Ensaio

Simões Lopes Neto na fábrica de gaúchos

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Simões Lopes Neto na fábrica de gaúchos

Relacionar o grande escritor pelotense, João Simões Lopes Neto (1865-1916), com a criação do mito do gaúcho – seja este termo compreendido como figura literária ou como falsificação histórica – não é novidade. O título de sua grande obra de ficção, Contos Gauchescos (1912), sustenta o nexo e reforça a ideia de adesão irrestrita à tradição gaúcha, mesmo que estudos biográficos tenham atestado, em diversas ocasiões, sua personalidade urbana e sua vocação intelectual algo cosmopolita. O aparente paradoxo entre autor e obra se resolveu, por muito tempo, com a caracterização de Simões Lopes Neto como ideólogo do gauchismo: alguém que falava de gaúchos sem ser gaúcho (penso aqui no sentido mais estrito da palavra, que vigorava na virada do século 19 para o 20, relativo a homem popular do campo, trabalhador rural fronteiriço, geralmente peão de estância), com motivação política interessada: justificar simbolicamente a dominação de classe.

Há parcela de verdade na equação. O escritor aderiu ao clube União Gaúcha (1899), de Pelotas, poucos anos depois de sua fundação; uma das entidades pioneiras no gauchismo cívico das elites republicanas sul-rio-grandenses ligadas à economia pecuária, em nítida apropriação nacionalizada do crioulismo uruguaio – a Sociedad Criolla foi fundada pelo médico Elías Regules em Montevidéu no ano de 1894. Ambos os movimentos eram culturalmente regressivos e politicamente conservadores, baseados em idealização (bastante fantasiosa) do passado gauchesco da região pampiana.  Em Los gauchipoliticos rioplatenses (1982), o grande crítico e historiador da literatura Ángel Rama descreveu a folclorização gaúcha urbana desenvolvida no país vizinho como um processo de domesticação da cultura popular, já que visava apagar do imaginário uruguaio os traços de rebeldia do gaúcho histórico, lá como aqui hoste de caudilhos em revoltas e guerras subsequentes e ligado a crimes típicos de fronteira, como o contrabando. A categoria de Rama também funciona, acredito, para descrever o gauchismo dos clubes de elite sul-rio-grandenses à época (o primeiro foi o Grêmio Gaúcho, de Porto Alegre, de 1898, vale lembrar). Tais associações contavam inicialmente com o apoio do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e se engajaram em seu projeto de modernização conservadora da sociedade, com a incorporação e o disciplinamento dos grupos populares (via propaganda, educação e cultura, higienismo e controle dos corpos, repressão policial e mediação dos conflitos entre capital e trabalho, entre as principais estratégias).

Foi nesse âmbito que Simões Lopes Neto evocou a história da formação do estado em um livro extraviado pelo prefaciador convidado, o também escritor Alcides Maya (Terra Gaúcha, cuja primeira parte foi recuperada e editada postumamente em 1955); compilou poesia gauchesca sul-rio-grandense autoral, versos farroupilhas e quadras orais populares no Cancioneiro Guasca (1910); e concebeu seus contos gauchescos e as igualmente famosas Lendas do Sul (1913), textos pelos quais foi consagrado no campo literário ao longo do século 20.

Mas uma análise cuidadosa dessa produção e de sua época também revela muito de simplificação e de equívoco na definição do escritor como ideólogo comprometido com o poder político. Tanto porque desconsidera a alta qualidade da composição de sua ficção, que não pode ser reduzida a mera peça ideológica, quanto porque esquece de sua dissidência e crítica ao regime republicano positivista do Rio Grande do Sul justamente na década em que sua obra foi publicada. A bem da verdade, nos anos 1910, o PRR revisou seu discurso gauchista, acreditando que a modernização capitalista do campo já havia apagado os vestígios de cultura gaúcha fronteiriça tradicional (questão que seria recolocada pela chamada Revolução de 1923). Interessava mais uma literatura regionalista como a de Alcides Maya, que usava imagens de decadência em seus títulos – Ruínas vivas (1910) e Tapera (1911) – como que certificando o fim do caudilhismo e da barbárie gauchesca e a passagem do estado para a modernidade. Em 1912, mesmo ano de publicação dos contos simonianos, vale destacar, os editores do jornal A Federação – órgão oficial do partido e do regime – entraram em polêmica com o escritor paraense José Verissimo, que havia publicado, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, uma série de descrições de gaúchos que encontrou em viagem à região Sul. Para A Federação, Verissimo confundia os trabalhadores das estâncias modernas com um tipo de outrora: “Quase extinto já, o homem do campo capaz de merecer o nome de gaúcho, com a sua acepção literal, é raro, raríssimo, em nossos dias, pois a civilização penetrou os nossos pampas transformando os costumes”.

Na fábrica imaginária de gaúchos representada pela literatura regionalista republicana, portanto, ora se apelava a campeiros disciplinados e discursivamente higienizados, confundidos folcloricamente com a elite latifundiária e sua memória histórica (sintetizada então no resgate e na apropriação da Farroupilha como prenúncio do movimento republicano e do próprio PRR), ora se defendia a superação do passado de guerras de fronteira, violência generalizada e bandidismo, plasmadas em antiga imagem da pampa como terra sem lei. Tudo isso com uma nota nacionalista de fundo, que escondia as relações históricas do Rio Grande com o Prata (incluindo o peso do passado missioneiro espanhol e indígena de seu território) e reforçava a brasilidade particular da região (indicando também sua branquitude, pela descendência açoriana, em pleno pós-abolição): braço luso-brasileiro no sul da América, defensor da fronteira e da integridade do geográfica do país; não-separatista, mas regionalista (no sentido político, próximo aos ideais federalistas de autonomia da província).

Nesse quadro, a diferença simoniana é gritante. Não precisaria de muito para lembrar que sua literatura dá vazão a representações históricas do gaúcho como rebelde, em franco confronto com a gauchidade positivista dos anos 1900 (retomada mais tarde pelo tradicionalismo gaúcho criado no Colégio Júlio de Castilhos em 1947 e consolidado com os Centros de Tradição Gaúcha que se espalharam pelo estado na década de 1950) e, ainda mais, da negação da gauchidade pampiana (transnacional, popular, mestiça) recorrente no discurso oficial dos anos 1910. É o que busco destacar no livro Simões Lopes Neto e a fabricação do Rio Grande gaúcho (São Leopoldo: Oikos), originalmente a primeira parte de minha tese de doutorado em História Social “A invenção de Simões Lopes Neto” (UFRJ, 2018), lançado agora pela Coleção ANPUH/RS, da seção estadual da Associação Nacional de História. 

Nessa nova visada, busquei reconsiderar as tradições letradas local, nacional e rio-platense do século 19 nas lentes de Simões Lopes Neto, reinserindo também sua trajetória e sua obra no contexto geopolítico e sociocultural fronteiriço/pampiano: o que ele lia e o que ele fazia com o que lia no espaço em que vivia. Acredito que isso ajuda a historiar o processo de construção coletiva da identidade gaúcha para o Rio Grande do Sul, matizando interpretações homogeneizantes, ao evidenciar as disputas e tensões que ele abriga. Também permite apreender mais significados originais da obra. Os Contos Gauchescos e parte das Lendas do Sul ganham outra dimensão após o mapeamento do debate público de época e das posições do escritor. A própria escolha do gênero gauchesco, então inédito em prosa de linha culta no Brasil (não confundir com regionalismo literário em sentido amplo, já que a gauchesca exigia foco narrativo e trabalho de linguagem popular em convenções específicas), soa como uma afronta ao republicanismo castilhista. Em nota não assinada, era assim que A Federação noticiava o lançamento simoniano em ficção: “contos narrados à feição da gente do campo, num Rio Grande já remoto, sobre assuntos característicos dessa mesma gente, hoje quase extinta entre nós”. Chegava a reconhecer sinceridade no apreço de Simões pelo “gênero de literatura muito restrito” (uma referência explícita e um veto implícito à gauchesca), “embora discordemos da opinião de que a vulgarização de tal literatura tenha qualquer fim de utilidade real”.

A crítica à forma também indicava uma reprovação dos conteúdos. A perspectiva popular da narração – produto das estratégias de composição de ficção importadas da gauchesca da Argentina e do Uruguai, que originou o personagem narrador Blau Nunes – trazia para a alta literatura, com complexidade psicológica, uma série de sujeitos marginalizados e silenciados no processo de pacificação e modernização da fronteira Sul do Brasil: povos indígenas – especialmente na memória missioneira -, negros, mulheres e gaúchos populares rebeldes. Nada que um ideólogo do gauchismo perrepista pudesse e quisesse sustentar.

Neste momento tão característico de celebrações da identidade gaúcha, fica o convite para que se leia e se conheça um Simões Lopes Neto dissonante, que pode ter reforçado a ideia de Rio Grande gaúcho, mas que não deveria ser acusado de fabricar o gaúcho ideológico conservador que ainda hoje nos interpela. Talvez desse reencontro possa surgir, como dito em meu livro, “um contraponto à gauchidade mais retrógrada, que sempre emerge em tempos de crise, com a falsa promessa de segurança das soluções fáceis de isolamento e das certezas equivocadas de superioridade, além de tudo o que perdemos com a negação do outro”.


SERVIÇO 

Lançamento: Simões Lopes Neto e a fabricação do Rio Grande gaúcho: Literatura e memória histórica no sul do Brasil, de Jocelito Zalla (Oikos, 2022, 320 páginas).

Hora: 18h30

Bate-papo sobre literatura gaúcha com Luís Augusto Fischer

Hora: 19h30

Dia: 22 de setembro de 2022 – quinta-feira

Museu da UFRGS – Avenida Osvaldo Aranha, 277 – Porto Alegre / RS

Será possível adquirir o livro no dia do lançamento com desconto.



Jocelito Zalla é bacharel, licenciado e mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estágio na Université Paris-Sorbonne. É professor do Colégio de Aplicação, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor de O centauro e a pena: Barbosa Lessa e a invenção das tradições gaúchas (Editora da UFRGS, 2018).

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