Ensaio

Travessias do luto

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Travessias do luto Foto: Mariam Pessah

Para todo ser humano, a perda é constitutiva, participa da sua essência. Podemos mesmo dizer que é a perda o que nos humaniza. Talvez seja essa dimensão fundamental da perda a razão pela qual somos seres de linguagem, falamos. Isso porque somos, entre os mamíferos, o animal mais prematuro para nascer, chegamos a este mundo sem nenhuma aptidão física ou psíquica para continuar nele. É somente graças ao acolhimento do outro que se ocupa do nosso desamparo, de nossa extrema fragilidade, que sobrevivemos a esta prematuridade e passamos a nos desenvolver. Sem este acolhimento e cuidado do outro, sucumbiríamos, pois inclusive nossa maturação fisiológica, nosso organismo e nossas funções dependem dele para acontecer. E também, ao contrário dos outros mamíferos, e por causa de nossa extrema prematuridade, precisamos deste outro por um tempo bastante longo, que na verdade, parece terminar apenas na idade adulta. Assim, nossa sobrevida depende, desde o tempo zero de nossa existência, da disposição de um outro para fazer comunidade conosco, se ocupar de nós, investir afeto e desejo de que prossigamos. Sem outro, não há chances de um Eu vir a acontecer.

Nossos primeiros lutos

 Cada momento do nosso desenvolvimento é marcado por uma perda. Primeiro, perdemos a permanência interna no corpo materno, com o nascimento. Depois, a cada dia, perdemos um pouco da constância do seio materno disponível, cada vez que o convoquemos para este reencontro. Nenhum de nós sabe o que é a fome, quando nascemos, choramos porque queremos que a mãe venha se ocupar de nós. A fome nos é ensinada pela alternância com que somos alimentados. Em seguida, perdemos o seio materno – momento em que o parto termina efetivamente de acontecer – e quase sempre, é também a partir desta perda que nos reconhecemos em um espelho (que pode ser o olhar do outro), assumindo a imagem de nosso próprio corpo, e é sempre o Outro – a mãe, ou quem se ocupa do cuidado conosco – quem valida essa imagem para nós, com suas palavras, por exemplo “Olha que lindinho, este é o fulaninho, meu tesouro!”   Não dominamos ainda o nosso próprio corpo, nem paramos de pé sozinhos, nem falamos, e já começamos a ser outro, e não mais uma continuação do corpo materno. Este momento precoce de regozijo é também o momento inaugural de uma depressão, de um luto, já que uma perda radical acontece, pois afinal, ser outro para o Outro é perder definitivamente o amparo absoluto que até então o corpo materno representava. Mas é também a partir deste luto, desta dolorosa perda, que passamos a balbuciar as palavras, assumindo nosso ingresso na linguagem.  

E Lacan nos adverte para o fato que este momento da assunção jubilosa da nossa imagem do corpo é nada menos do que o momento em que nosso Eu se constitui, e que representa a matriz simbólica de todas as formas de socialização futuras, ou seja, nossa relação com o semelhante, com nossos outros, nossa possibilidade de fazer laço social. É dessa experiência precoce com a perda que saímos do estado de natureza e passamos ao estado de cultura. Entretanto, aquele gozo perdido da plenitude, experimentado na indiferenciação do corpo materno e nas pequenas compensações que nosso processo de desenvolvimento nos oferece (o seio materno, além dos cuidados constantes do Outro), vai estar sempre nos fazendo falta. E é justamente com esta falta, inscrita no nosso psiquismo de maneira totalmente inconsciente, que vamos nos inventar como pessoa, como ser que ocupa um lugar no social, que se submete às leis comuns. Assim aprendemos a caminhar, a falar, a ler, a escrever, a fazer escolhas, a estar em relação com os outros. A perda de nosso gozo absoluto nos transforma em seres falantes e eticamente implicados em nossos vínculos e em nossos atos.

Entretanto, os processos psíquicos brevemente descritos acima jamais acontecem de forma harmônica e perfeita. Não são etapas marcadas cronologicamente e que naturalmente acontecem. Ao contrário, por sermos progressivamente “desnaturados”, dependem de quem são os outros que se ocupam dos recém-chegados ao mundo. Ou seja, depende de que relação esses primeiros outros têm com a perda, as possibilidades que terão de promover um percurso interessante para a criança da qual se ocupam. Em psicanálise, são essas as condições do desenvolvimento humano, bastante diferentes de uma psicologia do desenvolvimento, na qual, de certo modo, os processos “naturalmente” aconteceriam por etapas naturais, sendo os “distúrbios” do desenvolvimento antinaturais, e logo, anomalias a corrigir. Evidentemente, nossa maturação física e psíquica é um processo longo e complexo, porém não prescinde da nossa relação primária, e mesmo arcaica, com a perda e com a falta, cujos restos são marcas indeléveis em nossa existência. 

A difícil e necessária comunidade humana

“Narciso acha feio o que não é espelho”, diz o poeta com certeira sabedoria para falar do estranhamento que a cidade, este vasto lugar onde cada um de nós vive com seus outros, produz. Completamente esquecidos de nossa dependência fundamental do outro, circulamos entre os outros como seres absolutamente autônomos, o que nos impede que nos reconheçamos na fragilidade e no desamparo que habitam as ruas que percorremos. Também a diferença, esta singularidade tão valiosa para a humanidade, nos aparece como bizarra e incômoda, ou mesmo insuportável. A cor do outro, seu sexo, seu fenótipo, sua condição de existir, sua vulnerabilidade, não nos interessam, posto que não são mais do que imperfeições.  Como se fossemos uma espécie de eternização de “sua majestade, o bebê”, a diferença e o estado de precariedade do outro não nos concerne, e assim, nem mesmo nosso olhar se detém sobre ele. Preocupados em otimizar nossas possibilidades de êxito, levamos ao extremo o ideal que o capitalismo neoliberal nos entrega feito um catecismo: “Ter para ser”, ao qual nos devotamos com fervor. Assim, frustração, perda e falta são para os fracassados, os inaptos, os anômalos.  Como pensar em comunidade humana quando somos regidos por uma lógica sustentada por um imperativo de gozo absoluto, na qual se cumpriria um Eu que nada deve ao outro, que nada quer saber de incontornáveis e dolorosas travessias de luto das quais nosso viver juntos não nos exime?

Felizmente, não somos majoritários nessa aventura perigosa com o gozo a qualquer preço. Nossa sociedade, sabemos hoje com precisão, é ligeiramente majoritária em não se deixar perder a bússola do cuidado com o outro, e trabalha para que essa proporção seja cada vez maior, apesar de todos os percalços, apesar da fúria desmedida com que a outra parcela reage à nossa resistência, fúria essa da qual os inomináveis acontecimentos de Brasília no dia 8 de janeiro foram exemplares.

Somos sobreviventes de sucessivas catástrofes naturais, sanitárias, políticas e sociais das quais muito caminho ainda está por ser percorrido, para que um luto seja atravessado. É um compromisso incontornável com nossa condição de fazer parte desta difícil, complexa, e por vezes impossível comunidade humana. De onde a espontânea e óbvia declaração, a cada tragédia que testemunhamos, direta ou indiretamente: “somos todos”. De fato, somos todos os enlutados dos desaparecidos políticos e dos mortos por tortura na América Latina, do holocausto, da primeira e segunda guerra mundial, e de Hiroshima e Nagasaki, para citar aqui as mais impactantes catástrofes do século XX. Neste quase um quarto do século XXI, somos todos os enlutados da tragédia de Belo Monte, de Brumadinho, do Jacarezinho, das 200 jovens vidas perdidas no incêndio da boate Kiss, e também somos os enlutados das quase 700 mil vítimas da Covid-19, além das milhares de mortes diárias no país por fome, violência doméstica, de gênero, de raça e de Estado, sem contar as guerras e terremotos que devastam o mundo em que vivemos. E mais recentemente, nossa bagagem de luto por fazer ficou ainda mais pesada, com o massacre desvelado do povo Yanomami. Resta interrogarmos como assumiremos essa caminhada dolorosa de tantos lutos, ou seja, como assumiremos este “somos todos” que há tanto tempo temos enunciado?

A doença da dor e da morte: um paradigma da crise contemporânea

Em 1987, Julia Kristeva consagrou um capítulo de seu livro Sol Negro-Depressão e Melancolia à obra de Marguerite Duras, autora, entre outros, de Hiroshima meu amor, A dor e A doença da morte . Com justeza, Kristeva considera Hiroshima meu amor como o livro que condensa tudo o que Duras escreveu a partir dele, notadamente A dor e a Doença da morte. Desta autora que tão bem soube falar do amor, da morte e do gozo em sua vasta obra de ficção, Kristeva obtém valiosa contribuição para a psicanálise, mas também para todos os que pensam o político e o social. Afinal, o luto que cabe a cada sujeito viver em sua experiência humana diz muito sobre sua relação com seus outros, os que partiram, e também com os que com ele sobrevivem.   De saída, nos deparamos com a constatação, a exemplo de Paul Valéry em 1914, de que já nos sabemos mortais, e depois da segunda guerra, podemos acrescentar a de que já sabemos também que podemos promover nossa própria morte. Auschwitz e Hiroshima revelaram o quanto “a doença da morte” é constituinte de nossa intimidade mais secreta.  A partir de então, não apenas os domínios militar e político são movidos por uma paixão pela morte, mas também, e  de fato, esta paixão participa da tessitura de nossa subjetividade. Com a guerra, uma intensa crise – que já estava em andamento – do pensamento, da palavra e da representação se produziu, comparável apenas com os efeitos do afundamento do Império Romano e a ascensão do cristianismo, os anos de peste ou das guerras medievais devastadoras. Quanto às causas, podemos situá-las nas falências econômicas, politicas e jurídicas.  Sobre estes efeitos, Kristeva nos diz ainda:

Todavia, a potência das forças destruidoras jamais apareceu tão incontestável e tão incontrolável como hoje em dia, tanto fora quanto dentro do indivíduo e da sociedade. A destruição da natureza, das vidas e dos bens se redobra em uma recrudescência, ou simplesmente, em uma manifestação mais patente, das desordens das quais a psiquiatria refina o diagnóstico: psicose, depressão, mania, borderline, falsas personalidades, etc.

Tanto os cataclismas políticos e militares são terríveis e desafiam o pensamento pela monstruosidade de sua violência (a de um campo de concentração ou de uma bomba atômica), quanto a deflagração da identidade psíquica, com uma intensidade não menos violenta, resta dificilmente apreensível.

 Na sequência, a autora chama a atenção para o fato de que um dos maiores desafios para a literatura e para a arte se encontra nesta invisibilidade da crise da identidade da pessoa, da moral, da religião e da política. Tal crise se traduz radicalmente por uma crise da significação. Algo da ordem do inominável se apresenta, e que ultrapassa todas as possibilidades da “música das letras”, ficando paralisado no ilógico e no silêncio.

 Ainda que o texto de Kristeva se refira aos efeitos da segunda guerra mundial sobre a modernidade dos anos 80 e 90, parece-nos uma crise paradigmática. Não nos encontramos hoje diante dessa impossibilidade de representação que tantos eventos monstruosos e dolorosos nos impõem? Nossa capacidade de significação se encontra, em nossos dias, devastada por uma gigantesca onda que parece ter levado consigo nossas possibilidades de simbolização, nos vemos desmunidos dos recursos que as palavras sempre nos forneceram. Essa crise da representação tem se apresentado de maneira cada vez mais inquietante, e parece estar chegando a uma espécie de ponto limite. Ou a subvertemos, ou afundamos no silêncio petrificador. De que recursos dispomos para isso?

Recentemente, vários autores têm assumido o quanto é impossível falar, ainda hoje, da tragédia da boate Kiss, e no imediato, da tragédia do povo Yanomami. Impossível escrever sobre esses acontecimentos, pois eles são irrepresentáveis, só podemos falar da nossa dor, jamais teremos alguma medida da dor das famílias dos jovens mortos em 2013 naquele trágico incêndio, da dor das quase 700 famílias enlutadas da Covid-19, e menos ainda da dor de cada perda para o povo Yanomami.

 Aliás, em 1959, quando o cineasta Alain Resnais dirigiu “Hiroshima, meu amor” (roteiro de Marguerite Duras), ele foi bem pontual em afirmar que se tratava de um filme sobre a impossibilidade de fazer um filme sobre Hiroshima. “Tu não viste nada em Hiroshima”, é uma fala do personagem japonês que insiste, na narrativa, e parece nos dizer o quanto nossa condição de testemunho é sempre precária e insuficiente.

Contudo, esta precariedade e insuficiência não nos eximem de nossa responsabilidade com nosso pertencimento à comunidade humana, na qual estamos inscritos enquanto seres de linguagem. O desamparo e a dor do outro nos diz respeito, uma vez que “somos todos” marcados, desde sempre, pela perda originária que nos faz existir porque um outro, um dia, se ocupou da nossa fragilidade. O cuidado e o amparo são inerentes à nossa existência. Obviamente, podemos cuidar e amparar de diversas formas, pois nem sempre se trata de estar in loco, mas de agir sobre a dor e o desamparo do outro, de “comprar a briga” pela vida. É o que nos resta fazer: assumir a responsabilidade por nosso lugar de testemunho da dor do outro, apesar da precariedade e da insuficiência deste lugar.

Luto na experiência clínica da psicanálise e luto da psicanálise 

De fato, estamos atravessando uma espécie de túnel escuro de infindáveis lutos por tantas mortes, e consequentemente, nos deparamos com os efeitos desta dor em nosso laço social, e em nossas formas de organização psíquica, das quais nenhum manual, nenhuma classificação psiquiátrica consegue dar conta, apesar da numerosa terminologia sempre atualizada, junto com as novas fórmulas laboratoriais. Os transtornos se multiplicam, se reclassificam, proliferam, mas uma insuficiência de nomeação persiste, deixando lugar de sucesso apenas para a indústria do sofrimento, a farmacológica.

 A clínica psicanalítica, por sua vez, mais do que nunca se propõe a escutar as narrativas com a radicalidade que lhe é própria, deixando a cada paciente a prerrogativa e a responsabilidade de reconhecer-se como sujeito, ou seja, como implicado na dor e na perda que constituem seu sofrimento, bem como de nomear este sofrimento. Entretanto, ao mesmo tempo que nos confrontamos com a imensa demanda de acolhimento e escuta que nossa realidade atual produziu, uma estranha apatia, beirando a letargia subjetiva, aparece com frequência como obstáculo ao tratamento analítico, uma vez que o paciente fica “sem palavras” para dizer sua dor. Esta espécie de paralisia psíquica traumática parece nos dizer algo de um luto a ser feito, e para o qual as palavras se revelam insuficientes. Há que se aliar ao tempo, e continuar escutando, para que uma narrativa se rearticule a partir dos silêncios, e que uma reinvenção se construa na fala de cada um, o que equivale a uma travessia de elaboração da perda.

 Enquanto disciplina, a psicanálise se vê cada vez mais convocada a implicar-se na realidade do seu tempo. Assim sendo, do mesmo modo como na clínica há que se promover a possibilidade de reinvenção, para cada paciente, de sua existência com seus outros, a psicanálise, ela mesma, precisa se reinventar a partir de cada psicanalista, o que também supõe um luto. E a menos que ela prefira ficar petrificada, agarrada ao cadáver do ideal de si mesma, só lhe resta fazer esta travessia e escutar o que a cidade tem a lhe dizer sobre seu mal-estar, e agir sobre ele segundo suas possibilidades. Pois afinal, do mesmo modo que para aqueles que buscam sua clínica, trata-se de reinventar um modo de viver com seus outros, apesar da dor, e com a dor, para a psicanálise também se trata de redescobrir o seu lugar na estrutura social na qual ela está inscrita, e logo, não isenta de responsabilidade.  Resta saber que formas de intervenção lhe serão possíveis, neste contexto, e o quanto ela conseguirá afirmar-se como essencialmente subversiva, reatando com sua própria história. Felizmente, tanto no Brasil quanto em outros países, são gradualmente mais numerosos os psicanalistas a assumirem sua responsabilidade para com a reinvenção da psicanálise. Isto se verifica, por exemplo, no site psicanalistas pela democracia, onde a escrita de cada um dá conta desta radicalidade ética.

 Lutar e fazer o luto: uma utopia

“Escrever é se vingar da perda”. Lembrando este verso do poema “Jet-lagged”, de Waly Salomão, Edson L.A. de Souza, em seu ensaio Furos no Futuro-Psicanálise e utopia nos diz:

Poderíamos avançar um pouco mais e dizer que a escrita é ela mesma a materialização da experiência da perda; Isto nos ajuda, talvez, a entender a inibição de muitos com a escrita, pois estão dispostos a nada perder. É desta luta e deste luto que quero falar, por isto escrevo!  

A partir desta afirmação, pareceu-me que este ensaio oferece muitos aportes para a reflexão que tentei aqui expor, e que se encaminha para seu encerramento com questões quanto às formas possíveis de se pensar numa travessia de luto.  Afinal, estamos vivendo um momento em que nossa história, nossa experiência humana, e obviamente, nossa clínica, nos exigem muito, com relação a isso. A utopia, tal como nos é proposta e desenvolvida por Edson L. A. de Souza aparece-me como um elemento norteador quanto aos destinos possíveis de um luto. Mais do que levar a respostas, este norteador nos coloca em direção a um refinamento, uma amplificação da abertura das questões, e é esta abertura mesma que interessa-me sustentar. Para isso, privilegio aqui a passagem dos tópicos Um mar que se desarma em letras: litoral, literal, lutoral, seguido de O que o poder não pode? O inconsciente utópico.

Tendo como eixo os desenvolvimentos de Jacques Lacan em seu texto “Lituraterra”,  onde a noção de litoral é largamente desenvolvida, e da qual nosso autor vai se servir como importante referencial, somos convidados por ele a mergulhar no universo literário do grande escritor japonês Yukio Mishima, precisamente no conto “Morte em pleno verão”, que narra a morte de duas, de três crianças, enquanto a mãe dormia no hotel e a tia paterna se encarregava delas na praia. O olhar atento da tia e as recomendações de cuidado não conseguiram impedir que o repuxo e as fortes ondas fizessem desaparecer, de repente, o menino de 6 anos e sua irmã de 5. Apenas Katsuo, o menino mais novo, de 3 anos, sobrevive. A tia cai de costas na água, vítima de um ataque cardíaco. A tragicidade e a angustiante marcação dos tempos da cena, enfim todos os elementos desta magistral narrativa nos capturam, não conseguimos mais despregar nosso olhar do que ali se passa. Somos totalmente transportados para este cenário no qual, com razão, nosso autor nos diz que há um grande contraste: um ruído ensurdecedor do acontecimento, e, ao mesmo tempo, um silêncio feroz. O desespero e a dor incomensuráveis da mãe, e em seguida, a inclusão do pai, com sua própria dor, na trama, são dilacerantes. As tentativas da mãe de esquecer fracassam. “A própria palavra verão estava infestada de ideias de morte”, e é com muita comiseração que vemos a mãe se debater com sua culpa, à qual ela luta para sobreviver. O mundo era, para ela, um grande texto de morte.  Depois de muitas tentativas para amenizar o impacto da experiência traumática, a mãe engravida. Nasce uma menina, que vai se chamar Momoko. E um dia, Tomoko, a mãe, decide voltar à praia. Não sabe por que, mas precisa.  Ela precisa ver, para finalmente acordar daquela tarde e poder com este despertar produzir um litoral, uma margem de terra onde possa voltar a pisar:

 A rasura que a salva está na boca de seu filho. O texto que se esforça por esquecer retorna, potente na palavra de seu filho. Vê Katsuo ensinando uma palavra a sua irmã Momoko. Ele a ensina a dizer “Mar”!. Katsuo, que durante toda a história, era só choro e desespero, cumpre a importante missão de escrever um litoral, um lutoral que a família Ikuta tanto precisava. Tomoko tem consciência de que foram para lá “só para lembrar do que queremos esquecer. Temos aí a preciosidade maior de uma transmissão” 

Uma vez escrita, e necessariamente escrita, esta narração cumpriu sua função salvadora do despertar traumático e da transmissão dos limites da representação.  Além disso, nos esclarece o autor, que a utopia está na enunciação “mar”, por Katsuo. Ele desenha para todos um outro mar. Aponta outro horizonte, outra possibilidade de olhar.

Poderíamos discorrer durante muito tempo sobre as sequências desta importante passagem, mas guardemos que o pequeno Katsuo ensina a sua irmã Momoko um pouco da dor, que o significante “mar” carrega consigo. Fazendo isso, ele cumpre sua corajosa função de testemunha, transmitindo a todos a responsabilidade que devemos ter com relação a nossa história.

Na sequência, abordando os limites do poder, o autor nos apresenta uma importante articulação com a questão da função e da responsabilidade da testemunha. Por exemplo, a respeito da nossa mais recente travessia traumática vivida no período da pandemia sob o signo de um poder político insano e cruel, ele nos diz: Ainda estamos vivos e precisamos falar pelos que não tiveram a chance da palavra .

Pois o poder, nos diz ele, esbarra sempre com sua impotência em silenciar os murmúrios dos traumas que ele produz. Neste ponto, a figura de Antígona é evocada como aquela que sempre retornará à cena traumática para confrontar Creontes e lembrá-lo dos princípios do que é do registro do humano.  Depois de interrogar sobre como poderíamos parar a máquina que apaga as marcas, derruba as cruzes e desdenha da agonia de seus semelhantes, Edson L.A.de Souza nos lembra do abominável horror da asfixia simulada, em forma de deboche, pelo presidente de um país, e nos diz: Precisamos voltar a respirar e recolher e cuidar das cinzas 

Como exemplo, a figura do taxista Marcio Silva nos é trazida. Na praia de Copacabana, ao ver um homem enfurecido derrubando as cruzes em homenagem aos mortos pela pandemia, ele, que poucos dias antes perdera seu filho infectado pelo vírus, sai de seu carro, pisa na areia e recoloca as cruzes no lugar. Márcio é uma de nossas Antígonas, afirma o autor. 

 Recolher e cuidar das cinzas, levantar cruzes derrubadas e tomar a palavra por aqueles que não mais estão, como também escutar aqueles que ainda estão, são maneiras de lidar com a dor e de prosseguirmos em nossa travessia.


Rosane Pereira é psicanalista e escritora, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre-APPOA e Presidente da Associação Projeto Gradiva-Atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de Mulheres esquecidas (Editora Bestiário, 2022).

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