Ensaio

Em busca da Armênia real

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Em busca da Armênia real Placa na entrada da vila de Arzni. Foto: Daniel Scandolara

Mantive-me por anos lendo e me informando sobre o que eu pensava ser ‘‘Armênia’’: entre artigos aqui, verbetes acolá e até músicas folclóricas, eu imaginava estar chegando mais próximo daquilo que minha mente cuidadosamente buscava representar. 

Ao final do meu primeiro mestrado, concluído na área de História Contemporânea pela Universidade de Brasília, o passo seguinte era entrar em um doutorado. Eu não sabia muito bem o que queria pesquisar enquanto objeto, mas sabia que, depois de tanto tempo, era a vez de focar meus esforços plenamente em algo que agregasse aos estudos sobre ‘‘assuntos armênios’’, por assim dizer. Não fazia mais sentido saber algumas coisas e efetivamente não pesquisar sobre elas. 

Eu já estava em um programa de doutorado quando fui aceito para um Mestrado em Direitos Humanos e Democratização, com sede em Yerevan, capital da Armênia. Era minha chance de conhecer a tal da Armênia ‘‘real’’, algo ainda não muito fácil, mesmo que isso significasse sacrificar algumas coisas. Basicamente a dúvida era se aquilo valeria a pena, tendo em vista que eu já tinha um mestrado, e as inseguranças de sair pela primeira vez do Brasil – sim, eu realmente nunca tinha posto os pés no estrangeiro até então. 

Mesmo que o mestrado não fosse sobre história armênia, direitos humanos me pareciam algo que, em termos tanto da Armênia que eu lia quanto da Armênia atual, fazia todo o sentido. Eu recebi ‘‘empurrões’’, e aquele que mais se sobressai em minha memória foi de Vahram, um amigo da cidade de Gyumri, a segunda maior do país: ‘‘Daniel, se você quer realmente saber tudo sobre esse país, você tem que ir. Não importa o resto’’. 

A Armênia ‘‘real’’ me recebeu numa madrugada, depois de cerca de 22 horas de voo. Até aquele momento, sem qualquer noção real da língua e ainda em 2021 (com protocolos de segurança sanitária em curso), sair do aeroporto foi uma epopeia. Como um ex-república soviética, o russo, e não o inglês, é a língua franca do Cáucaso e da Ásia Menor, ainda ensinado nas escolas armênias. 

O primeiro dia foi tão fascinante que os obstáculos foram deixados para depois. Tocar nas igrejas, algumas medievais, em meio a uma capital (verdade seja dita, uma capital com cerca de seus 2800 anos), perceber o nome de ruas conferidos a escritores armênios notáveis, as folhas de plátano caindo ao fim de outono e as estátuas por toda parte. Todos os livros de até então recebiam uma dose de realidade cujas páginas possuem a eterna missão de conseguir retratar. 

Eu sabia que meu período na Armênia seria até o inverno, quando as férias começariam, e que teria de ir para outra universidade, em outro país – estávamos em um programa que vinculava Yerevan, Minsk, Tbilisi e Kiev. As aulas eram todas em inglês, então não era um problema ir para a Ucrânia no final de 2021. Mas honestamente, o que realmente me importava era aproveitar o máximo possível da Armênia enquanto estivesse por lá. 

É impressionante como um país tão pequeno pode ter tanto a oferecer, não apenas em patrimônio e história, mas sobretudo em relação às pessoas. Dois meses jamais seriam tempo suficiente para conhecer os lugares históricos da chamada Hayastan1, tampouco seu povo. Os armênios em si já são algo à parte, mas o país, ainda que quase completamente composto por esse grupo étnico, é lar de outros – a Armênia ‘‘real’’ não é tão homogênea assim quanto se diz. Eu sabia da existência de assírios por lá antes de viajar e tomei como meta visitar as poucas vilas nas quais são maioria. Estes, cristãos de diversas denominações, consideram-se descendentes do povo antigo mesopotâmico de mesmo nome e falam uma língua, a qual denominam como ‘’assírio’’, mas que filologicamente seria o equivalente ao nome de ‘‘neo-aramaico’’.

Entrar nas vilas era como entrar em um país dentro de um país, mas sem separatismos: deixar de ouvir o armênio quase que completamente em favor de algo nunca antes ouvido, algo claramente não-natural do Cáucaso. Três idiomas (russo, armênio e assírio) tomavam placas, palavras aleatórias em algumas paredes abandonadas e as portas de prefeituras. Na alvorada de uma manhã de domingo, desloquei-me ao remoto vilarejo de ‘‘Verin Dvin’’, onde até então a única igreja de fé assíria2 na Armênia funcionava, no intuito de atender a uma missa. Virei uma espécie de ‘‘atração exótica’’:

‘‘O amigo do padre Nikademus que havia vindo de longe para aprender sobre nós’’. 

Uma mensagem aparentemente bastante simples, mas fruto de muito malabarismo linguístico: uma mistura de começar com um ‘‘olá’’ em assírio (shlama), dizer quem eu era em armênio (yes braziliatsi em3), e, como não me lembrava como dizer ‘‘amigo’’ nesta língua, usar o equivalente em russo (drug). 

Ouvi histórias – mesmo que muitas eu não pudesse realmente compreender, ser capaz de observar já era quase que ser capaz de escutar. Uma senhora me mostrou seu véu com escritos em assírio, trazido da ‘‘América’’ por sua filha que vive em Chicago – os assírios possuem uma relevante comunidade nos Estados Unidos, igualmente fruto do Genocídio4 perpetrado pelo Império Otomano. 

Ser o convidado do único padre da Igreja Assíria do Oriente na Armênia lhe confere um status de personalidade dentro da comunidade: sempre havia algum pequeno banquete esperando por nós. Naquele dia, no qual após a missa acompanhei Qasha Nikademus e seu diácono pelas vilas assírias, presenciei o mais importante: o cotidiano. Rabbi, como ele era chamado por conta de sua posição, tinha de celebrar o último dia de funeral de um soldado assírio que havia se voluntariado no exército armênio e tinha lutado na Guerra de Artsakh de 20205. No cemitério da pequena Arzni, onde minha vista só conseguia alcançar bandeiras da Assíria, incenso foi queimado enquanto o padre lia cantos em aramaico. Ao final, água de uma garrafa de vidro foi jogada sobre as flores da tumba e a mesma garrafa foi quebrada sem cerimônia – aquilo simbolizava, Qasha depois me explicou, a passagem final da alma do morto à eternidade.  

Mas tudo isso não foi o final do rito funerário assírio: todos estavam convidados a celebrar a vida do falecido em um banquete oferecido pela própria família. Enquanto todos falavam, em sua própria língua, e ofereciam seus brindes à vida do soldado, eu só conseguia pensar em como eu, um estranho completo, estava sendo tão bem-acolhido em um momento tão delicado e significativo para aquelas vidas. Era infrutífero me ater a este tipo de pensamento, porém: Rabbi, que sempre conseguia ler tudo o que meus olhos remoíam, posteriormente me revelou que essa acolhida aconteceria mesmo que eu não estivesse com ele: ‘‘faz parte de quem somos’’

Ao abrir a porta do carro, depois de me levar até em casa, ouvi a despedida: ‘’Da próxima vez nos vemos no Carnaval!’’. Pouco depois, voltei ao Brasil, e mesmo que não soubesse, demoraria dois anos para voltar à Armênia. 


Notas
1 – O nome do país em armênio.
2 – Por ‘‘fé assíria’’ refiro-me ao fato de que apenas a Igreja Assíria do Oriente possui representação na Armênia.
3 – ‘‘Eu sou brasileiro’’, tradução literal.
4 – Os armênios não foram os únicos a serem alvo de um genocídio perpetrado pelas autoridades otomanas. Outras minorias que viviam no Império, como os assírios e gregos, também tiveram o mesmo destino.
5 – Também conhecida como ‘‘II Guerra de Nagorno-Karabakh’’ ou ‘‘Guerra dos 44 Dias’’. Já no declínio da União Soviética, uma região historicamente armênia, nomeada ‘‘Artsakh’’, lutava por sua independência da República Socialista Soviética do Azerbaijão. Uma guerra foi deflagrada entre os anos 1988 e 1994, e foi vencida pelos armênios. Após a vitória, a região não se uniu à República da Armênia e se manteve como um Estado independente de facto, mas nunca reconhecido pela recente República do Azerbaijão. Em 2020, o governo de Baku lançou um ataque em larga escala à região, aproveitando-se da crise pandêmica. Em 44 dias a guerra foi finalizada, com vitória azeri. Durante o conflito, muitas minorias étnicas da Armênia voluntariam-se para lutar por Artsakh, incluindo assírios e yazidis.


Daniel Lorenzo Gemelli Scandolara nasceu em Porto Velho, Rondônia. Atualmente doutorando pela UFRGS, morou a maior parte da vida em Brasília, onde obteve graduação em Ciência Política e mestrado em História, ambos pela UnB. Posteriormente, concluiu mestrado em Direitos Humanos e Democratização pelo Campus Global em Direitos Humanos Cáucaso, tempo em que viveu na Armênia. É autor do livro Um Estopim em 1914: a política britânica em relação ao Império Otomano e sua preservação e criador do blog Torto em Linhas Retas. Gosta de histórias.

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