Edição Julho

Ventos de 2023 assustariam o Amyr Klink de 1984

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Ventos de 2023 assustariam o Amyr Klink de 1984

Os riscos que Amyr Klink correu na histórica viagem que fez em 1984 começaram antes mesmo de ele partir de um porto da cidade de Lüderitz, na Namíbia, rumo ao Brasil – onde chegaria 101 dias depois. No livro em que conta a trajetória antes e durante aquela navegação, o brasileiro narra um episódio na chegada ao continente africano em que o navio cargueiro em que viajava enfrentou uma “tempestade de proporções incomuns”.

“Contêineres se soltando, cabos e correntes voando pelo convés, a âncora golpeando o caso a todo instante. Situação difícil para um navio de 150 metros de comprimento, obrigado a capear; como seria então para um barquinho com menos de seis, sem velas ou motor – me perguntavam todos. Não sabia responder, mas essa tempestade estranha e bela ao mesmo tempo, muito me fez pensar. Sua passagem, impressionante e arrasadora, é verdade, me tranquilizou bastante. Sabia que, estatisticamente, as possibilidades de ocorrência de uma nova depressão meteorológica dessas proporções praticamente ficavam reduzidas a zero. Um raio não deveria cair duas vezes no mesmo lugar.”

Dali a alguns dias ele partiria – naquele barquinho de menos de seis metros, batizado Paraty – numa viagem que ficou internacionalmente conhecida, e que deu origem ao livro Cem dias entre o céu e o mar.

Para além dos detalhes da travessia, Klink narra na obra a minuciosa preparação para a epopeia necessária para cruzar um oceano com tão poucas condições. Detalhes que passam por um cálculo mais ou menos preciso quanto à alimentação para três meses e meio longe da terra, além de recursos necessários de localização e comunicação num mundo pré-internet comercial. 

No entanto, todo esse dispêndio logístico, hoje, nem 40 anos após a viagem, seria insuficiente. Não necessariamente pela preparação exigida ou avanços tecnológicos – que por certo facilitam a vida de aventureiros do mar atualmente – mas pela crise climática, que atualmente torna aqueles mares cruzados pelo brasileiro muito mais hostis a navegadores. “Teria que ver todo um outro planejamento para aquela viagem provavelmente”, reconheceu o próprio Klink, durante passagem por Porto Alegre em maio, quando participou de seminário sobre hidrovias realizado pela Famurs (Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul). 

“Eu peguei uma grande tempestade no navio que me levou para África do Sul e outra grande, de uma semana, durante a travessia. Ao todo, peguei mais de 21 de tempestades, mas nunca foram ventos superiores a 35, 40 nós. E hoje é normal 50 nós”, disse. Para quem não é navegador: 50 nós equivale a um vento superior a 92 km/h.  

Para Klink, que hoje percorre o Brasil falando sobre suas viagens pelos mares, a força cada vez maior dos ventos ilustra as mudanças climáticas, mais do que outras variáveis, como o acúmulo de lixo nos oceanos. “Tem fenômenos, que eu estou acompanhando estatisticamente, que são possíveis indicadores das mudanças climáticas. Um é a frequência de ventos muito fortes: depressões barométricas violentas. Até 30 anos atrás, não tinha dados estatísticos sobre ventos acima de 100 nós na Patagônia. Hoje é a coisa mais frequente”, citou.

O que o famoso navegador fala não se trata de mera impressão. Luciano Zasso, coordenador do Curso de Geografia da Escola de Humanidades da PUCRS, respalda tecnicamente a observação de Klink. “A temperatura da superfície do Atlântico vem se elevando”, ressaltou o pesquisador. A partir disso, aumentam as depressões e grandes tempestades, por conta das condições formadas também pelo encontro das águas quentes e frias.

Não muito tempo atrás, conforme Zasso, havia uma faixa oceânica em que a temperatura da água ia reduzindo antes de se aproximar das regiões polares, hoje essa área está reduzida. “A água aquecida da região equatorial está sendo empurrada cada vez mais intensamente às regiões polares. Por isso que temos uma maior quantidade de depressões, furacões, enfim”, explicou. “Esse contato das águas se dá muito mais abrupto”, ressaltou o geógrafo, destacando que o impacto na atmosfera é proporcional.

Existe a comprovação do aquecimento das águas, já reiterado também pela comunidade científica. O professor pondera, contudo, que há de se estudar o que é aquecimento causado por um ciclo geológico e o que é artificial, ocasionado pelo homem. Apesar de não haver uma resposta exata ainda, o consenso científico é de que a influência da humanidade, em especial nos últimos 100 anos, é muito grande, segundo Zasso.

Tal variação, que para um leigo talvez soasse quase imperceptível, acaba por ser sentida no meio ambiente. “Apesar de não variar muito a temperatura, qualquer 1 grau de anomalia, tanto para cima quanto para baixo, já impacta de uma maneira muito mais intensa a atmosfera de regiões próximas ou não tão próximas”, garantiu o professor de geografia. Impactos talvez maiores do que o velho Paraty, aquele barquinho de seis metros, pudesse suportar no Oceano Atlântico de 2023.


Tiago Medina é jornalista, co-fundador e editor no Matinal Jornalismo.

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