minha amiga foi atendida no setor 9 e instruída a esperar por um chamado. Sentamos.

A área de espera do setor 9 tinha umas trinta pessoas distribuídas por outros tantos assentos. Eram cadeiras de plástico cinza, fixadas sobre pés de ferro corridos, em conjuntos de três ou quatro cadeiras por pé. O espaço entre alguns assentos, desalinhados entre si, era tão estreito que era impossível sentar neles — de fazer inveja a uma companhia aéra. Mas o fluxo de serviço parecia bom e nos sentamos, suficientemente confortáveis, confiantes em uma breve espera. Minha amiga desceu a um estado de sonolência semi-febril e eu já ia buscar a ‘Moral’ do Plutarco, para matar os minutos de espera, quando entrou em cena um personagem que nos trouxe a ambos de volta ao setor 9: um senhor dos seus oitenta anos, talvez com um metro e setenta de altura, sozinho, cabelo grisalho, chapéu do Inter bem enterrado na cabeça, uma sacola de pano ao ombro, indicador da mão direita envolto em um curativo de gaze e um baita bigodão. Mas bote bigodão! Surpreso, perguntei para a minha amiga:

– Oh, Dani, aquele ali não é o Olívio Dutra?

– Eu não sei quem é essa pessoa.

Mas claro! A Dani é do Tocantins. Abri a página do Olívio na Wikipedia e olhámos juntos a biografia do homem… nascido em 1941, cofundador do Partido dos Trabalhadores, Prefeito de Porto Alegre, Governador do Estado do Rio Grande do Sul, candidato a senador nas últimas eleições. E a foto batia muito bem.

– Olha, eu acho que é ele, disse a minha amiga. E depois acrescentou, com a energia possível, por entre as brumas da virose tropical, Estou chocada!

Apagando qualquer dúvida que ainda pudéssemos ter, um homem de blusa polo azul, com os seus 50 anos, levantou de um dos assentos de espera e foi saudar respeitosamente o recém-chegado, que retribuiu a cortesia com a gentileza imperturbável de quem está acostumado a ser reconhecido na rua. Era ele. Logo a Dani foi chamada para a coleta de sangue e eu fiquei aguardando na área de espera do setor 9.

Por que é que o bom humor chega sempre atrasado? Só três dias depois do encontro pensei que poderia ter ido puxar conversa com o Olívio, só para elogiar o chapéu. Mas na hora só fiquei boquiaberto. Por inibição e por respeito, deixei o homem em paz. Para algum leitor que porventura não esteja a par do apartheid econômico brasileiro, o motivo da surpresa é ver um ex-governador, ex-prefeito e personagem relevante da política nacional entregar a própria saúde aos cuidados do mesmo sistema a que recorrem os pobres, com todas as inconveniências e riscos que isso implica, sozinho, e com mais de 80 anos no couro. Ninguém faz isso. É um gesto revolucionário. 

Ainda na área de espera do setor 9, ávido de compartilhar a minha surpresa, troquei de banco para sentar ao lado do homem da blusa polo e puxei conversa com ele:

– Que lição, hein?

– O quê?

– Que lição! Do Olívio. Isso é um homem consequente.

– Sim. Ele faz o que o PT prega.

Concordei com algum cuidado, e ele continuou, em voz mais audível, sutil e crescentemente alterada:

– Os outros não. São tudo um bando de filhos da puta. Quando o Olívio saiu da Prefeitura, voltou para o emprego de escriturário de banco que tinha antes. Podia ter ido tirar vantagem, como os outros, mas não foi. Agora é que vivemos numa ditadura! E o ditador é o Alexandre de Morais!!

Ui, ui, ui! Ali, eu lembrei da Dolly Parton, uma cantora Estado-Unidense que segurou magistralmente a devoção de fãs em ambos os lados da rachadura política Biden/Trump, antes das últimas eleições presidenciais de lá. Mas ela não é torcedora do Inter… o que talvez lhe facilite um pouco a vida. Voltei ao paralelo 30 e procurando o tom de voz mais calmo possível, disse ao homem da blusa polo:

– Vou ter de falar que, nesse ponto, eu não penso da mesma maneira que o senhor, mas discordar ainda é saudável.

– Pode discordar. Eu é que não falo nem mais uma palavra sobre esse assunto. Eu odeio o PT. E ponto!

Há de se reconhecer algum valor na capacidade de identificar os próprios limites.

Eu tinha um ano, dez meses e dezenove dias quando aconteceu a revolução dos cravos. Não sei se já caminhava, mas obviamente não me lembro dos eventos do dia. Só que a revolução, não aconteceu apenas no dia 25 de abril de 1974. Ela começou, talvez, quando os Romanos mataram o Viriato, e se estendeu generosamente, primeiro pelo PREC, ou ‘Processo Revolucionário Em Curso’, e depois, por alguns anos de coletivização da incerteza e exercício consequente das liberdades individuais, num diminuendo estendido, talvez, até ao presente. O PREC foi tenso e abrangeu duas tentativas de golpe de estado, à direita e à esquerda. A última, em 25 de novembro de 1975, é tida como o marco final do período. Claro que também não me lembro de nada do PREC. O que eu recordo, nos anos seguintes, é a efervescência e a vitalidade que resultaram das individualidades recém-descobertas se manifestando contra um pano de fundo de inesperada amplidão de escolhas e destinos coletivos. Talvez o meu PREC tenha terminado só em 1979, em família, numa manifestação política na Alameda Afonso Henriques, de onde guardo vivamente a imagem de um marreco sobre o teto de um carro com um letreiro pendurado ao pescoço que dizia: ‘Otávio Pato’.

Portugal estava podre, antes do 25 de abril. Política, moral e economicamente podre. Durante mais de uma década, um país com dez milhões de habitantes enviou um milhão de homens para matar e morrer em três guerras simultâneas e anacrônicas, contra inimigos desconhecidos e motivados por aspirações perfeitamente legítimas. É claro que as pessoas que tinham no regime Salazarista uma proteção dos seus privilégios se ressentiram (e muito!) com a revolução, mas a memória que tenho desses primeiros anos de abertura democrática é de uma sociedade efervescente, muito mais do que de uma sociedade dividia, rachada por diferenças inegociáveis. Candidatos abertamente saudosistas da ditadura, se é que existiram em alguma eleição desse período, recebiam uma franja insignificante dos votos. O que não evitava xingamentos, claramente. Ainda antes de iniciar o ensino básico, eu achava a palavra ‘fascista’ tão divertida e estava tão acostumado a vê-la atirada entre pessoas, ao natural ou na televisão, que perseguia um tio meu com pedidos insistentes de “chame-me fascista” (querendo dizer, “me xinga de fascista”). Ele atendia ao pedido e eu ria às gargalhadas. Tinha até uma fita cassete com a gravação de uma dessas trocas. Depois, na escola primária, lembro que a data da revolução era sempre celebrada ecumenicamente. As professoras tinham cuidado para não por ao rubro qualquer ressentimento de adultos que tivesse chegado às crianças, mas a data nunca passava em branco. Fazíamos desenhos, principalmente, que eram afixados nas paredes da sala de aula. Todos tinham cravos vermelhos, muitos mostravam soldados e tanques de guerra enfeitados com cravos vermelhos. O tema prisão, ou saída dela, também aparecia. Me parece que o caráter ecumênico dessas celebrações vinha principalmente do foco que as professoras colocavam na liberdade. O 25 de Abril era o Dia da Liberdade.

Até à leitura recente do imperdível ‘O Despertar de Tudo’ (David Graeber e David Weingrow, Companhia das Letras) eu nunca tinha parado para examinar essa palavra. Que ‘Liberdade’ era essa que celebrávamos nos desenhos do 25 de Abril? Hoje, graças à leitura, gosto de pensar que ela tem três vertentes: liberdade de desobedecer, liberdade de ir e vir, liberdade de reinventar formas de organização coletiva. As três vertentes despontam desorganizada, mas energicamente nas minhas memórias infantis da revolução dos cravos. Por exemplo, deixou de se usar jaleco branco nas escolas públicas. O jaleco, ou ‘bata branca’ era obrigatório antes da revolução. A escola entrava no guarda roupa e abafava as individualidades. Usei um tipo de jaleco numa escolinha privada, antes da alfabetização, mas não tenho qualquer memória de usar jaleco branco na escola pública, a partir de 1978. Tanto quanto sei isto não resultou de uma mudança legislativa. Imagino que os pais simplesmente se foram dando, gradualmente, o direito de desobedecer ao ditame da escola sobre a roupa dos filhos. E não, o uniforme escolar não apaga as diferenças de poder aquisitivo entre as crianças. Essa desculpa para continuar obedecendo a uma forma insidiosa de arregimentação da sociedade é uma lorota. Outro exemplo, de desobediência infantil. Na escola, pública também, onde minha Mãe dava aulas de matemática para crianças de 10 a 12 anos de idade, havia um papagaio. Não faço ideia de que bicho fosse, muito provavelmente um Papagaio-cinzento, mas era dos que falavam bem. Quer dizer… ‘bem’ depende do ponto de vista. Antes do 25 de Abril, o animal ficava num corredor da escola; tinha um poleiro ao lado da mesa de uma funcionária administrativa. As crianças, que circulavam todos os dias pelo corredor, eram tão ordeiras e obedientes no seu uso da língua portuguesa que o animal dizia ‘Olá’, ‘Bom dia Sr. Professor’ e pouco mais. Depois da revolução ‘virou o bicho’. Em pouco tempo o papagaio ganhou um vocabulário tão alargado e com tal ênfase na escatologia e designações populares de partes íntimas do corpo humano que teve de ser confinado à secretaria.

Não sei bem onde encontrar a liberdade de ir e vir na vivência de uma criança portuguesa no final dos anos 70. Talvez no fato de que pegávamos transporte público sozinhos com 6-7 anos de idade? Mas não sei se aqui houve algum contraste entre o antes e o depois da revolução. A vida dos adultos, essa sim, foi profundamente transformada pela eliminação de barreiras ao movimento. Para começar, teve a libertação dos presos políticos, mas a liberdade de ir e vir foi muito mais além. Centenas de milhares de emigrantes que tinham saído ilegalmente do país, passaram a regressar de férias e a investir economias em Portugal sem receio de perda ou perseguição. Milhares de exilados, muitos dos quais tinham saído do país para não combater nas guerras da África, regressaram definitivamente ou passaram a frequentar Portugal. Alguns foram destacadíssimos escritores, músicos, ou pintores que exerceram uma influência indelével na sociedade portuguesa. E teve também uma enorme massa de gente, ex-colonos saídos principalmente de Angola e Moçambique, que se espalharam pela África do Sul, Brasil, Estados Unidos e Venezuela. Muitos voltaram a Portugal com pouco mais que a roupa do corpo e tiveram um impacto notável na economia. Hoje, não seria exagero afirmar que aproximadamente um terço de todos os portugueses que existem no mundo, vivem fora do seu país. Nem todos estes movimentos foram iniciados por vontade própria, mas é impossível mudar de terra sem fazer escolhas que inevitavelmente carregam algum exercício de liberdade. Quando não proporcionou, a revolução forçou essas escolhas.

As tentativas de golpe de estado que marcaram o PREC são um reflexo da liberdade de reinventar formas de organização coletiva. As pessoas tanto reinventavam essas formas, que arriscavam a própria vida (ou de outros) para as pôr em prática. No plano mais civil, pipocaram por todo o país escolas de música, companhias de teatro e cooperativas agrícolas que eram nada mais nada menos que isto: livre reinvenção da vida em sociedade. Foi experimentação social feita pelas pessoas e para as pessoas, com uma enorme variedade de resultados, dos mais felizes aos mais azarados, mas carregando sempre a vivência de que a gente faz a vida que tem. E a reinvenção não se limitava à criação de organizações. Ela também se manifestava na pronta aceitação de conceitos novos. Por exemplo, um amigo meu, nascido em 1959, foi chamado para servir no exército em 77 quando se encontrava em plena atividade na fundação de uma escola de artes que ainda hoje existe. Ele não queria nada com armas e tiros, mas embora a constituição de 76 já contemplasse a possibilidade de objeção de consciência, as regras para objetar formalmente ainda não estavam definidas. O meu amigo se encheu de coragem, foi ao quartel onde tinha sido chamado a servir e simplesmente declarou a um fardado em serviço administrativo que não queria servir porque era ‘objetor de consciência’. Para enorme surpresa dele, o militar anotou a informação e o mandou para casa sem mais perguntas. Isto quando, três anos antes, as pessoas ainda eram forçadas a vestir uniforme para ir matar e morrer ‘porque sim’.

Todas as mudanças profundas têm uma boa chance de deixar cicatrizes. Se a cicatriz fica feia ou bonita, depende muito da fibra de que cada um é feito. Talvez isto explique o ódio ao PT declarado pelo homem da blusa polo, no Posto do IAPI. O 25 de Abril também deixou feridas, inegavelmente. Quem perdeu os seus privilégios, novamente, tem uma boa chance de amargar ressentimentos. Quem perdeu o que tinha, mesmo não sendo particularmente privilegiado, pode não ter encontrado a saúde ou a energia para começar de novo. A sorte manda muito, também. Algumas pessoas que viveram intensamente o 25 de Abril se sentem defraudadas pela sociedade portuguesa atual. Outras, terão passado do ativismo ao oportunismo e deste à rotina, e jamais se perdoarão pelas pequenas covardias silenciadas. Talvez a grande diferença entre o então e agora esteja na dimensão coletiva que existia então e que estaria dormente agora. A dimensão coletiva das feridas e do júbilo no exercício da liberdade. Por isto foi tão tocante a lição do Olívio: por muito que a gente preze a dimensão coletiva da liberdade, ainda existe espaço para praticá-la digna e consequentemente nas escolhas individuais. O Olívio Dutra desobedeceu, com uma naturalidade desconcertante, ao que se espera de alguém com uma trajetória política destacada. Não bastando a desobediência, exerceu serenamente a sua liberdade de ir e vir ao Serviço de Saúde que bem lhe deu na gana. E por fim, não só com essa escolha, mas com o carinho que soube merecer de pessoas ao longo de todo o espetro político da sociedade Brasileira, demonstrou que esta sociedade não tem de ser, sempre, aquilo que temos visto dela. E que se dane se este gesto, deste dia, na área de espera do setor 9 do Posto de Saúde do IAPI, não vai ter consequências de maior para o mundo. Há coisas que a gente faz porque são certas, não porque vão dar em alguma coisa. Vida longa ao exercício sereno das liberdades individuais! Um dia – por ação nossa ou por sorte – sai outra vez a poesia à rua e acontece a coletivização da incerteza. Nesse dia, quem estiver pronto, segue pronto, e quem não estiver, segue a moda. Vamos praticando. Obrigado, Olívio. 25 de Abril, Sempre! 


Gonçalo Ferraz é português, biólogo, pesquisador de populações animais, professor de UFRGS e poeta.

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