Ensaio

Supressão e representificação das rasuras do passado

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Supressão e representificação das rasuras do passado

O que temos observado, no grande número de obras escritas por mulheres no âmbito da literatura brasileira, é um afã de repor o que foi omitido, escamoteado no passado. Joël Candau (2012) chama essa representação que cada indivíduo faz de sua própria memória de metamemória. Nesse sentido, recordar (cuja origem etimológica é passar de novo pelo coração: cor, cordis) é uma prática representificadora. Nessa medida, recontar histórias, destacando o protagonismo feminino, é recontar a história pelo avesso, preenchendo lacunas, narrando a partir de novas perspectivas e ousando pôr em evidência o que fora, durante muito tempo, proibido contar, por conta da condição de subalternidade das mulheres – em sua maioria, financeiramente dependentes de seus pais e/ou de seus maridos.

Supressão de vozes de mulheres negras

Bons exemplos de supressão de vozes de mulheres na literatura brasileira é o de Maria Firmina dos Reis, autora do romance Úrsula, de 1859, e o de Ruth Guimarães, mulher negra que publicou a saga do sertão “do avesso”, ou seja, do ponto de vista das mulheres e não dos homens. Água funda, de Ruth Guimarães, foi publicado em 1946 e só veio a receber uma segunda edição, com prefácio de Antonio Candido, em 2003.  

As vozes de Maria Firmina dos Reis e de Ruth Guimarães permaneceram na inaudibilidade durante quase um século. Será somente por volta de 1975 que Úrsula sairá do ostracismo com a edição fac-similar de sua obra, publicada no Rio de Janeiro pela Gráfica Olímpica. Contudo, esse livro só se tornará conhecido do grande público em 1988, quando Luiza Lobo lança a terceira edição, com notas de sua autoria, pelo Instituto Nacional do Livro.

Ambas as autoras passaram e não deixaram marcas nos leitores de sua época, como escreve a própria Ruth Guimarães em Água funda: “A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada” (quarta de capa). Durante muito tempo não ficou mesmo nada desses importantes depoimentos das duas escritoras negras. Felizmente seus trabalhos foram resgatados décadas depois para iluminar nossa compreensão sobre as dificuldades que enfrentaram as mulheres do início do século passado para dar a conhecer suas obras. 

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é autora de uma obra que subverte o campo literário brasileiro ao trazer o depoimento de uma favelada, semianalfabeta, descortinando um universo nunca antes revelado de seu interior, por alguém sofrendo as agruras da pobreza, da fome, das violências e as imensas dificuldades para alimentar vários filhos. Quarto de despejo: diário de uma favelada vem a lume, em 1960, graças à participação do jornalista Audálio Dantas, que, ao descobrir a existência do diário, decidiu ajudar a autora em sua divulgação, publicando-o primeiramente na Folha da Noite, em 1958, e mais tarde na revista O Cruzeiro, em 1959.  

Esse livro, que repercutiu em muitos países, tendo sido traduzido em mais de 13 idiomas, tira seu ineditismo do fato de o eu enunciador ser uma mulher negra e favelada, trazendo ao leitor esse universo paralelo, fato incomum na literatura brasileira de todos os tempos. Trata-se do diário de uma catadora que nos apresenta o que se pode chamar de literatura-verdade, tendo o editor mantido os elementos característicos da oralidade, sem “corrigir” para o português erudito da língua escrita. Isso nos aproxima dos relatos de Carolina, fruto de uma duríssima realidade registrada nas folhas encardidas de seus cadernos.    

O feminismo avant la lettre de Carmen da Silva 

Outra autora que fez furor nos anos 1950 e que depois permaneceu esquecida foi a escritora avant-gardiste Carmen da Silva. “Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro”: assim se expressa a professora Nubia Hanciau, pesquisadora da obra de Carmem Silva e autora de um site completo que resgata a vida e a obra da autora rio-grandina que já havia caído no esquecimento.

Um interessante trabalho vem sendo feito nos dias de hoje para rememorar os nomes que trouxeram imensas contribuições para a literatura e para a vida das mulheres em tempos em que o que mais observávamos eram apagamentos de todos os tipos. A obra de Carmen da Silva desmascara o que foi contado unicamente do ponto de vista masculino; recria o que vimos chamando de uma Poética da Ausência, que opera em dois níveis: no da rememoração involuntária e no da evocação consciente, que Walter Benjamin definiu como reminiscência. Esse trabalho da reminiscência pode ser definido como uma procura ativa e consciente de lembranças e a tentativa de enunciar o que não se teve coragem até então de enunciar: os direitos das mulheres, em todos os planos, têm que ser iguais aos dos homens. 

Os vários livros e artigos publicados chocaram os conservadores da época. Com seus artigos na revista Cláudia, Carmen da Silva angariou muitas leitoras que se identificavam com suas posições declaradamente feministas, defensoras de uma postura inusual à época que era a da igualdade de direitos e oportunidades para homens e mulheres. Algumas de suas obras, como Homens e mulheres no mundo moderno, Histórias híbridas de uma senhora de respeito e A arte de ser mulher, tiveram grande impacto sobretudo no leitorado feminino da época. A autora nasceu em Rio Grande (no Rio Grande do Sul) em 1919 e faleceu no Rio de Janeiro em 1985, depois de ter vivido muitos anos em Montevidéu, no Uruguai. 

Ao reunir essa obra que ficou dispersa em um site e em um livro, Nubia Hanciau prestou imenso serviço não só aos leitores e aos interessados em literatura, mas ao feminismo no Brasil. Reunir o que ficou disperso, o que foi elidido e esquecido, é função não só dos poetas e escritores como dos professores de literatura, os que se interessam por questões ligadas à preservação da memória social e dos bens culturais em nosso país. O ato de representificar no presente as omissões do passado corresponde a revalorizar o que foi retirado do esquecimento, tornando presente o que se fez ausente. 

Essa é também a nossa tarefa com o presente artigo: escavar elementos memoriais, trazê-los à tona e associá-los ao exercício contínuo de construção/reconstrução das identidades nacionais. Para tal, como vimos apontando desde o início desse texto, os escritores e suas obras literárias têm um papel decisivo nesse processo de tirar do esquecimento o que foi, muitas vezes, por preconceito, deixado de lado, procurando promover o inventário de ausências. 

O Mulherio soltando a voz na contemporaneidade

O Mulherio foi uma coluna escrita por Carmen da Silva por volta de 1982. Em homenagem a ela, utilizei essa expressão para falar das mulheres que fazem a literatura brasileira contemporânea dos anos 1980, aproximadamente, até a atualidade, criando uma nova conformação na paisagem literária contemporânea e reescrevendo o significado de “identidade nacional”. 

Apagamento e representificação da memória de afro-brasileiros

Inicio evocando duas gigantes da literatura afro-brasileira: Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves. Ambas trazem à tona a pujança da cultura negra no Brasil, associada a um domínio da escritura, o que garante a essas autoras uma grande visibilidade. Personagens, passagens da história do negro no Brasil, castigos e sofrimentos não são evocados meramente como “paisagem” ou ilustração, mas no seu viés humano e emblemático em um país onde imperou o regime escravocrata por mais de 300 anos. 

Conceição Evaristo, como poeta, como contista ou romancista, emociona, revela, transcende. A configuração da identidade nacional é alargada com a humanização de personagens negras e com os pontuais relatos de injustiças cometidas ao longo dos séculos em relação à população de origem afro. Não tem como não se emocionar com a filha questionando sua mãe sofrida por não ter condições de sustentar adequadamente os filhos: “Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos” (Evaristo, 2015, p. 19). Daí a expressão “olhos d’água”, já que a mãe estava sempre a chorar: “lágrimas e mais lágrimas”.

Tanto na prosa ficcional quanto em sua obra poética, a relação entre a mãe, a filha e a avó é marcada por uma imensa solidariedade e por muito respeito, devido à importância que tem, na cultura afro-brasileira, a relação com os ancestrais. Seu poema “Vozes mulheres” revela a solidariedade que caracteriza a relação com a ancestralidade: 

A voz de minha bisavó ecoou
Criança
Nos porões do navio.
Ecoou lamentos de uma infância perdida.
A voz de minha avó
Ecoou obediência
Aos brancos donos de tudo.
A voz de minha mãe
Ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
Debaixo das trouxas
Roupagens sujas dos brancos
Pelo caminho empoeirado rumo à favela.
A minha voz ainda ecoa versos perplexos
Com rimas de sangue e fome.
A voz da minha filha
Recorre todas as nossas vozes
Recolhe em si
As vozes mudas caladas
Engasgadas nas gargantas.
A voz da minha filha
Recolhe em si
A fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz da minha filha
Se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.  

(Evaristo, 2008) 

Temos, com esse poema, uma amostragem da importância, para a autora, da evocação de sua ancestralidade feminina, assim como sua descendência: ao recolher os vestígios memoriais e tentar preencher os desvãos da história da mulher escrava no Brasil, antevê a possibilidade, para a geração da filha, de transformar a fala em ato, em revolta, em rebeldia. Através dela poderá enfim ecoar a vida com e em liberdade. A autora sabe que somos o que lembramos e é essa herança de “sangue e fome” que ela quer legar à filha, que enfim poderá recolher em si a fala e o ato. 

Em uma narrativa de mais de 900 páginas, Ana Maria Gonçalves retraça em Um defeito de cor (2010) extensos painéis da vida no Brasil colônia durante a vigência da escravatura. Trata-se de um poderoso e incontornável livro para todos aqueles que querem conhecer mais sobre a vida dos escravos durante o longo período de vigência da escravidão no Brasil. O grande interesse do livro reside no fato de a extensa narrativa ser contada por uma mulher escrava, Keinde, rebatizada Luísa pela família que a comprou no mercado de escravos da Bahia. É de grande importância essa narradora negra escrava que guia o leitor, durante todo o relato, a partir de sua visão do quotidiano da escravidão. Muito importante para o nosso objetivo – que é o de ressaltar os caminhos tortuosos de fazimento e desfazimento da identidade nacional – será acompanhar a visão dos fatos a partir do ponto de vista de uma mulher negra e escrava. É muito interessante notar como a heroína narradora tenta reaver sua memória familiar, embora a mãe e a avó tenham morrido na travessia dentro do navio negreiro. Privada de seu estoque memorial com a perda das ancestrais, resta-lhe tentar recuperar a memória coletiva pelo compartilhamento de saberes com as sacerdotisas do vodum, na casa das Minas. Iniciando-se como vodúnsi, Keinde reintegra o patrimônio imaterial do qual foi privada com a falta de convívio com pessoas de sua comunidade original. 

Tendo perdido mãe e avó, perde o fio da memória, já que os ancestrais representam a união entre os antepassados e seus descendentes. Através do ritual de iniciação, Keinde incorpora, junto com a sabedoria ancestral, o dever de memória e transmissão, o que justifica sua busca incessante pelo filho desaparecido – que seria o poeta Luís Gama – para poder exercer esse dever de memória, legando ao filho a herança memorial. Reza a lenda que Luísa Mahin (Keinde) foi a mãe do poeta Luís Gama, o qual soube tão bem retransmitir a cultura ancestral em seus poemas que fazem parte integrante da literatura brasileira. 

No já longo percurso como professora e pesquisadora na área das literaturas das Américas, venho procurando colocar em xeque o conceito de identidade nacional, devido aos fluxos cada vez mais frequentes de migrações, exílios, diásporas e entrecruzamentos de todos os tipos.  O debate identitário precisa ser libertado de seu pacto exclusivo com a língua e com a nação. Relações multi, inter e transculturais são uma constante na modernidade tardia em que vivemos. Logo, as identidades devem ser consideradas em sua pluralidade e multiplicidade, sempre em movimento, infensas a uma formatação única e imutável. 

Referências:
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012. 
EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016. 
______. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.
______. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2008. 
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2010. 
GUIMARÃES, Ruth. Água funda. São Paulo: Editora 34, 2018. 
HANCIAU, Nubia; ALVES, Francisco das Neves (Org.). Para ler Carmem da Silva: precursora do feminismo brasileiro. Rio Grande: Biblioteca Rio-Grandense, 2020.  
JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014. 
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2018. 
SILVA, Carmem. Site oficial. Disponível em: <https://www.carmendasilva.com.br/>.

*Esse texto integra a quarta edição, revista e aumentada, do livro Literatura e Identidade Nacional, que será lançado em breve pela Editora da Universidade – UFRGS. 


Zilá Bernd é Pesquisadora 1 A /Cnpq. Possui Licenciatura em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestrado em Letras pela mesma Universidade e doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo.

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