Ensaio

Porto Alegre e eu

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Porto Alegre e eu

Não sei se tenho fronteiras. Penso que todo lugar é mundo. Mas sei que Porto Alegre é um mito, um leito sagrado, que me acompanha desde sempre.

E se Porto Alegre é um sítio mítico, como é Ítaca, eu pertenço a este mito. Ele me contém e eu o contenho.

E quando escrevo essas coisas, essas sensações biográficas tão recorrentes, lembro-me da Porto Alegre da minha infância, do contato com o mundo adulto, quando, aos seis anos de idade, aprendi com o meu pai a jogar xadrez, uma geometria do mundo lá fora.

Também a mesma Porto Alegre contemplou a perda da minha inocência. Aos nove anos, em 1950, soube da morte da minha avó paterna, Ethel, assassinada na Segunda Guerra Mundial, junto com os seus filhos, irmãos e sobrinhos, na tarde de um único dia, na Lituânia. Também de mim o nazismo levou a infância.

Comentei com o meu pai. Na minha indignação tive palavras ásperas ao falar dos alemães. Eram as piores palavras que o meu vocabulário conhecia. O meu pai escutou e me corrigiu: “Jamais diga isto, não foram os alemães que mataram a minha mãe, foram os nazistas. Se você generalizar, estará cometendo um erro terrível”. 

Acho que naquele momento conheci o meu pai e a sua grandeza. 

Talvez, é possível que tenha tido certa compreensão de seu permanente e discreto afastamento, do seu prolongado silêncio.

Foi a frase mais marcante da minha vida consciente. A responsabilidade da palavra. As vezes em que não estive atento a este humanismo fundamental foram motivo de amargura. Traição ao humanismo.

Este episódio se concluiu algumas décadas depois. Eu estava morando em Ipanema, Rio de Janeiro, e os meus país visitavam a cidade. Eu os levei até a orla, sentamos num banco, eu no meio dos dois. A minha mãe falou, o som meio sumido, espremido.

– Estive em São Paulo e falei com aquele amigo lituano de sua família.

O meu pai nada disse.

– Ele me contou como morreu a sua mãe e os seus irmãos.

Silêncio do meu pai.

– Eles foram fuzilados numa tarde. Nunca te contei.

Aí o meu pai respondeu:

– Eu também estive com ele e escutei esta história.

Eu fiquei abismado com o velho casal, dois idosos que imaginava sem mistérios, e o seu segredo essencial. Eram capazes disso. A tarde em Ipanema era morna, suave, luminosa. O mar se oferecia ao nosso olhar, repetia o vai e vem das ondas, e, naquele momento, parecia indiferente a nós. É indiferente a nós, pensei. Eu que durante décadas não percebera este conhecimento trágico guardado por dois seres para proteger um ao outro da dor. E eu, o que durante tantos anos não estive atento, julgava o oceano e o universo por sua indiferença…

Em Porto Alegre o meu primeiro amor foi um longo poema de versos que permaneceram na obscuridade. Nunca escritos, nunca ditos. Fragmentos que faiscavam na minha impossibilidade. Eu a levei a passear de barco no lago do Parque da Redenção. Era outono e a cidade estava dourada. Eu remava o barquinho e ele deslizava na água fria e entrava e saía de zonas de luz e sombra. Era 1956, eu tinha quinze anos, e o momento era perfeito e o próprio parque, trocando a pele, tinha a cor certa. O nome da moça lembrava a palavra solidão.

Recordam deste poema de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa?

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Conheci tantos lagos em tantos lugares famosos, mas em nenhum deles eu pude dizer para mim mesmo que este momento era perfeito.

Dois anos antes, eu declarara ao mundo que tinha me tornado adulto. O meu palco era uma modestíssima barbearia no bairro de Petrópolis. Era um dia famoso na história nacional. 24 de agosto de 1954, e o presidente Getúlio Vargas se matara. A carta do suicida escutei no rádio da barbearia. O meu espanto era como um homem de quem se falava tão mal se tornara santo com aquele gesto. A minha decepção com os jornais que o classificavam de antipovo e antinacional e que naquele dia o alçavam à condição de mártir da nacionalidade. Foi a minha aula de ceticismo. O barbeiro era gordo, bigode bem tratado, bonachão, cabelo untado e brilhante, e me chamou por um apelido de infância. Eu tinha treze anos e ele, amigo de meus tios, me conhecia desde sempre. Corrigi: o meu nome é Jacob. Imediatamente passou a me chamar de Jacob. No meu rito de passagem eu tinha me apresentado ao planeta, a minha tribuna era a pequena barbearia e o meu único público era um sábio e vagaroso bonachão.

De repente saí de Porto Alegre. 

Mas isso é possível? Nós conseguimos sair dos lugares? 

Em entrevista referente ao filme “O Poderoso Chefão” (The Godfather), o ator Al Pacino, cujo personagem Michael era o filho mais jovem, aquele que não realiza o sonho americano do vencedor individual e se torna o herdeiro da Família, diz o que pensou quando recebeu o convite do diretor Francis Ford Coppola: 

“Não acreditei, achei que era uma maluquice. O elenco era formado por atores de larga bagagem…  Eu? Não achei razoável. Como se eu saísse do nada, de lugar nenhum…”.

No universo não existe este “lugar nenhum”. O ser humano não é capaz de imaginar o “nada”. 

O brilhante pintor Casimir Malevich é um paradigma da arte não objetiva. Certa vez foi acusado – muitas vezes, aliás – de levar à arte para o nada, devido a não ter figuras na sua pintura. Em carta para um amigo, respondeu:

“Esse nada está impregnado do sentimento da ausência do objeto”

Me pareceu imprescindível sair de Porto Alegre.  Fiz uma avaliação, conclusão jovem, possivelmente parcial e equivocada. Havia muitos fatores, espaço ampliado para um jovem escritor, a asfixia por um regime autoritário, inúmeras outras questões menores ou maiores. Poderia ter permanecido, é claro. Mas eu não sabia.

Mas pode ter sido a decisão certa, mesmo que por motivos errados.

Sair para incluir, para recuperar o oculto e o fascínio disfarçado pelo cotidiano, e, incrível e paradoxalmente, para se tornar gaúcho, este homem da solidão, dos espaços planos, da planície, este homem dos pampas. A diáspora acentua a origem.

Esta cidade que acreditei ser meu passado, é meu futuro, meu presente.

Os anos que passei na Europa são ilusórios.

Eu estava sempre (e estarei) em Buenos Aires.

O poeta Jorge Luis Borges que escreveu essas palavras é o mais cosmopolita dos escritores da América Latina. E não porque tenha percorrido muitos países e lugares distantes, ainda que o tenha feito, mas porque a sua obra contém uma extraordinária multiplicidade de pontos de vista. 

O primeiro artigo que escrevi em jornais foi sobre Franz Kafka, editado por Mario Quintana e publicado no Correio do Povo, na época o grande jornal do RS. Eu achava extraordinária a capacidade de Kafka de tocar em temas essenciais e universais, a força da estrutura e a culpa permanente e a impossibilidade de chegar ao fim, de ter sempre estágios intermediários. Evidente que eu não estava à altura de Kafka e devo a publicação à generosidade do Quintana, provavelmente em favor da minha juventude. Desde então, nunca deixei de acrescentar novos entendimentos sobre o mestre. Eu cito Kafka aqui porque eu o vejo como o mais universal dos escritores da nossa época e porque, ao contrário de Borges, ele não tem uma multiplicidade de pontos de vista. Há em Kafka uma opacidade, ele está envolto em camadas translúcidas, seu texto é impregnado de uma indeterminação que o equaliza, torna as partes personagens do mesmo pesadelo. O seu tema é de todos nós, o que confere a Kafka o seu caráter profético. É o último profeta da humanidade. E como é de todos a universalidade de seus textos, onde estará a fronteira deste habitante de Praga, que escrevia em alemão e descrevia um futuro que seria o da humanidade? A Estrutura impessoal e anônima esmagando a individualidade, os dois personagens. Kafka será sempre o de Praga e em Praga ele descreveu os seus sonhos, embates e terrores, que são, ainda que nem sempre saibamos, também os nossos. 

Apesar de, às vezes, estar tão longe, Porto Alegre é o elo mais pleno do que lá começou e, na sua grandeza, engloba todos os amores e, de certa maneira, os revela e conforma e explicita os seus significados. Há alguns anos, num quarto hospitalar, eu assistia a mulher amada e era a nossa despedida e ela me olhou tão plena de conhecimento do momento da partida e plena de ternura e eu senti o horizonte distante e tingido de púrpura e cinza que muitas vezes senti na minha infância gaúcha.

Talvez seja este o mito que explica todos os mitos, pois, no labirinto em que todos os homens estão, o mito essencial é o Fio de Ariadne, o fio que salvou a vida de Teseu e o conduziu para fora do labirinto e de seu terror primordial.

Teseu sai do seu labirinto pessoal, do seu destino primeiro, para entrar no grande labirinto que é o próprio mundo. Desta vez conduzido por uma mulher que lhe ensina como anotar os seus passos. O Fio de Ariadne assinala por onde Teseu passou e como, ao retornar por essa trilha, ao refazer os seus passos, ele reencontra o mundo, desta vez fortalecido com a reflexão de seu caminhar, de sua obscura trilha, para a luminosidade de seu novo caminho. O mundo luminoso lá de fora. É um novo homem, com o seu passado e com a memória da mulher que o conduziu no seu retorno, no voltar sobre os seus próprios marcos, para um novo labirinto, desta vez o próprio mundo.

Jovem, o que eu era, na verdade?

Um homem que caminhava pelas ruas e becos de Porto Alegre. O meu labirinto.

Porto Alegre é o centro. É o princípio. O lugar onde se reúne o alto e o baixo. Ponto de junção. 

Na Ilha da Páscoa havia exatos 1.802 nativos quando lá estive. Por circunstâncias favoráveis um deles não me viu como um turista tonto e me deu a sua amizade. Ele era formado em antropologia e poliglota e protegia os lugares históricos. Levou-me para ver determinado local onde havia uma grande pedra. É o Ônfalo, me disse, o centro do mundo.

Olhou-me com curiosidade e me perguntou se eu acreditava que aquele era o centro do mundo. Eu acreditava.

Nós estamos no centro do mundo.

Porto Alegre é Ônfalo.

Para escrever este texto pensei numa viagem no tempo. A minha nave viajaria pelo tempo. Mas é impossível. Sempre estou no presente.

Uma visita à Porto Alegre da minha “época”. É impossível porque estou sempre no presente. A minha época é sempre hoje. O olhar é sempre o de hoje. Posso contemplar as minhas memórias, mas o olhar é de hoje. É de hoje o mirante. É fantástico, pois significa que sempre estou numa nave que percorre o universo no seu casulo espaço-tempo. O seu próprio espaço-tempo. Estou nesta caverna e sempre é hoje. Eu desejei ardentemente ser um nauta e isto me parecia inalcançável. Que tonto. Sempre fui um nauta. E sempre na minha nave.

Ao falar de Porto Alegre certamente tenho presente os meus deslumbramentos. O primeiro amor. Os bares. O lago da Redenção. O Theatro Municipal. O anfiteatro Araújo Vianna onde comemoramos Cervantes. As intermináveis prosas sulistas. A livraria do Globo. A Biblioteca Pública. Os artistas que me alegraram com a sua estima. O por do sol. A aurora. O dourado do outono. O aroma da primavera. O frio invernal.

Porto Alegre me ensinou o Pôr do sol e a Aurora.

Mas o sol e o espaço sideral pertencem a Porto Alegre?

Pertencem.

Arca de desejos por Porto Alegre

Editora: Território das artes

Edição antológica com 21 autores em homenagem aos 250 anos de Porto Alegre.

Jacob Klintowitz participou como Convidado Especial.

Org.: Liana Timm e Cátia Castilho Simon

Lançamento 6/11, 18h, na Feira 

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