Ensaio

A hora e a vez de Dias Gomes receber a Palma de Ouro, em Cannes

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A hora e a vez de Dias Gomes receber a Palma de Ouro, em Cannes

Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999) escreveu um dos clássicos do teatro brasileiro, que se tornou filme premiado com Palma de Ouro, Cannes, em 1962. Foi o único filme brasileiro a receber este prêmio, que também consagrou o diretor Anselmo Duarte. Com o tempo, ficou claro que O pagador de promessas (1960), ao lado de Auto da Compadecida (1957), de Ariano Suassuna, e de Eles não usam Black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, estabelece os momentos significativos de pesquisa de heróis populares no teatro brasileiro. Trata-se de autores inventivos e combativos, que estreiam no quadro nacional-desenvolvimentista contemporâneo a Juscelino Kubitschek,  Jânio Quadros e João Goulart, e que participam de um debate que se tornaria mais radical e disposto à resistência depois do golpe de 64.

O teatro brasileiro repercutia com força a discussão sobre pobres, desenvolvimento, desigualdade, etc., e, enquanto gênero artístico público, concentrava atenção como espaço de querela e resistência. Cabe registrar que nossa tradição teatral clássica recente, talvez mesmo a tradição que restou, tem aqui um núcleo forte. Do Auto da Compadecida a Eles não usam Black-tie até o citado O pagador de promessas, temos um conjunto de peças que tratam sobre o que fazer com os pobres brasileiros, como enunciar suas demandas, etc., além de darem resposta estética  à questão de como representá-los no palco, claro. Décio de Almeida Prado já notou, em ensaio certeiro, que se tratava de autores nacionalistas, quase todos de esquerda, dispostos a promover uma certa busca da autenticidade, ou pelo menos debater o nacional e o popular. Em movimento análogo e complementar, o cinema brasileiro fazia coisa assemelhada, o que vai dar no célebre Cinema Novo.

Ao expor as agruras da trajetória de Zé do Burro, Dias Gomes alcança afirmar um protagonista comovente: temos um lavrador baiano e pobre, cheio de boas intenções que serão testadas pela violência das forças urbanas da ordem, em Salvador. Aqui está um herói abnegado e ingênuo que dá andamento elevado para o conjunto da trama: Zé do Burro tem um destino a cumprir, ou melhor,  uma promessa a cumprir. Ele prometeu entrar com sua cruz na igreja de Santa Bárbara, na cidade de Salvador, a fim de retribuir à Iansã/ Santa Bárbara a salvação de Nicolau, seu burro.

Zé deixou no interior da Bahia sua pequena propriedade e veio trazendo sobre os ombros uma pesada cruz de madeira para pagar a graça concedida. Ele vem acompanhado de sua mulher, Rosa, que, diante das dificuldades impostas pelas autoridades (padre,  monsenhor, delegado, etc.), aconselha o marido a desistir de seus planos. A própria Rosa não resiste ao assédio de Bonitão, um gigolô que ronda o casal de lavradores desde o primeiro ato, e depois de entregar-se ao conquistador, entre arrependida e ressentida, insiste para que o marido abandone sua obsessão. 

Tudo se passa em uma praça em frente à igreja, e é aí que o singelo mas pertinaz Zé do Burro suporta paixão e morte. Traído pela mulher, contestado e expulso pelo padre, arrochado por policiais, nosso herói é o antimalandro, o oposto de Macunaíma: ele exala caráter por todos os poros, movido a fé cega e persistência. Isento de malícia, ele não evita revelar ao padre que sua promessa foi feita em terreiro de candomblé por afeto dedicado ao bicho. O padre, horrorizado pela liga sacrílega entre macumba e bestiofilia, recusa acesso ao templo: Zé vai permanecer ao relento, na praça.

Um perfil nacional popular que vai da ingenuidade camponesa  ao sincretismo católico e afro-brasileiro, sem esquecer o pendor coletivista que o fez distribuir suas terras entre os vizinhos. A imprensa sensacionalista tratará de martelar mais alguns pregos no caixão do herói quando atribuir traços socializantes e contestatórios ao pertinaz Zé do Burro. A informação deformada atiça mais a violência de meganhas e a intolerância de sacerdotes e crentes.

Barrado por sua heterodoxia religiosa e reprimido por policiais, nem por isso nosso herói está só. Ou melhor, justamente por isso Zé do Burro conta com aliados do campo popular. É visto com simpatia pelo poeta  Dedé Cospe Rima, por Galego, dono do boteco perto  da igreja, e por Minha Tia, a baiana quituteira que faz ponto na praça. Embora o apoio popular coletivo, para além das simpatias pequeno-burguesas de artistas e comerciantes, emerja dos capoeiras e de seu líder Mestre Coca. Quando a polícia já vem chegando, temos a seguinte conversa:

Coca – Ande depressa que nós aguentamos eles aqui até você ganhar o mundo!

Zé – Não, eu não vou fugir como qualquer criminoso, se estou com a minha consciência tranquila.

Dedé – Ele não se separa da cruz. 

Coca – A gente esconde a cruz.

Minha Tia – E de noite ele leva ela para Iansan.

Coca – Vamos todo mundo levar! Todos os capoeiras da Bahia!

Um tanto abatido, Zé do Burro mantém-se irredutível e, no entrevero armado entre populares, capoeiras e forças da ordem, quem leva o tiro fatal é ele. Depois da retirada da polícia, Mestre Coca lidera silenciosamente os capoeiras, que carregam o cadáver sobre a cruz para dentro da igreja. Literalmente nos braços do povo e carregado sobre sua cruz, o corpo de Zé do Burro finalmente adentra o templo. Lá fora ouve-se a trovoada sobre a praça e vem a última deixa:

Minha Tia (Encolhe-se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o chão e a testa) – Eparrei, minha mãe! 

A última palavra fica com a religiosidade negra e popular, em registro explícito da força do povo que invade o recinto da igreja enquanto o candomblé se afirma lá fora, na praça. 

Bem, o conjunto da obra padece de didatismo populista, que limita o alcance estético enquanto enfatiza   o caráter elevado do destino de Zé do Burro. O que não se pode negar é a fluência extraordinária do diálogo de Dias Gomes, craque que será  aproveitado pela Globo, senhora da indústria cultural brasileira. Valeria a pena comparar o destino desgraçado desta obcecada vítima redentora com a boa sorte daquele também herói popular João Grilo, do Auto da Compadecida. Afinal ambos os heróis são representantes de uma linha artística muito estridente e crucial, em sua busca de personagens que representassem o peculiar proletariado nacional. Tanto em Suassuna quanto em Dias Gomes são dois pobres rurais nordestinos; mas o que Zé do Burro tem de trágico, João Grilo tem de farsesco e malandro.

Naquele início de década, este muito brasileiro Zé do Burro virou produto de exportação, cruzou o Atlântico e recebeu o prêmio supremo de Cannes, em 1962, logo depois de estrear nos palcos. Quem cometeu a façanha foi o diretor Anselmo Duarte, de carreira de ator consolidada. Este clássico, que viria a ser acusado de populista pela rapaziada do Cinema Novo, ganhou as simpatias do júri cosmopolita, o que é significativo. O filme, se não me engano, já era uma imagem do Brasil – e do então chamado Terceiro Mundo – pronta para ser consumida pela  plateia bem pensante brasileira e europeia, disposta a se emocionar com o sofrimento da pobreza ingênua e digna. O pobre rural sem emprego e muito menos dinheiro, portanto também não inserido (conspurcado?) no (pelo) mercado.

O diretor Anselmo Duarte nunca voltou a filmar nada de relevante, teve sua hora e vez ao acertar a câmera pelo ângulo adequado da época. Mas talvez seja mais lembrado, em pessoa, por ter sido o galã supremo das chanchadas da Atlântida e dos melodramas da Vera Cruz. Ironia a ser saboreada: o galã do cinema brasileiro considerado de terceira categoria, um arremedo de cinema em quadro subdesenvolvido, conquistou a consagração do prêmio europeu chique. Auto da Compadecida também virou filme ainda nos anos 60, mas, até por passar pela comédia mais ou menos farsesca, nunca teve o impacto de O pagador de promessas, cuja premiação, segundo consta, contou com o entusiasmo de François Truffaut no júri. Que o refinado diretor de Jules et Jim e de A mulher do lado tenha se apaixonado por aquele nosso Zé é um testemunho eloquente dos anos sessenta, suas promessas e impasses.


Homero Araújo é professor de Literatura na UFRGS, autor de Futuro pifado na literatura brasileira – Promessas desenvolvimentistas e modernização autoritária (editora da UFRGS), entre outros.

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