Ensaio

Dez álbuns da atual canção latino-americana – Segunda parte

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Dez álbuns da atual canção latino-americana – Segunda parte

Luz – Ceshia Ubau

Aos 25 anos a nicaraguense Ceshia Ubau possui voz jovial e postura de quem escreveu as letras “quando tinha 40 anos em outra vida” (citando um verso seu). “Luz” é seu segundo disco, de arranjos minimalistas, muito baseados em sintetizadores e instrumentos de teclas acústicos (piano, acordeom, marimba). O tom geral varia entre baladas de amor e canções de autor. Equilibra escritos apaixonados e observações amadurecidas sobre a vida.

Na segunda faixa, entoa “busco el amor” diversas vezes. E impressiona a forma como Ceshia acentua melodicamente o verso, sempre com intervalo descendente, o que fortalece o sentido afirmativo e seguro de sua afirmativa. Ou seja, não é uma busca solta, que se estende em uma nota que se alonga por mais um compasso. É uma assertiva sobre um verso de sentido aberto. Essa ambiguidade enriquece a canção e afasta a compositora de uma possível incipiência juvenil.

Tem uma balada mais caracteristicamente pop, “Otra canción de amor desesperada”, que sucede “Seres queridos”, que acaba com um coro callejero captado como se fosse ao vivo e se aproxima da música folclórica. Um momento diferente no álbum que é marcado pelo tratamento eletrônico das sonoridades típicas da Nicarágua e da América Central. 

“Brindis” é uma das canções mais impressionantes deste trabalho, com sua mescla eletroacústica em plena forma e uma letra potente: “Traigo para este brindis/ Una foto de mi mama y la canción/ Que escribí a los cuarenta/ De otra vida a mi nación”. Uma das mais tipicamente canção de autor latino-americana, ao lado da última do disco, a única só de voz e violão, “Sáname”, com participação do cantautor Mario Ruiz.

Ceshia Ubau possui uma carreira recente e intensa. Seu single “Una vela”, em homenagem aos mortos em protestos de rua na Nicarágua em 2018, causou grande repercussão e perseguição política. Hoje ela vive na Costa Rica.

Nacarile – iLe

iLe começou a carreira como cantora no icônico Calle 13, grupo de onde saiu também o rapper Residente. Sua estreia solo foi com o premiado “iLevitable” (2016), seguido do super engajado “Almadura” (2019). Agora a porto-riquenha chega com um álbum eclético, de momentos mais pop e outros experimentais, mantendo sua distinta potência feminina.

Suas composições reunidas neste trabalho foram criadas no período pandêmico e trazem inquietações representadas na negação radical e típica de Porto Rico: “¡nacarile del oriente!”. Começa com “A la deriva”, com impactante arranjo de vozes, com a participação das cantoras do grupo indie mariachi Flor de Toloache. Combina harmonia tradicional com efeitos tecnológicos.

“Traguito”, em duo com a chilena Mon Laferte, é um dos destaques, um bolero bem ao estilo popular que faz sucesso no México há mais de um século, e que passa por uma revalorização nostálgica. Aliás, as tintas mexicanas se estendem ao longo do disco, incluindo a presença de Natalia Lafourcade, com quem compôs em parceria a cúmbia desconstruída “En cantos”. Uma letra irônica que joga com a ambiguidade do amor e do desamor.

Em meio à diversidade de ambiências, arranjos e gêneros, a célula base da canção se afirma. “(Escapándome) de mí” é uma das melodias mais belas, que emerge de mais um arranjo lúgubre. Na canção de protesto mais direta de todo disco, “Algo bonito”, uma cumbia pra se cantar en la calle durante alguma manifestação em algum país latino-americano. “Ya me tienen las huevas hinchadas/ Si protesto me llaman subversiva/ Y sé que mi rabia te incomoda/ Porque sé que me prefieres compasiva”. Letra dura, que ataca com o rap de Ivy Queen, mas com um refrão que congrega num uníssono satírico: “Dime algo bonito/ Quiero escuchar algo bonito”.

Melancolia e ativismo imprimem a tônica deste álbum que nega muita coisa, mas que também afirma e brilha nas sacadas irônicas e nas belas melodias que só emergem na experiência sensível de escuta. Contudo, não é preciso tanta atenção para sacar o que iLe está dizendo o tempo todo: ¡nacarile al patriarcado!

Mientras tanto, en Montevideo – Gonzalo Deniz

“Matou Franny Glass com um discaço”. Essa foi a manchete do ano na música uruguaia. Acontece que o compositor Gonzalo Deniz deu uma guinada em sua carreira depois de alcançar notoriedade com um codinome e uma estética indie. Agora passou a assinar com nombre y apellido de batismo e foi assim que assumiu sua veia de cantautor e revisitou boa parte do repertório, despindo-o de efeitos. No disco lançado em 2022, sua voz e seus arranjos passaram a soar límpidos, de forma a garantir indicações nos próximos prêmios, incontestavelmente dentro da categoria de Música Popular Uruguaia.

Há mais vozes, mais músicos, mais coletividade e clima doméstico, mais próximo da sala de estar e longe dos estúdios com suas técnicas impressionantes. Em “Adonde Van los Pájaros”, por exemplo, o piano solo de Luciano Supervielle conversa de igual pra igual com a melodia cantada, promovendo a sensação de que ambos estão sentados lado a lado e se olhando ao tocar.

Começa com uma faixa galopante, “Hay Cosas Que el Tiempo No Va a Curar”, de embalo campeiro acústico apoiado no acordeon. Encerra com “Mientras tanto, en Montevideo”, tango marcado por um violão lo-fi dissonante, que reveza entre o sublime e o desconforto, até a entrada de um bandoneón lânguido, que eleva a canção a um lugar mais confortável, onde encontra um coro feminino.

No meio, composições brilhantes, como “Mientras el viento sopla afuera”, lançada em 2017 com lindos efeitos eletrônicos nos graves. Agora relida com um punch roqueiro, ancorado em violão e percussão, e uma flauta que emula o assobio do vento.

R.I.P. Franny Glass, 2022. Um caso típico de morte e renascimento.

Filarmónico 20 años – Marta Gómez

Não é todo cancionista que tem a possibilidade de celebrar duas décadas de carreira com arranjos orquestrais para suas canções mais marcantes. A colombiana Marta Gómez teve esse privilégio com a Filarmônica Juvenil de Bogotá. Não à toa, seu 21º disco foi nomeado ao Grammy Latino. 

A abertura instrumental, típica de concertos eruditos, prepara o estado de espírito para se sentar e ouvir com atenção máxima. Tudo pronto, cordas vibrando, a segunda faixa oferece uma confissão, uma declaração de amor à terra. Na sequência, entra a percussão da orquestra, as flautas, para um carnavalito que propõe deixar pra lá todas as tristezas.

O concerto de Marta Gómez acaba sendo eclético, bem como o trabalho de uma cancionista que tem o costume de passear pela diversidade da música latino-americana. Nesta gravação fez uma seleção das suas canções mais marcantes. Destaque para “Manos de mujeres”, com arranjo sensível e versos distintos: “Manos que amazan curtiendo el hambre con lo que la tierra les da/ Manos que abrazan a la esperanza de algun hijo que se va”.

A esperança é o mote também da faixa “La vida está por empezar”, com reforço neste sentimento vindo do arranjo de cordas, como naquele final de filme com final feliz apesar de tudo. A mesma pegada aparece na letra de “Quando todo pase”, única de piano solo e voz. Há também um tributo ateísta a um jovem mineiro que faleceu na Bolívia: “Por eso al tío Diablo cosas le ofrendo/ Porque arriba del cerro ya ni Dios sube”. E encerra o álbum com uma mensagem de paz, “Para la guerra nada”.

Inspiradíssima e afinadíssima, a cantautora estudou na Berklee em Boston. Já abriu show de Mercedes Sosa em 2003 e irá apresentar o show desse disco em Buenos Aires em junho próximo. Por aqui, ainda não recebemos Marta Gómez, mas começamos a ouvi-la com a atenção devida.

Noelia Recalde – Mi Propia Casa

Argentina natural da província de Entre Rios, berço de músicos proeminentes como Carlos Aguirre, possui sonoridade cosmopolita e original. Escutar apenas seu álbum talvez não dê a dimensão do enorme talento, que se evidencia quando se assiste à Noelia Recalde tocando solita, em qualquer vídeo que se encontre no YouTube. Empunhando seu violão, parece uma força da natureza em ebulição. Sua performance combina técnica perfeita de canto e de dedilhar o instrumento. Por isso, pasma os incautos quando revela ser autodidata.

Longe das performances caça-likes, a cantautora vem se impondo na cena alternativa e independente. Sua matéria prima é o inesperado. Neste disco, “Mi propria casa”, deixa revelar sua familiaridade com batidas carnavalescas, mas desmonta cada célula rítmica e recompõe com experimentações. Ainda assim, o resultado final de cada canção é muito bem resolvido. Refrões, versos, pontes, rimas, tudo tem seu lugar perfeito para fluir nos sulcos estreitos de um vinil, soar nas ondas radiofônicas ou integrar uma playlist num player digital, ao lado de outras canções mais arquetípicas.

O disco começa com uma batida despretensiosa ao violão, próxima à bossa nova, e logo vão entrando elementos de sonoridade indie, entre guitarras e efeitos eletrônicos. Na faixa seguinte, a voz suave de “Para consentirme” vai ficando mais ríspida em “Canto en la cuarentena”, em ritmo ternário parente da chacarera, com base de piano.

“Suponte”, a única que ganhou um videoclipe, de linguagem rock, destaca-se pelo embalo intenso proporcionado pelo naipe de sopros. Uma mostra do porquê é saudada como tropicalista na Argentina. Em contraste, a seguinte “Sola en soledad” retorna ao clima intimista de seu dedilhado e sua entoação sussurrada, para emoldurar uma melodia delicada e dar guarida a um solo brilhante de teclado. Essa ambiência prossegue na faixa seguinte, “Anhelo”, mais improvisada e candidata a trilha cinematográfica.

A canção-título remete àqueles arranjos de guitarra tétrica que a Nação Zumbi gosta de fazer em cima de algum ritmo bailável. “Reparo” é mais solar, romântica e sagaz. Encerra o álbum a meta-canção “Manto”, cantada à capela com coro de vocoder emulado nos acordes do teclado. A voz robótica multiplicada contrasta com a letra que diz: “Yo no lo sé/ Si es que hubo un tiempo hermoso de verdad/ O el mundo está pidiendo estallar/ No sé/ Pero yo quisiera siempre cantar igual”.

Outros 20 álbuns

Na lista, uma seleção de mais 20 álbuns lançados em 2022, que reforçam a produtividade intensa da canção latino-americana, de forma abrangente:

  • Agendas Vencidas – El David Aguilar (México)
  • Boleros Psicodélicos – Adrian Quesada (EUA)
  • De Canciones Tristes y Otras Sutilezas – Rosario Alfonso (Argentina)
  • El Álbum de las Ilusiones – Buendia (Colômbia)
  • El Mundo No Se Hizo En Dos Días – Pedro Aznar (Argentina)
  • En Lo Que Llega La Primavera – Alex Ferreira (República Dominicana)
  • Epifanías – Susana Baca (Peru)
  • Folclore Sintético – Juanito Makandé (Espanha)
  • Lucero – Pascuala Ilabaca Y Fauna (Chile)
  • Marchita – Silvana Estrada (México)
  • Marimorena – Patricia Robaina (Uruguai)
  • Motherflower – Flor de Toloache (México)
  • Música Moderna – Augusto Bracho (México)
  • No Faltaba Tanto – El Otro Polo (Venezuela)
  • Palabritas y Palabrotas – Diego Lorenzini (Chile)
  • Parceiros – Rubén Blades e Boca Livre (Panamá e Brasil)
  • Re-voltar – Claudia Manzo (Chile)
  • Tonadas de Casa – Miguel Mauries (México)
  • Va Siendo Tiempo – Carlos Aguirre (Argentina)
  • Valle – Vadik Barron (Bolívia)

João Vicente RibasJornalista, apresentador do programa Canciones para despertar en Latinoamérica (Rádio UPF)

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