Ensaio

Cafeína, literatura e vanguarda: El café de nadie

Change Size Text
Cafeína, literatura e vanguarda: El café de nadie

Graças ao mais recente filme de George Clooney, The tender bar, o leitor contemporâneo pode confirmar uma máxima irrefutável: “Uma literatura é um bar”.

Espaços de sociabilidade literária, restaurantes, bares e cafés carecem da atenção devida – quiçá porque ainda nos assola a imagem do escritor solitário, recluso na sufocante estreiteza da torre de marfim, onde só há espaço para um Eu isolado, incompreendido, que, com a bunda torturada pelo esforço, briga com a página em branco enquanto aguarda a visita das musas, sempre esquivas.

A Semana de arte moderna foi, como escreveu a professora Márcia Camargos, autora do livro Semana de 22: Entre Vaias e Aplausos, “uma cruzada contra a arte esclerosada”, essa doença que ameaça colapsar o organismo inteiro. Para manter a saúde, importantes foram as ágapes onde se congregavam os modernistas em distintos locais de São Paulo, “como o bar Rutli, na Rua Barão de Itapetininga, onde bebiam absinto, para escândalo de muitos.” Longe daquele tempo mítico, o mestre Antonio Candido revelou que ele ainda chegou a frequentar o bar, mas ao invés de infusões bravas bebia refrescos enquanto discutia literatura com seus confrades.

Se no Banquete Platão inaugurou as perguntas pelas quais a filosofia ocidental transitou ao longo dos seguintes 2000 anos, na Cidade do México restaurantes, bares e cafés são por definição históricos. No bar La Ópera, situado na avenida 5 de Mayo, procissões de turistas vão para observar no teto o buraco do tiro enraivecido que deu Pancho Villa para tirar daí as tropas que estavam comemorando vitória antes de tempo.  É no Sanborn´s de los Azulejos, na rua Madero, onde foi tirada a foto que registra Pancho Villa e Emiliano Zapata almoçando após tomar a capital do país. Foi no restaurante La Bombilla, em San Ángel, onde Álvaro Obregón foi assassinado pelo cristero José de León Toral. Com humor corrosivo, em sua peça de teatro El atentado, Jorge Ibargüengoitia representa o homem forte do México morrendo de maneira farsesca: ao invés de proferir as majestáticas palavras com que a história de bronze costuma recordá-los, o tirano cai fulminado sobre a mesa, engasgado num modesto prato de feijão.

Em Os detetives selvagens e A pista de gelo, Roberto Bolaño registra, com exatidão, que na Cidade do México os poetas sempre foram nômades. Nesses romances, o célebre Café de la Habana (onde se conheceram Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara, e em cujas mesas imaginaram futuros destinos que concretizariam em Sierra Maestra) é recriado como El café Quito, frequentado esporadicamente pelos “poetas de hierro”.

Em “Aqueles anos 20”, Theodor W. Adorno dá testemunho de que essa época, marcada pela revolução bolchevique, foi vista como promessa de uma revolução social de proporções mundiais que poderia colocar fim à sensaboria e alienação da vida no capitalismo. A essa era devia corresponder uma arte de avançada, feita por artistas desconformes e visionários, sintonizados com o futuro. À sua maneira, os diversos movimentos de vanguarda (futurismo, surrealismo, cubismo…) tentaram ser portadores do novo tempo por vir.

Após a revolução mexicana, enquanto os pintores Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros, José Clemente Orozco, Jean Charlot e outros construíam nos seus murais uma visão do México, seus escritores andavam à procura de uma literatura. Prosistas e romancistas a encontraram nos debates travados entre 1924 e 1925, após dos quais nasceu a tradição do Romance da revolução. E os estridentistas, uma das vanguardas mexicanas, perambulando pela cidade, a fundaram em El Café de nadie (O café de ninguém).

Em um dia de chuva, diz a mitologia, o poeta Manuel Maples Arce caminhava pela avenida Jalisco, hoje Álvaro Obregón (rua que mereceria melhor nome, mas o poder se eterniza na nomenclatura que deposita no espaço geográfico e nas folhas dos almanaques), na colônia Roma, e para se proteger do toró e poder concluir a nota que deveria entregar no jornal El Universal, entrou no café que estava situado no número 100 da rua. De acordo com o crítico Marco Antonio Campos, “no estabelecimento não havia ninguém. Passou a outro dos cômodos, onde só encontrou uma cafeteira que fervia. Serviu-se, voltou à sua mesa e bebeu o café. Como ninguém veio a cobrar, pagou a ninguém e deixou uma gorjeta para uma garçonete que nunca viu. E foi embora assim, e assim voltou outras noites ao café onde nunca encontrou ninguém.” 

A partir desse momento, o café, que tinha o burocrático nome de Europa, passou a adotar o mais literário de El café de nadie, e a partir de então é conhecido na história da literatura mexicana e hispano-americana como o glorioso reduto de um dos grupos de vanguarda mais importantes do continente: os Estridentistas.

Na literatura mexicana, bares e cafés sempre foram espaços privilegiados de sociabilidade literária. Sua história, em que a imagem do escritor robinsoniano é exceção, está marcada pelo espírito de tertúlia. Foi assim desde a era pré-cafeína, com La Academia de Letrán e o Liceo Hidalgo, e assim continuou até finais do século XIX, com os modernistas (algo assim como os parnasianos ou os simbolistas no Brasil), que “en dulche charla de sobremesa”, como disse famosamente o poeta Manuel Gutiérrez Nájera, se reuniam para formular poéticas, escrever consignas, desbancar gerações e consolidar novos grupos).

De acordo com Arqueles Vela, só a partir do terceiro quartel do século XIX surge no México o café literário, que imediatamente se erige como epicentro da vida intelectual do país. Malditos, como exigia a literatura de fim-de-século, os poetas do período contrapesavam a decadência com absinto, “deusa verde da Quimera” que, no dizer do poeta Bernardo Couto Castillo, “dá os devaneios cor de rosa, os exotismos, os refinamentos da ilusão”, às mentes escurecidas pelo pesar.

E assim como a Semana de 22 teve entre suas fileiras pintores como Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, escritores como  Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Manoel Bandeira, e músicos como Heitor Villa-Lobos, assim também o movimento estridentista congregou pintores como Diego Rivera, Fermín Revueltas, Ramón Alva de la Canal, músicos como Manuel M. Ponce, Carlos Chávez, Silvestre Revueltas, e os poetas Germán List Arzubide, Arqueles Vela, Luis Quintanilla, Salvador Gallardo, entre muitos outros.

Foi no Café de nadie onde Manuel Maples Arce e seus confrades assinaram os primeiros números de Actual, páginas em que, unindo forças com a classe operária que começava a se organizar, propunham uma arte revolucionária que sintetizara as ideias de outros movimentos de vanguarda. Nessa empreitada modernizadora, não estavam sós. Carlos Pellicer, poeta que pertenceu ao outro grupo da vanguarda mexicana, Los Contemporáneos, escreveu: “Amo as máquinas, as grandes máquinas. / Meu corpo canta sobre um pedestal quando escuto e vejo e toco as máquinas.”

A literatura em espanhol também oferece imagens da arte esclerosada. Em A colmeia, romance do espanhol Camilo José Cela onde se apresenta a vida lúgubre dos primeiros anos do franquismo, “La Delicia” é o bar das ilusões exangues. Nele se reúne um conjunto de poetas que não são já os boêmios revolucionários do século XIX, mas diletantes que aspiram a ser gramáticos e a escrever discursos empolados de prêmios que jamais receberão. Em uma das cenas mais memoráveis, eles descobrem que os mármores das mesas onde bebem café e conversam durante horas são, na verdade, lápides do cemitério.

Não é esse o caso dos estridentistas, cujo grito de guerra era: “Chopin à guilhotina e Chaplin ao pódio.”

Em El café de Nadie, romance vanguardista de Arqueles Vela, o estabelecimento é apresentado numa rua pré-moderna, “tumultuada pelo sol”. Ainda não se trata da cidade de cimento e aço, com linhas bem traçadas, como aparece nos desenhos das capas da revista Horizonte, mas “a cidade derruída e abandonada”, “assolada por pré-históricas catástrofes”. Nela, a primavera “está sempre amarrada a seus postes telegráficos”, e de noite as árvores, “acordadas violentamente pela carreira do carro, tropeçam ao longo da rápida perspectiva.” 

Para entrar no café, é preciso passar pelo vão que conduz a uma dimensão rarefeita em que os movimentos se tornam irreais, embaçados pela fumaça do cigarro e por um ambiente onde parece nunca haver ninguém, embora se tenha a impressão de que o espaço está habitado por fantasmas. Neste café, que para Robert Weston (que o frequentou junto com sua mulher, a também fotógrafa Tina Modotti) tinha a aparência de “una casa de citas”, quer dizer, um café à la bataclana, os fregueses procuravam o refúgio e a privacidade dos “reservados”, lugar onde se dão os encontros de Mabelina, a protagonista, com os homens.

Graças a abundantes doses de cigarro, álcool e café que provocaram os constantes estados de insônia que aparecem nos poemas de Maples Arce, foi nesse espaço que muitos textos estridentistas foram esboçados, como La señorita Etcétera, de Arqueles Vela, Andamios interiores, do próprio Maples Arce, os poucos números da revista Irradiador, e aí foi idealizada a importantíssima revista Horizonte.

E para não destoar da tradição hispânica, que tem por hábito registrar a gastronomia literária, El café de nadie também tinha seu canônico menu:

CARDÁPIO de hoje.

Sopa de ostras.

Ovos ao gosto do freguês.

Vitela cozida.

Chuchu em molho pipián.

Salada.

Feijão.

Doces diversos.

Chá ou café.

Para tentar recriar esse ambiente de sociabilidade literária, imaginemos que uma noite de finais de 1922, excitado pela cafeína, Manuel Maples Arce gritou aos circunstantes que era preciso fazer um apelo aos inconformados, ao que outro retrucou que sim, que era preciso expressar desprezo à “velholatria ideológica de alguns valores”. Já animados, talvez foi Germán Lizt Arzubide quem pediu “a possibilidade de uma arte nova, juvenil e palpitante”, e Arqueles Vela, para complementar, fez a exaltação “das máquinas e das explosões operárias”, e disse que a poesia e a pintura “deveriam ser verdadeiras”, e não “aquele bando de asneiras” publicadas por um tal de “Gabrielito Sánchez Guerrero, docinho espiritual de patricinhas emperiquitadas”. Já em estado de euforia, fora de si, alguma voz anônima pediu para CAGAR em cima das estátuas dos heróis da pátria (já que somente “Charles Chaplin é fundamental, representativo e democrático”) e de outras figuras públicas. Sim!!!, disseram todos em uníssono, porque é preciso proclamar como única verdade, “a verdade estridentista. Defender o estridentismo é defender nossa vergonha intelectual. Os que não estiverem conosco serão comidos pelos urubus”.

Finalizado o Manifiesto Estridentista de 1º de janeiro de 1923, com fome, todos teriam gritado: “¡Viva el Mole de Guajolote!” E a seguir, assinaram Manuel Maples Arce, Germán List Arzubide, Salvador Gallardo, M. N. Lira, Mendoza, Salazar, Molina e mais duzentos.

Em 12 de abril de 1924 teve ocasião a “Tarde estridentista”. No Café de nadie foram lidos fragmentos da história do café, algumas poesias, e artistas como Jean Charlot, Leopoldo Méndez, Ramón Alva de la Canal e Germán Cueto expuseram algumas de suas obras.

Assim como no Brasil o mecenas da Semana de arte Moderna foi Paulo Prado, que passava o chapéu junto à elite cafeeira para financiar os artistas, assim o estridentismo teve no general Heriberto Jara o homem forte do movimento, que inclusive os levou para a cidade de Xalapa, estado de Veracruz, para que a transformassem literariamente em Estridentópolis. Nesse estado cafeeiro, continuaram as atividades do grupo, que chegaram a seu fim por razões políticas, quando Jara foi destituído pela legislatura local.

Por se tratar de uma história descafeinada, o que veio depois perde interesse para estas linhas.


Víctor Manuel Ramos Lemus nasceu na Cidade do México (CDMX) e desde 1997 mora no Rio de Janeiro. Leciona literaturas hispânicas e teoria literária na UFRJ, e é autor de ensaios sobre autores brasileiros, espanhóis e hispano-americanos – sem distinção nem preconceito. Em sua condição simultânea de “chilango” e “carioca”, atualmente divide seu tempo entre o Rio de Janeiro, a Cidade do México e Porto Alegre, cidades que considera, em diversas gradações e intensidades, excelentes para o exercício da loucura e da amizade.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.