Edição Julho

Marcela Bonfim: Preciso apreender a capacidade de conviver de forma pacífica com o meio ambiente

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Marcela Bonfim: Preciso apreender a capacidade de conviver de forma pacífica com o meio ambiente

Marcela Bonfim nasceu e cresceu em Jaú, interior de São Paulo. O início de sua carreira profissional, ainda em outro campo que não o das artes, a economia, a levou a Porto Velho, Rondônia, onde vive há mais de 13 anos. Foi lá que passou a dedicar-se à fotografia e a uma investigação profunda sobre o passado e a ancestralidade, sobretudo a presença dos negros na Amazônia, com o projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta e Amazônias: Madeira de Dentro. Madeira de Fora.

Munida de sua câmera e movida pelo desejo de contar e cantar das muitas amazônias que existem e formam a mesma floresta, passou a registrar não apenas as pessoas, mas também paisagens, rios, casas, cidades, colheitas, cheias, queimadas, e as contradições que envolvem o espaço. Imagens que expandem o imaginário do que é a floresta Amazônica ao mostrar a exuberância e a abundância da natureza, mas também o descaso, o desmatamento e os impactos das interferências exercidas de fora para dentro. Marcela narra existências, identidades, saberes e memórias dos povos e territórios da região.

Em 2021, a artista foi selecionada no Prêmio Pipa, um dos maiores prêmios de arte contemporânea do Brasil. Essa entrevista foi feita com a artista por meio de uma troca de e-mails, em junho desse ano.

Luísa Kiefer – Quando aconteceu o seu encontro com a fotografia e por que você começou a fotografar? 
Marcela Bonfim – Vim para Rondônia trabalhar numa financeira. Não conhecia nada daqui. A fotografia surgiu na rua, com as pessoas me perguntando se eu era barbadiana [pessoa nascida na ilha de Barbados]. Me assemelham muito com a família Johnson e Shockness, que hoje são daqui, mas que vieram no início do século XX num grande fluxo de migrações e imigrações do Caribe. Na época, a [Estrada de Ferro] Madeira Mamoré estava em construção. Não se sabe se eles vieram por causa dessa construção. Mas muitos chegaram em Rondônia, no Acre, no Pará. Eu cheguei muito mais tarde, vinda de São Paulo, mas houve essa identificação. Daí comprei uma câmera e a ideia era registrar as “novas” imagens que eu estava conhecendo e reconhecendo na cidade e principalmente eles, os Johnsons, que eram muito parecidos com a minha família. 

Essas fotografias deram origem ao projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra. Em que ano foi isso? 
Comprei a câmera em 2012. Em 2014 e 2015 eu já estava mais familiarizada com o contexto, mas não sabia o que fazer com as imagens, resolvi juntar e organizar. A tentativa sempre foi encontrar um sentido para o que eu estava tentando enxergar. 

Além de ser um encontro com a ancestralidade, com a constituição e a memória da população negra na Amazônia, podemos pensar que seu trabalho é também um caminho para compreender a floresta em si? 
Acredito que o caminho de conhecer a floresta é se envolver com ela. A floresta apreende com o homem, mas o homem precisa apreender com a floresta. Todos esses desastres têm a ver com apenas uma ideia: o desenvolvimento. E por conta dessa única ideia deixamos de lado as contribuições locais que por fim acabam nos sufocando com a imposição do capital. Alguém já perguntou para a floresta o que ela acha do desenvolvimento? Acredito que não. O homem fez de si o seu próprio caminho. A floresta é um exemplo de uma exclusão dentro deste caminho. Isso pode explicar a separação do homem com a natureza. E a imposição deste sobre a sua própria condição de ser humano. Isto é, enquanto o homem busca da natureza a utilidade, a natureza busca do homem um pouco mais de humanidade. 

Em que contexto foram feitas as imagens que apresentamos nesse ensaio visual, Amazônia em Cinza e Chão de Cinzas?
Amazônia em Cinzas (2015) refere-se a região do quilombo do Forte Príncipe da Beira. Uma localidade que foi reservada para a “defesa” (e de outro lado, “domínio”) do território fronteiriço com a Bolívia. Isto no fim do século passado. Hoje, a fortaleza se encontra como um patrimônio a céu aberto (que necessita de cuidados). Chão de Cinzas (2019) trata-se da região de Alta Floresta. Também remete ao contexto do desmatamento, geralmente iniciado a partir do mês de agosto, onde o clima se assemelha à seca, deixando a floresta vulnerável aos interesses do agronegócio. Nessas imersões percebi outros aspectos da Amazônia, isto é, os desequilíbrios que exacerbam o clima da região. Esse contexto parece não caber num imaginário do lado de fora, mas ela se encontra desta forma também. Embora não seja a imagem que goste de divulgar, é daqui, e rememora os desequilíbrios que existem aqui. Como também a necessidade de repensar as intenções dirigidas aqui. 

Várias das suas fotografias são acompanhadas por poemas. 
As poesias são tentativas de compreensão ou de integração. Fazer parte deste ambiente tem me exigido mais que estar. A poesia tem sido um meio de tentar ser um pedaço da floresta. 

Essas fotografias fazem parte do projeto Madeira de Dentro, Madeira de fora. Você poderia falar um pouco sobre ele? E qual a ligação dele com o (Re)conhecendo a Amazônia Negra?
Madeira de dentro. Madeira de fora: é uma possibilidade de pluralizar a ideia singular da Amazônia. É uma busca através da Amazônia Negra. É uma tentativa de não generalizar, e sim reconhecer. As imagens dizem sobre os costumes e formas de se organizar dentro desses muitos espaços traduzidos muitas vezes por interesses e intervenções vindas do lado de fora. Ou seja, ao fazer relação sobre o que é de dentro e o que é de fora eu tento me conectar com o espaço que vivo. E me colocar à prova dessas raízes. E nem sempre é amistoso. Existem contradições do ser e do estar, o tempo todo, ultrapassando os meus limites muitas vezes, e do espaço também. Dar espaço à condição de estar dentro, muitas vezes, nos surpreende à imagem. Tenho atestado isso. Como também tentando harmonizar essa balança do que é ser parte ou à parte do contexto. Ou seja, uma boa dose de realidade que faz deste trabalho uma empreitada surgida da própria negritude que reconheço ter surgido nestas terras amazônicas, igualmente a mais este lugar de busca.  

No que você está trabalhando atualmente? 
Atualmente estou me reorganizando e fazendo pequenas contribuições com o meio. Por mais que reconheça ser pequeno, o trabalho sempre remete a esta busca de aprofundar no que comecei e que preciso continuar: reconhecer tudo o que preciso para ser parte de uma verdadeira história. 

Você percebe alguma mudança climática na natureza nesse tempo em que você mora e registra a paisagem de Rondônia?
Sim. O período das chuvas se ampliou na região. E isto tem a ver com o desmatamento, aliás, com as várias formas de desmatamento. Por exemplo, aqui temos mais de duas usinas hidrelétricas com suas barragens, o agronegócio e a exploração do minério. Com essas intervenções, em 13 anos, a paisagem mudou abruptamente com a instalação de estruturas que muitas vezes não se relacionam de forma harmônica com o local ampliando estes desequilíbrios.

O que você, que vive a natureza mais de perto, diria para quem vive nas cidades grandes, repetindo e reproduzindo rotinas de consumo e materialismos?
Acredito que ninguém está a salvo da repetição e reprodução de más rotinas de consumo, mas que é possível reconhecer os impactos deste fenômeno e tentar equilibrar, seja na cidade grande ou na floresta, este aspecto nos remeterá sempre à própria questão das nossas referências. O materialismo é uma atitude exacerbada dessas más rotinas que impacta na nossa própria relação com o meio ambiente. Quem vive mais próximo da natureza também está vulnerável a estas atitudes. O reconhecimento é um lugar de início para este descondicionamento.

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