Edição Julho

Jefferson Cardia Simões: Nós vamos sentir falta de várias outras coisas, não só do frio.

Change Size Text
Jefferson Cardia Simões: Nós vamos sentir falta de várias outras coisas, não só do frio.

Apesar de o Brasil ser um dos países mais próximos da maior porção de gelo que há no mundo, a Antártica, raramente falamos sobre isso. O continente congelado, com seus 14 milhões de quilômetros quadrados de extensão recobertos por gelo, quase duas vezes o tamanho do nosso país, nem sempre é compreendido como um lugar importante para o equilíbrio das condições climáticas do planeta Terra, muito menos do clima brasileiro. 

A Parêntese conversou com o glaciologista Jefferson Cardia Simões – professor e Vice-Pró-Reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor pelo Scott Polar Research Institute, da Universidade de Cambridge, Inglaterra, criador do Centro Polar e Climático da UFRGS e pioneiro do país nos estudos sobre as massas de gelo que recobrem o planeta –, para compreender melhor o papel da Antártica no atual cenário de emergência climática. 

Simões, que já esteve em 27 missões na Antártica e em duas no Ártico, é categórico ao afirmar que Antártica e Amazônia formam um sistema único, e que precisamos olhar para isso com mais atenção. No final do nosso encontro, ele deixou a frase que uso, agora, para abrir essa conversa: “A Antártica é parte integral e essencial do sistema climático terrestre. É basicamente aí que nós temos que entender a situação. Além do que, está logo ali. É o continente mais perto da América do Sul”.  

Parêntese – Vou começar pela questão que norteia essa edição da Parêntese. Faz sentido fazermos a pergunta “você vai sentir falta do frio?” em uma conversa sobre a maior massa de gelo do planeta, a Antártica? 
Jefferson Cardia Simões – O interessante está exatamente na pergunta porque qual é o conceito de frio? Algo difícil para o brasileiro entender é que: primeiro, o planeta Terra ainda é coberto por 10% de gelo e neve; segundo, que essas massas de gelo estão em diferentes temperaturas. Na verdade, para nós cientistas, temos gelo frio e gelo quente. O gelo quente está perto de zero grau. Qualquer energia começa a derretê-lo. E tem gelo a -50oC, -60oC, que é o gelo frio. Se você aquecer esse gelo, o processo é muito diferente. Quando falamos em Antártica, estamos falando de uma área continental com processos climáticos complexos, dentro de um sistema climático interconectado. As geleiras, no mundo todo, que estão perto de zero, estão ruindo, estão desaparecendo. A dos Andes está desaparecendo. As montanhas são as que mais sofrem porque geralmente elas estão mais perto dessa temperatura. Na Antártica, em todos os lugares quentes – com temperatura média acima de -5°C para cima –, as geleiras estão recuando. Na península Antártica, que é a península de 1500 km, que aponta para a América do Sul e avança para o Norte, 90% das geleiras estão diminuindo de tamanho. 

E isso é visível a olho nu?
A olho nu! Não precisa fazer mais nada. A gente usa dados de fotografias aéreas e de satélites para monitorar e ter uma série temporal. Nós temos dados de satélite desde a década de 1970, fotografias desde as décadas de 1930 e 1940. Mas, temos outras informações indiretas para os últimos 400 anos e as geleiras estão rapidamente diminuindo de tamanho. E nesse ponto sempre entram negacionistas ou pessoas que não entendem a escala temporal com que nós estamos trabalhando. O problema não são as mudanças em si, mas a velocidade que elas estão tomando. Porque mudanças do clima sempre existirão, fazem parte do sistema ambiental, que está sempre tentando se readaptar, com diferentes variações – pode ser a radiação solar, podem ser mudanças na circulação oceânica, pode ser uma atividade vulcânica. O que nós examinamos é a velocidade, o passo que isso toma e também se tem uma tendência em mudar. E claramente tem. 

Quando foi a sua última expedição à Antártica? 
A última foi final de dezembro, início de janeiro agora. Apesar da limitação de recursos financeiros, nós conseguimos nos distribuir em três equipes. Uma equipe foi fazer perfuração de gelo em uma das geleiras que se tem suspeita de que seja instável e que possa desestabilizar o manto de gelo da Antártica Ocidental. Outra foi instalar o módulo Criosfera 2, feito pela UFRGS, com tecnologia gaúcha. É um módulo automatizado, que utiliza energia eólica e solar, e funciona todos os dias do ano, 24h. Transmite os dados por telemetria, por satélite, e mede uma série de dados meteorológicos e, em breve, da química da atmosfera. E o outro grupo foi fazer manutenção do Criosfera 1, o outro módulo que temos, que é uma ação conjunta da UFRGS com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). As nossas ações lá estão todas voltadas para a questão da química atmosférica e as mudanças na circulação e nas características físicas da atmosfera.

O que é a Criosfera, que empresta seu nome aos módulos de pesquisa da UFRGS?
A criosfera é a massa de gelo e neve, que cobre, neste momento, 10% do planeta. Ela é construída de quatro componentes. As geleiras e os mantos de gelo, que, no caso da Antártica, ultrapassam facilmente três ou quatro quilômetros, são espessas e são formadas pela acumulação de neve; o mar congelado (tem lagos e rios congelados também), que é uma capinha de gelo fina e embaixo tem a bacia oceânica, e ela oscila durante o inverno e o verão; o solo congelado; e a neve sazonal, aquela que cai e que as pessoas acham que é a mais importante, mas não é. O que a gente está interessado, no Centro Polar da UFRGS, é no grande manto de gelo da Antártica, que é 90% do volume do gelo do planeta. Está lá. É uma coisa enorme, 1,6 vezes o Brasil, coberto por uma espessura média de 2 mil metros e sugando energia do planeta. 

Brasil é um dos países mais próximos da Antártica. Foto: Acervo Jefferson Cardia Simões/Centro Polar e Climático da UFRGS.

Por que você escolheu as regiões polares como área de estudo e o que é a Glaciologia, área em que você é pioneiro no país? 
Tudo começou no final do meu curso de Geologia. Eu estava encerrando a graduação e estava sendo criado o Programa Antártico Brasileiro, o PROANTAR. Eu sempre tive na minha formação um interesse pela questão ambiental e sobre a transformação e o impacto da sociedade no meio ambiente. Durante o curso de Geologia tinham leituras sobre ambientes glaciais, mas não de Glaciologia. Existe uma subdisciplina que trabalha com Geologia Glacial, que lida com registros geológicos deixados pela atividade do gelo do passado. Já a Glaciologia trabalha com a geleira agora, basicamente estuda as massas de gelo do planeta Terra no presente. 

As regiões polares são sistemas ambientais mais simples, apresentando grandes variações sazonais, e por isso os sinais de mudança são mais facilmente detectados. E existe uma série de processos que aumentam a sensibilidade dessas regiões às mudanças do clima. Por exemplo, o albedo, que é a proporção de energia solar refletida por uma superfície sem ser absorvida. A neve reflete quase tudo – melhor só se fosse um espelho. E uma superfície rochosa, escura, ou mesmo a superfície do oceano, reflete menos. Então, o que está acontecendo na periferia da Antártica e do Ártico? Como o mar está descongelando, não está formando mais gelo sobre o oceano. O mar fica aparente e absorve 80% de energia ao invés de refletir 80% de energia. Qual a consequência? Menos gelo, menos neve, mais superfície escura, que absorve mais energia, que derrete mais neve e gelo… Esse tipo de retro processamento ocorre marcadamente na periferia das regiões polares, tornando-as mais sensíveis, por exemplo, às mudanças na temperatura, na circulação atmosférica, na intensificação de ciclos sazonais, que vão fazer com que o gelo marinho responda mais rapidamente, desapareça mais rapidamente e assim acelerando todo o processo. Nós usamos a periferia dessas duas regiões para observar e ver o que está ocorrendo. É aquela coisa: eu sou você amanhã. 

É por isso que precisamos aprender a olhar para a Antártica tanto quanto olhamos e defendemos a Amazônia?
A Amazônia, é claro, é essencial para o sistema ambiental global. Tem o fato de a maior parte dela estar no território nacional e, além disso, sua importância envolve uma série de conceitos que vão além da preservação ambiental, como o conceito de soberania, de destino de nação, e isso chama a atenção. Mas, em termos ambientais globais, ou seja, em termos que interessam para a humanidade como um todo, a Amazônia é tão importante quanto à Antártica, ou, mais correto dizer: esse sistema é único e indivisível. Nenhuma parte é mais importante do que outra. Basicamente o que a gente tem que aceitar cada vez mais é que processos que ocorrem na Amazônia afetam as regiões polares e vice-versa. A evolução desses ambientes ocorreu dependendo um do outro. 

O que são os testemunhos de sondagem de gelo, materiais que vocês coletam durante as expedições, e o que eles nos ensinam sobre a história da humanidade?
Testemunhos de sondagem de gelo é a técnica paleoclimática que nós temos hoje de melhor resolução temporal e com mais dados sobre a história do clima e da química da atmosfera no passado. Eu escolhi essa área exatamente porque é uma maneira elegante de juntar informações, dados físicos e químicos do gelo, através de perfuração, e ao mesmo tempo se conectar com a história da humanidade e com o estudo das mudanças ambientais. E eu escolhi atuar no departamento de Geografia da UFRGS, para deixar as portas abertas para uma visão mais abrangente do que simplesmente coletar testemunhos e fazer análises físicas e químicas. A técnica dos testemunhos de sondagem de gelo começa a ser explorada na década de 1960, e se desenvolve mesmo de 1980 para 1990. Os testemunhos dão, muitas vezes, até detalhes sazonais, ou seja, tenho amostras que representam o tempo, o clima do verão, do inverno há 10 mil anos. A resolução é muito grande. Depende, é claro, de quanta neve cai naquele local. A neve vai acumulando – pode acumular desde dois centímetros até um metro ou mais por ano – então, se eu tenho três ou quatro centímetros, posso ter ali um ano de informações sobre o ambiente do interior da Antártica. 

Simões com uma amostra de um testemunho de sondagem de gelo

O quão profundas são essas perfurações e que tipo de informações sua análise fornecem?
Hoje, colegas meus já chegaram a 3720 metros de perfuração, e o gelo mais antigo que nós recuperamos, com detalhe, tem 800 mil anos! E é muito rico! São mais de 30 variáveis que nós medimos: poluentes, razões de isótopos estáveis, isótopos radioativos, micropartículas e até mesmo gases que ficam presos em  bolhas que ficam entre os cristais de gelo (uma verdadeira paleoatmosfera). Assim, obtemos informações sobre a variação da temperatura atmosférica do Planeta, da variação na atividade biológica, na atividade solar, nas erupções vulcânicas do passado, e também do impacto antrópico, o pós-revolução industrial, o moderno, a industrialização  e seus poluentes, explosões termonucleares feitas na atmosfera. Isso tudo ficou registrado nas camadas de neve e gelo. O estudo das química das bolhas de ar retidas no gelo é dos estudos um dos mais importantes. Elas provêm a informação das variações dos três gases estufa: do CO2 (dióxido de carbono), CH4 (metano) e também do N2O (óxido nitroso). Ao longo desses 800 mil anos nunca as concentrações desses 3 gases foram tão altas como são agora. Então é uma evidência importante para a questão de mudanças do clima. É uma das maiores contribuições da Glaciologia para a questão do impacto da humanidade nas mudanças climáticas.

Que outros problemas temos além do aquecimento global? 
Como cientista, não gosto de falar muito em aquecimento global porque virou um jargão. Primeiro, o termo “global”. Em alguns lugares, as temperaturas estão aumentando muito mais do que a média e em outros a superfície terrestre está até esfriando. Nós temos, na verdade, outros processos que são tão ou mais importantes de mudanças ambientais globais para sustentabilidade do planeta do que a temperatura. Nós temos o aumento da temperatura da superfície do oceano, nós temos o aumento da acidez do oceano, que também é por uma absorção de dióxido de carbono (CO2), o que leva a impactos direto na carapaças de alguns microrganismos, isso afeta toda a teia alimentar. Então, o processo é muito mais amplo. E independentemente do que nós estamos vendo, é uma mudança na química da atmosfera inferior muito rápida. Isso muda a transparência da atmosfera, colocando mais gases estufa. Nós intensificamos o efeito estufa natural – porque ele é um processo que existe na natureza e que permite que a temperatura média do planeta ao invés de ser -15°C seja ao redor de +15°C. É esse o cenário que nós temos que ter em mente. Os gases do efeito estufa são só uma das alterações. Estamos começando a ver uma série de mudanças de poluentes atmosféricos e também de fatores da superfície terrestre. Por exemplo, perto de zonas industriais, ou mesmo nas geleiras mais isoladas, temos cada vez mais carbono negro, um subproduto tanto de queimadas e da queima de hidrocarbonetos. Isso escurece a superfície de neve e gelo e por decorrência derrete mais rápido as geleiras.

Como vamos mitigar esses problemas? Qual o caminho para o futuro?  
Eu sou muito pessimista. A grande questão é: quem é que vai pagar a conta? E é uma discussão pesada porque os maiores poluentes do passado, que inclusive estão deixando de ser, foram os países que hoje estão desenvolvidos. Alguns países em desenvolvimento ainda vão custar muito a mudar o modo de produção de energia. Tem que haver transferência de tecnologia de geração de energia. Se nós continuarmos sem essa transferência não vai haver negociação. Além do que muitos desses países em desenvolvimento não aceitam que tem que haver um processo rigoroso de corte e de mudança na malha energética que nós temos. Estamos com 8 bilhões de indivíduos. Nós não temos como, como um planeta limitado, produzir energia ilimitada. Vai chegar um momento em que teremos que agir. Os cientista estão dizendo: nós temos duas maneiras de fazer isso. Ou começamos a mudar nossa maneira de gerar energia, e o modo que  extraímos e consumimos os recursos naturais agora, ou nós vamos ter um crash no futuro com muito mais dificuldades, com muito mais mortes, com muito mais desastres naturais e estresse na sociedade global, uma instabilidade ecológica. Uma crise civilizatória. Nós vamos sentir falta de várias outras coisas, não só do frio. 

Como é a experiência de estar na Antártica? A paisagem, as cores, o silêncio? 
A costa é onde você vai ter a maioria das montanhas aparentes, uma teia alimentar marinha extremamente rica, variada, pinguins, focas, baleias, etc. Ali é aquele ambiente que as pessoas geralmente acha que é a Antártica e que se mostra em documentários. Quando tu te afasta da costa, 20, 30 quilômetros, tudo começa a desaparecer soterrado pela neve e gelo, a maior parte um imenso planalto e somente, aqui e ali, montanhas isoladas. Onde nós trabalhamos é um deserto polar. É aproximadamente entre 2 e 2,5 mil quilômetros ao sul da estação brasileira, que está lá na periferia da Antártica, um lugar ameno, com média anual de temperatura ao redor de -3°C. Onde nós trabalhamos a temperatura média é -35°C. No inverno faz -65°C. Tu não tem nenhuma visão. Imagina que tu estás numa praia, ao invés de oceano só vê o branco, as vezes algumas dunas pequenas, as vezes uma megaduna muito longe, tu consegue ver a ondulação na superfície. Mas é basicamente um planalto, sem ponto de referência nenhuma. A  neve está sempre acumulando, ao longo de milhares e milhares de anos. O gelo pode estar, dependendo do lugar, com três ou quatro quilômetros de espessura. E o mais importante, do ponto de vista do indivíduo, é que tu está falsamente protegido em uma barraca com duas camadas. É a única coisa que te protege das intempéries. O vento varia. As vezes não tem vento, às vezes tem vento de 150 km/h. Esse acampamento tem que estar muito bem montado. Ele é todo artificial. Temos que levar desde o papel higiênico até remédios, alimentação, preparativos para o aquecimento, para amostragem, etc. A gente sobrevive, mas tem uma série de riscos que fazem parte da profissão. Você tem que evitar hipotermia, queimadura do frio, tem que evitar cair numa fenda de gelo. Isso tudo faz parte do treinamento da nossa equipe. Não tem noite, é 24h dia na latitude da base da UFRGS. Eu gosto muito. Enquanto o pessoal está dormindo, saio um pouco, vou caminhar um quilômetro, o sol alto e aí tem duas coisas: um silêncio completo – não tem vegetação, não tem flora, e dependendo do dia pode não ter vento, é uma paisagem minimalista; e também te dá a questão dos limites do ser humano, a insignificância, que nós somos muito pequeninos. A vida mais próxima a 500 km de nós, outros colegas cientistas. É um lugar totalmente deserto. Eu gosto de espaços abertos e um lugar desses me dá uma calma enorme, é reflexivo internamente. Mas é um lugar inóspito. Tu tem que estar sempre alerta.

O glaciologista em uma das expedições à Antártica, em 2008. Foto: Acervo Jefferson Cardia Simões/Centro Polar e Climático da UFRGS.

Em maio foi lançado, pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o novo Plano Decenal para Pesquisa Antártica. 
Em 2012, a partir da pressão da comunidade científica junto com alguns colegas do MCTI, estabelecemos um gerenciamento da pesquisa antártica brasileira com uma visão. Fizemos, principalmente, essa pergunta: quais são as questões científicas mais prementes e de vanguarda e que são de interesse para a sociedade e o ambiente brasileiro? E agora nós fizemos um novo plano para um segundo período, 2023-2032, definindo sete grandes áreas de investigação [Gelo e Clima, Biodiversidade Antártica, Oceano Austral, Geologia e Geofísica, Alta Atmosfera, e também Ciências Humanas e Sociais e Saúde polar]. Também foi aberto um edital do CNPq para apoiar as pesquisas antárticas nos próximos quatro anos. A novidade é a inclusão no apoio às pesquisas no Ártico. O Brasil está se tornando bipolar.

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.