Ensaio

A bolha mais velha

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A bolha mais velha

Sei que o professor Fischer vai me olhar feio por usar um chavão pra começar o texto, mas eu juro: a manhã do dia 1º de junho tinha tudo para ser tranquila, ainda que eu nunca tivesse participado de uma live como painelista. Apresentaria, em nome do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU/RS, o projeto “Nenhuma Casa Sem Banheiro” dentro do painel “Acesso à Água Potável para todos: uma questão de dignidade” – evento do Grupo Interinstitucional de Cooperação Sócio Ambiental (GISA) e da Escola do Tribunal de Contas do Estado.

A primeira exposição foi a da professora Daniela Migliavaca Osório, Doutora em Ecologia, que tratou do saneamento e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Logo em seguida falaria Sandra Ferreira, liderança comunitária da Ilha do Pavão, sobre a realidade de sua comunidade. Beleza.

“Meu papel aqui é trazer o grito de socorro das comunidades invisíveis, aonde eu faço parte”… “Minha revolta surgiu da hipocrisia que eu tenho ouvido na mídia de falar em higienização, em lavar a mão, de higiene, de limpeza, num momento em que a gente não tem água pra tomar”. Sandra continuou, sem apresentação, sem vídeo, sem efeitos ao fundo, lá do seu telefone, nos contando sobre um mundo distante, situado em outro universo, que fica no outro lado da Ponte do Guaíba.

Sandra encerrou dizendo “Fome a gente dá um jeito, mas sem água não tem como fazer”.

O que se diz depois de ouvir isso?  Não sou de ficar quieto e fazer de conta que não ouvi. E ainda que eu seja considerado um sujeito educado, reconheço que tendo mais a me identificar com o “não corro sem ver do quê” do Gildo de Freitas do que com o applomb de um aristocrata inglês.

Comecei a falar, meio engasgado: “a Sandra nos choca com a demonstração de que nós enquanto sociedade falimos na gestão de assuntos que são fundamentais”. Quando eu falei “fundamentais” me referi ao mínimo necessário para permitir a vida em seus termos mais básicos: abrigar-se das intempéries, ter água, comida e condições de higiene suficientes para garantir minimamente a sobrevivência.

Sinceramente, acredito ninguém esperava o choque de realidade que o relato da Sandra nos deu. Particularmente, eu havia me preparado para apresentar, com powerpoint e vídeo (vejam aqui), estes temas principais:

1- Em apenas um ano o CAU/RS conseguiu criar e iniciar a execução do projeto NENHUMA CASA SEM BANHEIRO em Santa Cruz, Lajeado e Caxias, com a meta ambiciosa de acabar com o déficit de unidades sanitárias no Estado;

2- Este projeto conta desde o seu início com o apoio oficial da Secretaria de Obras e Habitação do Estado, Tribunal de Contas e do Ministério Público de Contas, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública, FAMURS e ONU-HABITAT;

3- O CAU/RS e a SOP/RS conveniaram para a construção de 300 banheiros na Região Metropolitana de Porto Alegre, mas que até o dia do evento apenas 5 dos 30 municípios haviam demonstrado interesse.

Este era o meu roteiro, que durou até a Sandra falar que as crianças da Ilha têm furúnculos no rosto e por todo o corpo, diarreia e outras doenças porque não há água limpa e as famílias só têm a água do rio como alternativa. Arrematou: “não tem posto de saúde na ilha desde o ano passado”.  Crianças com furúnculos no rosto e sem posto de saúde. E ela falou assim, nesse tom mesmo, sem ponto de exclamação.

Não tinha muito como aliviar para o Poder Público.

Desde 1994 eu tenho um contato maior com o Direito Administrativo, que rege a ação dos órgãos públicos. No seu entendimento, faltar água, comida e remédio é considerado “da vida”. Pois esse ramo do direito e em certa medida a sociedade e o poder público, vivem numa “bolha” mais velha que essas das redes sociais, e não consideram que a morte de uma criança por falta de comida seja sua responsabilidade – é “problema dos políticos”. O que Sandra nos trouxe não é “suporte fático” suficiente para que se pratique os “atos jurídicos” de afastar as licitações para adquirir de imediato todos os produtos necessários à manutenção da dignidade de toda a população. 

Mas… Todavia… Contudo… Entretanto… Caso a empresa de limpeza contratada para limpar um prédio público abandone o serviço… Cruzes! Parem com tudo! Emergência na certa! Contrata-se uma outra empresa, provisoriamente, sem licitação, até fazer outra licitação – o que pode demorar meses. Essa é a regra.

Diante de relatos como o da Sandra, o que fazer? Falar de um paraíso que surgirá após uma catarse coletiva da humanidade? Constatar que aqui no Brasil, onde as leis “pegam ou não pegam”, o mandamento divino de amar ao próximo como a si mesmo “não pegou”? Não resolve. Crucificar o administrador do momento? Seria desonesto, já que os problemas não são de ontem.

Me recompus, na medida do possível. Eu precisava falar do Nenhuma Casa Sem Banheiro, pois tinha uma relação direta com o que a Sandra acabara de falar.

Fiz um histórico rápido sobre o projeto. A partir de 2018 o CAU/RS iniciou um forte debate sobre a ATHIS – Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social. A ATHIS é uma proposta humanista de alto efeito humanizante concebida por profissionais da Arquitetura aqui do Rio Grande do Sul, liderados por Clóvis Ilgenfritz da Silva. Sucintamente, a ATHIS propõe o SUS da Habitação, através da prestação de serviços técnicos para reforma e/ou ampliação de moradias de interesse social. Quando Clóvis era Deputado Federal a ideia tornou-se um projeto de lei e foi aprovada como a Lei 11.888, de 2008. Várias iniciativas surgiram no país com base nesta Lei, merecendo destaque aquela aplicada pela CODHAB, de Brasília, na gestão do Governador Rodrigo Rollemberg. Aqui no Estado, definiu-se uma linha de ação: é necessário aproximar “arquitetura” e “saúde”, pois existem doenças causadas pelas condições da habitação das pessoas e se é o médico que pode curar a pessoa, é o arquiteto que cura a casa.

Para fomentar a aplicação da ATHIS aqui no Estado, o Conselho criou em 2019 o Gabinete de ATHIS. O Gabinete iniciou a execução do programa CASA SAUDÁVEL, VIDA MELHOR, no qual um arquiteto acompanha as equipes de saúde da família e faz projetos para “curar” a casa de males como umidade, falta de ventilação ou acessibilidade etc. Este Programa começou a funcionar em 2019, em Santa Rosa, e o CAU/RS pretendia levá-lo para outras cidades em 2020. Em março de 2020 o CAU/RS organizou um seminário em que se reuniram mais de 350 pessoas, na sua maioria profissionais e estudantes de Arquitetura e Urbanismo para discutir ATHIS. Um dia depois do evento entramos em lockdown.

Precisávamos nos reinventar diante das novas circunstâncias, e o Presidente do CAU/RS, Tiago Holzmann da Silva, lançou internamente a provocação: como o CAU/RS poderia ser propositivo diante da Pandemia? E a partir daí surgiu a ideia inicial do Nenhuma Casa Sem Banheiro. Na verdade, foi uma espécie de insight a partir do trabalho do GATHIS e seu programa CASA SAUDÁVEL, do mantra “lave as mãos, lave as mãos, lave as mãos” e da lembrança que guardei de uma família que conheci na região sul da Capital, que morava numa peça única, sem “casinha”. O nome, assumo, “roubei” carinhosamente do Brizola, de seu fantástico “Nenhuma Criança Sem Escola”.

Preciso terminar, pois o Professor Fischer foi sovina no número de linhas. 

Se nós falimos enquanto sociedade e poder público, podemos nos corrigir. Apesar de não ser o papel central de um Conselho Profissional, o CAU/RS investiu R$ 500.000,00 do seu orçamento para “romper a inércia”, como diz o Presidente Tiago, cadastrando, selecionando e remunerando os profissionais que vão fazer os projetos dos banheiros. A este movimento somou-se a Secretaria de Obras e Habitação, investindo R$1.300.000,00. Agora cabe aos municípios da grande Porto Alegre unirem-se ao CAU/RS e ao Governo do Estado – que entrou com um milhão e trezentos mil reais, no convênio do Nenhuma Casa Sem Banheiro. Os municípios precisarão investir em média R2.000,00 para construir um banheiro e receberão um projeto arquitetônico, um kit de materiais e mais R$4.000,00. Existe verba para construir 300 banheiros até o final de 2021 e vamos atrás de mais recursos, inclusive com pedido para nossos deputados e senadores apresentarem emendas ao próximo orçamento da União.

Mas precisamos começar hoje, agora. Temos hoje projeto arquitetônico feito por profissionais já selecionados e cadastrados pelo CAURS, dinheiro do Governo do Estado para as obras e temos o apoio institucional e o olhar atento do Tribunal de Contas e do Ministério Público de Contas, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública, FAMURS e ONU-HABITAT. Falta a adesão dos municípios. Falta romper com a inércia.


Fausto Leiria, advogado e atualmente assessor de Relações Institucionais do CAU/RS

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