Ensaio

As mulheres que botaram o Rio Grande do Sul para dançar

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As mulheres que botaram o Rio Grande do Sul para dançar

“Dançar é coisa de menina”. Essa frase repleta de preconceito é ainda repetida e associada a um certo imaginário do balé com mulheres frágeis e delicadas. Contudo a história da dança não se resume a essa redutora identidade. No Rio Grande do Sul essa arte nasce de mulheres arrojadas, empreendedoras, inventivas, que desafiaram padrões e normas para que ela fosse consolidada. Um pouco dessa história é recuperada na exposição “Modernas eram elas – A dança na Porto Alegre da primeira metade do século XX”, coordenada pelo Centro Municipal de Dança da Secretaria Municipal da Cultura. O evento foi aberto dia 22 de setembro na Galeria do Goethe Institut Porto Alegre e é a primeira iniciativa do projeto Memória Dança POA, em comemoração aos 250 anos da cidade.

Essa história remete à metade da década de 1920, em Porto Alegre, quando começava a nascer o Instituto de Cultura Física (ICF), de Mina Black e Nenê Dreher. Ele tinha o objetivo de formar corpos expressivos de dança tendo como base de ensino a eurritmia, método desenvolvido pelo músico e pedagogo austríaco Emile Dalcroze (1865-1950). Essas duas mulheres forjaram o espaço para pesquisa, estudo e qualificação que envolvia a ginástica rítmica e acrobática, estudos expressivos e improvisação. O Instituto, por sua vez, preparou as jovens Lya Bastian Meyer, Tony Seitz Petzhold, Irmgard Hofmann Azambuja e Salma Chemale para serem bailarinas, coreógrafas, educadoras e produtoras, coisa que não era nada usual na época. Essas quatro mulheres fundariam as primeiras escolas de bailados clássicos nas décadas de 1930 e 1940 na capital.


Lya e Tony em cena, juntas

Nesse processo, a dança surge na esteira da modernidade e com o protagonismo feminino, como fez a dança moderna dos Estados Unidos e da Alemanha que projetou nomes como Isadora Duncan, Mary Wigman, Martha Graham. E isso não é um detalhe visto que o nascimento do balé se deu num território exclusivamente masculino, com os mestres do balé da corte do século XVI, ou durante o reinado de Luís XIV, quando apenas homens dançavam. Portanto, Porto Alegre é tributária dessa marca moderna. São mulheres que vão constituir as bases para uma formação de dança cênica, com a fundação das primeiras escolas de dança e com uma produção artística continuada que firmaram um público e uma crítica especializada nas primeiras décadas do século XX.

Essas mulheres subiram no palco para interpretar fadas e princesas indefesas, mas também odaliscas sedutoras, guerreiras destemidas e até mesmo figuras masculinas, já que não existiam rapazes dedicados à dança. Lya Bastian Meyer conseguiu a façanha de instituir a Escola Oficial de Dança do Theatro São Pedro, em 1939, que deveria ser mantida com recursos da loteria do Estado. 

Também as obras que encenaram atestam suas ousadas criações, com complexas personagens como a da santa, mártir, líder militar e herege em Joana D´Arc (1948), de Lya Bastian Meyer. Ela que já em 1938 apresentava-se em Berlim, na Alemanha, com coreografias como Danza del ritual del Fuego, com música de Manuel Falla, e Batuque, com música de Radamés Gnatalli. Também trazendo uma nova temática para o balé, Tony Petzhold interpretou a Teiniaguá. A obra, inspirada na lenda gaúcha, ganhou versão de caráter expressionista, com a intérprete dançando caracterizada como um lagarto gigante em A Salamanca do Jarau (1945), inaugurando uma mitologia local para a dança gaúcha. 

Irmgard por sua vez lecionou poucos anos e fechou sua escola para viajar pelo interior dançando solos elogiados por críticos do período, cheios de poesia e movimento, ao som de Claude Debussy e Francis Poulenc, compositores de vanguarda para a época. Ela chegou ainda a integrar a OSPA como violinista na sua primeira formação, em 1950. Outra dessas destemidas artistas foi Salma Chemale, que fez sua interpretação memorável em A Princesa Moura (1930), releitura de Sheherazade, e ao longo do tempo se firmou como uma empresária que fez da dança uma atividade de sucesso por três gerações, ainda ressoando na cena artística da capital. 

No meio dessas reminiscências, como não lembrar de Tony Petzhold contando que teria sido uma das poucas a dirigir um automóvel e vestir calças compridas em público e que, com a chegada da televisão no Rio Grande do Sul, comandou o programa “Na ponta dos pés”, na extinta TV Piratini? Uma idealizadora que também viria a criar um dos mais populares grupos de dança do Estado, o Ballet Phoenix.

Essas mulheres ajudaram a fundar a Associação Gaúcha de Dança (ASGADAN), em 1969; criaram e administraram escolas, grupos e companhias; encenaram centenas de obras e formaram gerações de artistas que marcaram a cena local como Morgada Cunha, Lenita Ruschel Pereira, João Luis Rolla, Tais Virmond, e também nomes de projeção nacional e internacional como Beatriz Consuelo, Rony Leal, Antonio Carlos Cardoso, Eleonora Oliosi, Jane Blauth,  Carlos Moraes e Emilio Martins.

A recuperação dessas histórias da dança é resultado de uma pesquisa que iniciei na década de 1990 de forma independente, e depois foi contando com apoio de estudantes do curso de dança da UERGS e finalmente ganhou forma com o trabalho da equipe do Centro de Dança. A exposição reúne preciosos acervos das famílias das artistas, as mais de 700 edições da Revista do Globo, Correio do Povo e Diário de Notícias, bem como o acervo do Centro de Memória do Esporte (CEME) da UFRGS. Dentre os destaques está um manuscrito de Irmgard, com mais de uma centenas de fotos e a descrição de passos e sequências de aula que data de 1935, além de uma relíquia afetiva guardada pela aluna de Lya, Morgada Cunha: um pedaço do pavilhão que abrigou a Escola Oficial de Balé no Theatro São Pedro.



O público poderá conferir fotografias, programas de espetáculo, reportagens da época, objetos pessoais das bailarinas e até mesmo um vídeo com algumas das últimas criações coreográficas de Irmgard Hofmann. Também integram a exposição entrevistas com nomes como Morgada Cunha, Lenita Ruschel Pereira e Rony Leal, que estudaram e dançaram com essas mestras. A exposição conta com uma detalhada linha do tempo desse período, biografias dessas artistas, depoimentos em vídeo e uma parede interativa para que o público possa deixar registrado quem foram suas professoras de dança ou em que período estudaram com essas mestras.

Como traduz a entrevista de Lya, em 11/03 de 1934, ao jornal Correio do Povo: “Quero criar artistas na expressão mais pura da palavra, e não candidatas a prêmios de beleza…” Elas foram pioneiras bastante modernas: não se contentaram em ser apenas mães e esposas, também ousaram ser artistas, educadoras e empreendedoras que mudaram os rumos da dança no Rio Grande do Sul.

EXPOSIÇÃO “MODERNAS ERAM ELAS – A dança na Porto Alegre da primeira metade do século XX”
Local: Galeria do Goethe-Institut Porto Alegre (Av. 24 de outubro, 112)
Inauguração: 22 de setembro, às 19h
Visitação: de 22 de setembro a 29 de outubro de 2022
Segunda a Sexta, das 9h às 19h, e Sábados, das 9h às 13h

Ficha Técnica:

  • Proposta e coordenação geral: Airton Tomazzoni
  • Pesquisa, curadoria e textos: Airton Tomazzoni e Clarice Alves
  • Edição e tratamento de imagens: Clarice Alves, Duda Mosseline e Grace Fernandes
  • Cenografia e direção de arte: Rodrigo Shalako
  • Assessoria de Comunicação: Ilza do Canto
  • Design Gráfico: Refazenda Comunicação
  • Captação de imagens e edição dos vídeos: Fernando Muniz
  • Montagem: Shalako Produções
  • Iluminação: Daniel FetterRealização: Centro de Dança da SMCEC

Apoios: Goethe-Institut Porto Alegre, Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho, Centro de Memória do Esporte (CEME).


Airton Tomazzoni é coreógrafo, jornalista e diretor do Grupo Experimental de Dança da Cidade de Porto Alegre. Doutor em Educação pela UFRGS.

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