Causo | Ensaio

Ondina Fachel Leal: Por inteiro naquela caixinha

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Ondina Fachel Leal: Por inteiro naquela caixinha
Ondina (Foto: acervo pessoal)

Ainda em dezembro de 2019, a Parêntese teve a alegria de conversar longamente com a antropóloga Ondina Fachel Leal, quando ainda não havia sinais de que encontros assim logo se tornariam improváveis, por um tempo ainda em definição. Entre as incríveis histórias compartilhadas por Ondina, na entrevista publicada na edição 14, muitas provêm desta relíquia: sua tese de doutorado, [The gauchos: male culture and identity in the pampas], defendida na Universidade da Califórnia em Berkeley, no ano de 1989, até hoje sem publicação em livro.

À época, a busca por respostas sobre a recepção, pelos gaúchos lá dos fundos dos campos, de uma nova interpretação cultural da identidade gauchesca, dado o sucesso dos festivais de canção regionalista, levou a pesquisadora a uma experiência profunda da vida na estância. Ora no Alegrete, ora em Artigas, no lado uruguaio da fronteira, descobriu, vivendo sozinha na estância – ela na casa-grande, os peões no galpão –, uma realidade mais interessante e complexa do que havia previsto, no “pampa imaginário” de sua cabeça.

Muito dessa realidade se mostrava para Ondina no espaço do galpão. Observava e registrava esse ambiente, contando com a ajuda dos peões, que, segundo ela, se compadeciam de suas perguntas óbvias e de sua ignorância a respeito daquele universo. Em relato capaz de apresentar a cultura dos homens do pampa com o mesmo interesse e o mesmo frescor para californianos e gaúchos, registrou com precisão e sensibilidade um mundo sem mulheres, um mundo de trabalho que era a forja da identidade cultural em sentido amplo, um mundo de valentia e briga, de causos e lirismo preservado na ponta da língua, e, surpreendentemente, também um mundo de suicídio.

Se ainda não é possível saborear a leitura em um belo exemplar impresso, por enquanto, alegramo-nos de compartilhar com leitores e leitoras da Parêntese alguns trechos da tese, atualmente em tradução pela autora. Escolhemos a descrição de um instante no cotidiano do galpão e o relato de um encontro peculiar com “um velho gaúcho”. Estamos confiantes: é apenas um por enquanto.

Texto: Lolita Beretta

No galpão, fogo de chão. (Foto: acervo pessoal)

O anoitecer no galpão

Por Ondina Fachel Leal

Ao anoitecer, ao final de cada dia de trabalho, os gaúchos trazem aperos, arreios, esporas, boleadeiras e seus corpos cansados e vão ajeitando-se, homens e coisas, pelo galpão. Os homens, aos poucos, displicentemente, vão conformando um círculo em torno do fogo, onde já fervem cambonas, passam uma cuia de amargo, mateiam. Um, enrola um palheiro; outro, concentrado, a quem chamam guasqueiro, trança um pealo com tiras de couro. Vicente, com habilidades na gaita, ensaia notas de uma música que escutou no rádio.  

Neste lado do galpão, tem uma janela larga que se abre para o oeste. Quase imóveis, aparentemente indiferentes, observam o sol se pondo. Nestes momentos era sempre difícil distinguir meus próprios sentimentos dos deles, estávamos todos absortos na mesma experiência de cores intensas, campo aberto, pampa infinito. Espectadores da intensidade da natureza na imensidão do campo, cúmplices silenciosos do pensamento que teimava em se impor a cada um de nós sobre a medida exata de nossa pequenez dentro da paisagem.

Da janela do galpão (Foto: acervo pessoal)

Conversam. Uma charla que começa mansa e arrastada, preguiçosa mesmo. Escutam um velho radinho de pilhas que por vezes precisa ser sacudido para prosseguir.  Desfaz-se a roda quando o sino avisa da cozinha da casa grande que a comida, quase sempre um puchero de ovelha, vai ser servida. 

A noite toma conta do pampa. Acendem-se alguns lampiões e lamparinas feitas de latas com graxa de ovelha.  Um cheiro de homens, fumaça e gordura queimando é constante. Um a um, os peões retornam ao galpão e vão novamente tomando lugares em torno do fogo, que já vai alto e queima faceiro, em assentos determinados através de algum acordo invisível.  A conversa no galpão é retomada, começa mansa e tímida, se o cansaço não for muito ou o dia especial. Vai animando-se, por vezes, um pequeno alvoroço. Tocam algum instrumento musical, cantam, ou, solene, algum entre eles, reconhecido como competente para tal, declama um poema. Contam histórias e estabelecem uma cumplicidade jocosa.   

Por inteiro naquela caixinha

Um velho gaúcho que vivia na estância, afastado das lidas, qualificado como pelos demais como “já um tantito lerdo para o campeio”, acumulou alguns anos de salário e guardava seu dinheiro junto com alguns pertences que lhe eram muito caros: uma adaga de cabo de osso em uma bela bainha, uma tarca de couro cru cuidadosamente trançado com contas de ossos de avestruz, um cinto com uma rastra em prata, um relógio que não funcionava, uma gaitinha de boca, três ou quatro velhas fotos em sépia e sua carteira de trabalho. Tudo isto ficava guardado em um caixote embaixo de sua cama.  Ele me explicou que não gastou o dinheiro porque a precisão de ir à cidade é uma apoquentação e é longe para seu cavalo cansado. E ir até lá só para gastar o dinheiro, carecia de sentido.  

A maior parte do dinheiro que me mostrou era em cruzeiros, há cerca de um ano aquela moeda já não circulava, noticia que parecia não ter ainda chegado a seu conhecimento, e uma hiperinflação corroía violentamente suas parcas economias na nova moeda. Um tanto aflita, tentei explicar que o dinheiro guardado perdia o valor, ele deu com os ombros, disse que para ele “não era de serventia mesmo”, enquizilado, no banquinho onde estava sentado, aprumou-se e se encostando na parede esticou as pernas, empurrou seu muito usado chapéu de barbicacho sobre seus olhos e cruzou os braços, dando por encerrada a nossa conversa. 

Seus bens estavam entesourados naquela caixa. Sua pecúnia não era dinheiro, mas células que atestavam anos de trabalho na estância. Nos muitos anos campeando, seu corpo tinha se despossuído de sua força de trabalho, ele a guardava por inteiro naquela caixinha. Abriu seu cofre para exibi-la orgulhoso para mim e meu comentário a respeito de um mundo estranho e distante onde a moeda perdia valor tinha sido totalmente inapropriado.


Ondina Fachel Leal é antropóloga e foi professora titular da UFRGS. Possui PhD em Antropologia Social (University of California, Berkeley, 1989), com tese sobre cultura e identidade gaúcha. Dedicou-se também à área de antropologia médica, com estágio de Pós-Doc na Havard Medical School. Escreveu A Leitura Social da Novela das Oito (1986) e tem pesquisas e publicações nas áreas de cultura; sexualidade e saúde reprodutiva; e propriedade intelectual.

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