Ensaio

A democracia e seus descontentes

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A democracia e seus descontentes
“O mal-estar na cultura” é a forma como costuma ser conhecido o texto de Sigmund Freud que, do alemão Das Unbehagen in der Kultur, seria também traduzido, ainda que não de forma literal, por “A civilização e seus descontentes”. Nessa obra, cultuada por diversos estudiosos das humanidades, o psicanalista vienense discorre sobre os efeitos do aculturamento sobre o psiquismo humano, dentre eles a infelicidade, realizando um verdadeiro tratado sobre a questão da renúncia à satisfação imediata dos instintos. Em linhas gerais, Freud defende que abdicar do estado de pura pulsão em que somos concebidos é tarefa árdua, que só se consegue mediante intenso e contínuo trabalho psíquico. A recompensa para tamanho empenho? Um patrimônio cultural elevado, composto por linguagem, artes, ciência, leis, instituições… tudo que favoreça o convívio social, essa pedra no sapato do narcisismo humano.  Engana-se quem acredita que essa seja uma conta fácil de fechar, na qual o que se perde em selvageria se ganha em civilidade. Quando se trata do humano, nada é simples. Aliás, é justamente a complexidade da existência que acaba rejeitada em momentos nos quais o retorno à barbárie se insurge.  Não é de hoje que sabemos que as relações entre as pessoas são fonte de tensão, angústia e sofrimento. A história da humanidade, composta de inúmeros capítulos horrendos, revela invasões, escravidão, violência sexual, genocídios. Formas diversas de subjugar o outro, de não tolerar o diferente, de subverter a ordem mínima necessária para vida em sociedade. Lembremos ainda que o ensaio que inspira essa escrita foi gestado em 1929 e publicado em 1930, período de ascensão do nazismo na Europa. O futuro, como de costume, repetindo o passado. Mas ainda que olhar pelo retrovisor não pareça muito inspirador para esse momento, não se pode prescindir dessa opção.  Alguns anos atrás, dois vereadores de Porto Alegre propuseram uma mudança de nomeação de uma importante via de Porto Alegre, a Avenida Castelo Branco, que deixaria de carregar o nome de um militar integrante da ditadura e passaria a simbolizar a queda desse regime, chamando-se Avenida da Legalidade e da Democracia. A mudança começou a ser debatida em 2011, foi aprovada em 2014 e considerada ilegal em 2018. Para além das questões jurídicas que envolvem o episódio, interessa também o aspecto simbólico de tudo isso: pessoas dispostas a condecorar um período nefasto da história do Brasil.  Quanto a isso, impossível deixar de lado a homenagem do ex-presidente ao torturador Brilhante Ustra durante seu voto a favor do impeachment da presidenta Dilma Roussef, em 2016. Naquele momento, muitos alertaram para a gravidade do caso e solicitaram medidas mais extremas, esquecidos, talvez, de outra atitude criminosa cometida por ele dois anos antes, quando disse à então deputada Maria do Rosário “eu não te estupro porque você não merece”. A violência contra a mulher atualizando sua marca perene; o fascismo se instalando sem encontrar resistências. A importância de retomar tais momentos dramáticos de nossa tão propagada “jovem democracia” está na análise dos discursos de cada época, que revelam o que […]

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