Ensaio

O outro lado da Copa – fragmentos sobre um torneio não tão nobre assim

Change Size Text
O outro lado da Copa – fragmentos sobre um torneio não tão nobre assim

Um dos maiores espetáculos da terra começa neste domingo (20), e nós – eu, que escrevo essas linhas, e a Parêntese, que as publica – não poderíamos ficar de fora. Claro que falo da Copa do Mundo do Catar, a primeira a ser disputada no Oriente Médio, que, por conta das características climáticas locais, ficou para o final do ano. 

Não seríamos capazes de deixar passar em branco o torneio porque este é um Mundial recheado de questões que vão além das quatro linhas. É óbvio, porém, que não vamos ficar apenas nessa edição. Afinal, apesar de a FIFA dizer que futebol e política não se misturam, isso não é bem assim. Ou, melhor, nunca foi assim.

Enfim, a partir da história três torneios, começando pelo atual, a ideia é tratar dessa relação que, ao contrário do que falava Diego Maradona, acaba manchando a bola. 

A limpeza do Catar via esportes

Você já ouviu falar em sportswashing? Esse termo em inglês é usado para explicar uma prática tão comum quanto antiga no meio dos esportes. Trata-se da aquisição ou patrocínio a times ou realização de eventos para “limpar” a imagem de algum oligarca ou governo. Ou, então, para fazer propaganda de um regime.

Falo disso porque é o que Catar, sede da Copa deste ano, tem feito há algum tempo. O emirado já realizou grandes prêmios de F1, patrocinou uma série de clubes mundo afora, é dono do francês PSG – time de Messi, Neymar e Mbappé – e, recentemente ganhou – ou seria melhor dizer comprou? – o direito de organizar o Mundial de 2022. O objetivo catari é criar uma imagem positiva do seu governo. Muitos críticos, incluindo ex-jogadores e até um ex-presidente da FIFA, têm afirmado que a Copa jamais deveria ter sido destinada ao Catar. O comentário do suíço Sepp Blatter, afastado do comando da federação internacional por corrupção, veio um pouco tarde, por sinal. 

Afinal, foi a sua gestão que escolheu a nação do Oriente Médio para organizar o torneio (ou seria “vendeu” a ela?). Além da pura e simples corrupção verificada no processo que definiu o Catar como sede, várias outras questões envergonham a realização do torneio numa nação como essa. Principalmente nos tempos atuais.

Para começar, como a maioria dos países da região, o Catar é um emirado comandado por uma dinastia. Ou seja, não tem um mínimo de democracia na sua história. Soma-se a isso o fato de as mulheres terem pouquíssimos direitos e a extrema homofobia. Vale frisar que tudo isso é comum na região. Falando do preconceito contra a comunidade LGBTQIA+, o embaixador da Copa Khalid Salman mostrou toda a força dessa discriminação em uma entrevista a uma rede de TV alemã. Ao falar da ilegalidade da homoafetividade, Salman afirmou que a homossexualidade era um “dano na mente”, pouco antes da conversa ser interrompida. 

Você pode estar pensando que os defeitos cataris terminaram aqui. Só que tem mais. Na preparação para a competição, mais de 6 mil trabalhadores, a imensa maioria de estrangeiros, morreu na construção dos estádios e outras instalações, segundo a Human Rights Watch. Relatório da ONG internacional mostra que os imigrantes que chegam a Doha ou outras de suas cidades acabam trabalhando em situações análogas à escravidão. Seus passaportes ficam retidos pelos patrões, eles não têm direito a descanso, sem contar as condições, como o calor existente na região.

O problema trabalhista, porém, não é algo que ocorreu apenas na organização do Mundial. Isso é algo comum no Catar e está no pacote que o emirado quer esconder atrás da embalagem do maior espetáculo esportivo da terra. 

Ao longo da história, porém, a FIFA deixou que a Copa fosse “manchada” outras vezes. Também é possível dizer que governos totalitários usaram o torneio como forma de propaganda de seus regimes ou de embalagem para esconder o que havia para ser escondido. O sportswashing é algo que vem sendo praticado há tempos.

A era do nazi-fascismo

E o primeiro político de carreira a perceber a aproximação do futebol com a política foi o italiano Benito Mussolini. Talvez até seja possível dizer que, além do fascismo, o ditador italiano tenha sido o criador do sportswashing

Aqui vale um parêntese: o termo fascismo veio a público pela primeira vez em 1915, quando Mussolini criou o movimento Fasci d’Azione Rivoluzionaria, grupo que cresceu e saiu vitorioso nas eleições de 1922. Três anos depois, Mussolini instituiu uma ditadura e adotou o título de Il Duce (o líder). Em 1926, aproveitando uma crise na Federação Italiana de Futebol, promoveu uma intervenção, “nacionalizando” o jogo, com a retirada de todo e qualquer anglicanismo do esporte – daí que “futebol” virou “cálcio”. Fecha parêntese.

A tentativa de usar o futebol como propaganda do seu regime surgiu praticamente junto com a ideia do francês Jules Rimet de criar uma competição de seleções nacionais, que seria jogada em 1930. Afinal, mostrar ao mundo as maravilhas do fascismo era tudo que Mussolini queria. Só que a FIFA levou a Copa para o Uruguai, então bicampeão olímpico.  Mesmo promovendo um boicote, alegando à dificuldade de transporte para chegar ao Sul das Américas, Il Duce conseguiu convencer a FIFA a levar o Mundial para a Itália em 1934. E aproveitou bem essa oportunidade. 

Para organizar a Copa, Mussolini colocou o general Giorgio Vaccaro, homem de sua confiança, no comando da FIF. E este chamou o técnico Vittorio Pozzo. Para financiar os gastos da organização, como a construção de dois estádios, criou uma loteria e aumentou impostos. À Azurra, apelido da seleção, o líder do fascismo enviou um recado curto e claro: “ganhar ou ganhar”. A mensagem foi reforçada após a derrota por 4 a 2 para a Áustria, então considerado um dos melhores times do mundo, apelidado por isso de Wunderteam, ou time maravilha (guarde esse nome). 

O resultado só fez a pressão aumentar, com Mussolini chamando Vaccaro e o técnico a Roma para um novo e breve comunicado: “A Itália DEVE ganhar a Copa”. Assim mesmo, com ênfase no “deve”. E foi isso. Outra advertência foi enviada às vésperas do Mundial. Dessa vez para Pozzo, que recusou mandar seus comandados para um desfile fascista: “Que Deus o proteja se a seleção fracassar”. 

Claro que Il Duce não exerceu seu poder apenas sobre seu selecionado. Os árbitros também teriam sido pressionados, o que explicaria alguns (vários) erros nas partidas da Azurra – como os dois gols da Espanha anulados nas quartas de final. Na decisão, a Itália levantou a taça ao vencer a Tchecoslováquia por 2 a 1.

A pressão continuou quatro anos depois, na primeira Copa disputada na França. Na véspera da final, contra a Hungria, Pozzo recebeu outro recado do Duce, dessa vez por meio de um telegrama que trazia apenas três palavras, dois verbos e uma conjunção: “vencer ou morrer”. Nesse Mundial, Adolf Hitler também tentou usar o futebol como propaganda do seu governo, iniciado em 1933. Assim como já fizera nos Jogos Olímpicos de 1936, disputados em Berlim, o líder do nazismo planejava dominar o mundo também por meio do jogo de bola.

E, na sua gestão “apolítica”, a FIFA quase deu uma mão à Alemanha. Isso porque em março de 1938, três meses antes do pontapé inicial do torneio ser dado no Parc des Princes, em Paris, Hitler comandou a anexação da Áustria. Claro que esse movimento não tinha a ver com o futebol, mas o Wunderteam – lembram dele? – acabou. Para explicar como Alemanha e Áustria passaram a ser uma única nação, o time que encantava a Europa naquela época foi absorvido pelo selecionado alemão. O craque da equipe, Matthias Sindelar, conhecido com Der Papierene – o Homem Papel –, devido a sua leveza, recusou-se a jogar. 

Enquanto a Itália de Il Duce seguia em frente, conquistando o Mundial ao vencer a Hungria por 4 a 2, a Alemanha caiu na primeira fase. Após um 1 a 1 contra a Suíça, o selecionado do Führer perdeu por 4 a 2 na partida de desempate. Os suíços ganharam a torcida francesa, que vibrou ao ver a Alemanha nazista eliminada. 

Mais um detalhe: na época, com 16 participantes, o Mundial começava direto nas oitavas de final, com jogos eliminatórios. Em caso de empate, nova partida seria jogada. Por isso, a Alemanha acabou fora do jogo dessa forma. Também vale mais um parêntese: diferentemente do que aconteceu em 1938, no torneio de 2022, a FIFA agiu com certa dignidade ao excluir a Rússia das Eliminatórias e outras competições internacionais. Isso ocorreu após Vladimir Putin ordenar a invasão da Ucrânia, em fevereiro. Fecha parêntese. 

Está certo que o fascismo espanhol não tentou dominar o mundo, mas Francisco Franco também se aproveitou do futebol e quis incluir a Copo do Mundo nesse plano. Ao mesmo tempo em que ajudava o seu Real Madrid a se transformar no grande clube que é hoje, o general também se aproximou da FIFA. Tanto que, em 1964, em uma das assembleias gerais da federação, Franco levou o Mundial para a Espanha. De lambuja, teve 18 anos para organizar o país para o torneio. Só que, em 1975, o ditador morreu e o país acabou redemocratizado em 1976. 

Aliás, no mesmo ano, um dos mais terríveis regimes que o século 20 viveu começou e também “ganhou” uma Copa para chamar de sua. 

Uma ditadura ganha a taça

Se o Mundial de 1982 conseguiu se “livrar” do fascismo de Franco, o de quatro anos antes não escapou de outra ditadura, a da Argentina. Aliás, as sedes dos dois torneios, México (1970) e Alemanha (1974), foram escolhidas no mesmo congresso da FIFA, em 1964. No caso argentino, contudo, ocorreu o contrário do espanhol. Se o regime comandado com mão de ferro pelo general Jorge Rafael Videla recebeu um Mundial brinde ao depor a presidente Maria Estela Martínez de Perón, em 24 de março de 1976, a escolha da sede se deu em um raro período democrático do nosso vizinho. 

Vale mais um parêntese: entre o começo e o fim do século 20, nossos hermanos enfrentaram seis – isso mesmo, SEIS! – golpes de estado promovidos pelas Forças Armadas: de 1930 a 1932; de 1943 a 1946; de 1955 a 1958; de 1962 e 1963; de 1966 a 1973; e de 1976 a 1983. Fecha parêntese.

Voltando a Videla, ele e os colegas de outras Armas instituíram o autodenominado Processo de Reorganização Nacional. De saída, sancionaram um estatuto com hierarquia jurídica superior à Constituição. Além disso, os milicos viram na organização da Copa como uma fonte com duas torneiras. Uma era mostrar um país unido em torno do futebol e, assim, apagar a imagem que os sequestros, torturas, desaparecimentos e mortes deixavam no governo desde seus primeiros dias. Alguém aí pensou em sportswashing? Pois, é isso mesmo.

A outra válvula era a financeira. Claro que não apenas para o regime em si. Tanto que um dos componentes da Junta Militar instalada em 1976, o almirante Emilio Eduardo Massera, é suspeito de ser o mandante do atentado que matou o general Omar Actis, presidente do comitê organizador. Dessa forma, Massera acabou assumindo a preparação do torneio. Quando Actis estava à frente da empreitada, o custo total era calculado em US$ 70 milhões. Depois de sua morte, o valor saltou para U$ 700 milhões, sem comprovação de que tenham sido gastos somente com a Copa.

Os valores foram criticados e considerados “excessivos” pelo então secretário da Fazenda, Juan Alemann, um economista de prestígio. E a resposta do regime demorou, mas veio. Depois que a seleção marcou o quarto gol sobre o Peru – vamos falar dessa partida em seguida –, uma bomba explodiu na frente da casa de Alemann. 

Bom, falando de Argentina 6 x Peru 0, é um jogo que entrou para a história. Não apenas pela goleada nem por ter colocado os donos da casa na final que os levariam ao título. 

Uma Copa comprada?

Para entendermos melhor, é preciso lembrar que, naquele ano, a Copa tinha 16 participantes divididos em quatro grupos de quatro. Depois, vinham as quartas de final, com mais duas chaves de quatro, das quais sairiam os dois finalistas. Argentina, Brasil e Peru, mais Polônia, ficaram no mesmo grupo, e os dois primeiros chegaram à rodada final praticamente iguais e com chances de disputar o título. Pelas regras, as partidas Argentina x Peru e Brasil x Polônia deveriam ocorrer no mesmo horário. 

Só que o jogo da albiceleste foi transferido para a noite. Assim, o time do técnico César Luis El Flaco Menotti saberia o placar que precisaria para chegar à final. Pela combinação de resultados, os argentinos teriam que vencer os peruanos por quatro gols de diferença, tirando, assim, os brasileiros da decisão. Além da mudança repentina de horário, o confronto ficou recheado de mistérios que levantam a suspeita de compra de resultado. São eles: 

– horas antes da partida, a Casa Rosada havia destinado muitas toneladas de trigo ao governo do Peru; 

– Videla, acompanhado do então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, fez uma visita inédita ao vestiário adversário;

– o goleiro do Peru, Ramón Quiroga, era naturalizado peruano, mas havia nascido em Rosário, no centro da Argentina;

– o técnico do Peru, Marcos Calderón, escalou naquele jogo vários atletas que não haviam atuado no Mundial até ali; 

– depois da Copa, o governo argentino concedeu uma linha de crédito extraordinário não reembolsável de US$ 50 milhões ao Peru.

A história de “arreglo” da partida nunca foi comprovada, mas alguns jogadores são categóricos ao falarem que houve acerto. Outros dão a entender. O peruano José Velásquez afirma letra por letra que seis companheiros, um deles Quiroga, receberam dinheiro para perder. Ainda segundo Velásquez, a visita de Videla ao vestiário foi uma forma de pressionar o Peru. Já o atacante argentino Oscar Ortiz, que jogou no Grêmio em 1976, levanta suspeita sobre a partida. No documentário Verdad o Mentira, que investiga o resultado, ele disse: “Havia muito dinheiro e drogas. E onde há dinheiro e droga, há suborno e dopping”.

Talvez nem fosse preciso tudo isso de parte dos verdugos. A seleção montada por El Flaco era um excelente time de futebol. Tinha o goleiro Ubaldo Fillol, que depois atuou pelo Flamengo, o zagueiro Daniel Passarella e o cracaço de bola Mario Kempes, goleador do mundial, com seis gols.

Enfim, assim como fizeram Mussolini e Videla, o emir do Catar Tamim bin Hamad al-Thani tenta usar a Copa em prol do seu regime. O certo, porém, parte disso sumirá quando a bola rolar, mesmo que por apenas 90 minutos. Afinal, a magia do futebol ainda encanta. 

Quando o apito final trilar, porém, é preciso abrir os olhos e apontar aquilo que não deveria fazer parte do jogo para que ele não continue a ser “manchado”. 

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.