Ensaio

Vamos para o Sombrio?

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Vamos para o Sombrio? Nasci numa cidade cujo nome espanta. Poucos acreditam poder um lugar chamar-se assim. Não ser adjetivo e sim nome. Sombrio, município situado no extremo sul do estado de Santa Catarina. Quando fui morar no Rio Grade do Sul, com quase 7 anos, sofri bullying de alguns gaúchos. Insolentes e atrevidos, pediam para ver a barriga verde de uma menina de 6 anos. Quanta crueldade! Demorei algum tempo para entender de onde surgira esse epíteto transformado em intolerância com os pobres emigrados do estado vizinho. Verde era a cor de parte do uniforme militar do batalhão de artilheiros-fuzileiros do regimento de Santa Catarina. Precisei de décadas para valorizar o estado em que nasci, embora atualmente sinta vergonha alheia pela maioria apoiadora do inominável lá morar. Contudo a história de uma rara heroína de dois mundos, a lagunense Anita Garibaldi, compensa essa aberração. Se eu tivesse herdado nos meus genes uns dez por cento da coragem dessa guria, já estava satisfeita.  Para evitar aquele indizível nome, Sombrio, passei a mencionar apenas o nome do estado. A Santa e Bela Catarina, e suas praias paradisíacas, era adorada pela gauchada que saia a toda pela freeway a cada verão ou feriado, nos tempos dos bilhetes aéreos proibitivos. Mas logo um dizia: “E aquele povinho?” Não tinha jeito, até os elogios ao mar vinham acompanhados pelas piadas desabonadoras. Já com o nome de minha cidade natal ninguém fazia piada. O curioso nome era uma piada pronta, como diz o Zé Simão! Não, pior, era uma espécie de maledicência.  Os curiosos, não satisfeitos em saber meu estado de nascimento, emendavam: “De qual cidade?”, seguidos por “Ah, conheço” ou “Desculpe a ignorância” ou “Ah, logo depois de Torres, né?”, ou ainda, “Ah, sei, onde fica o Japonês, né?” Japonês é o nome do restaurante e centro comercial de parada obrigatória dos ônibus interestaduais. Não recordo de alguém cismado em conhecer os sonhos que fizeram um casal de jovens agricultores (meu pai com 30 e minha mãe com 26 anos) e suas três filhas pequenas (6, 3 e 1 ano) rumarem para uma cidade grande, nos idos anos 1970. Coragem que não herdei, confesso. “Certamente, se mudaram para fugir desse lugar tão sombrio”, vocês devem estar pensando.  Hoje, penso que para os meus progenitores havia três alternativas, à época: abandonar o campo e ir para uma cidade maior, onde poderiam ser operários fabris; permanecer na lida agrícola e, talvez, ter um futuro bastante difícil, a exemplo dos vários tios e primos que lá permanecem; ou encabeçar as fileiras do Movimento Sem Terra. Eles optaram pelo primeiro caminho e lhes sou muito grata por isso. Contudo, sou bastante empática com aqueles e aquelas que seguiram as duas outras possibilidades, também com suas alegrias e mazelas.  Depois que meus pais trabalharam arduamente, criaram e formaram as três filhas na universidade, se aposentaram e resolveram voltar para o lugar onde nasceram. Por esse motivo, faz uns dez anos, a cidade se tornou meu destino sistemático e não mais local de passagem […]

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Nasci numa cidade cujo nome espanta. Poucos acreditam poder um lugar chamar-se assim. Não ser adjetivo e sim nome. Sombrio, município situado no extremo sul do estado de Santa Catarina. Quando fui morar no Rio Grade do Sul, com quase 7 anos, sofri bullying de alguns gaúchos. Insolentes e atrevidos, pediam para ver a barriga verde de uma menina de 6 anos. Quanta crueldade! Demorei algum tempo para entender de onde surgira esse epíteto transformado em intolerância com os pobres emigrados do estado vizinho. Verde era a cor de parte do uniforme militar do batalhão de artilheiros-fuzileiros do regimento de Santa Catarina. Precisei de décadas para valorizar o estado em que nasci, embora atualmente sinta vergonha alheia pela maioria apoiadora do inominável lá morar. Contudo a história de uma rara heroína de dois mundos, a lagunense Anita Garibaldi, compensa essa aberração. Se eu tivesse herdado nos meus genes uns dez por cento da coragem dessa guria, já estava satisfeita.  Para evitar aquele indizível nome, Sombrio, passei a mencionar apenas o nome do estado. A Santa e Bela Catarina, e suas praias paradisíacas, era adorada pela gauchada que saia a toda pela freeway a cada verão ou feriado, nos tempos dos bilhetes aéreos proibitivos. Mas logo um dizia: “E aquele povinho?” Não tinha jeito, até os elogios ao mar vinham acompanhados pelas piadas desabonadoras. Já com o nome de minha cidade natal ninguém fazia piada. O curioso nome era uma piada pronta, como diz o Zé Simão! Não, pior, era uma espécie de maledicência.  Os curiosos, não satisfeitos em saber meu estado de nascimento, emendavam: “De qual cidade?”, seguidos por “Ah, conheço” ou “Desculpe a ignorância” ou “Ah, logo depois de Torres, né?”, ou ainda, “Ah, sei, onde fica o Japonês, né?” Japonês é o nome do restaurante e centro comercial de parada obrigatória dos ônibus interestaduais. Não recordo de alguém cismado em conhecer os sonhos que fizeram um casal de jovens agricultores (meu pai com 30 e minha mãe com 26 anos) e suas três filhas pequenas (6, 3 e 1 ano) rumarem para uma cidade grande, nos idos anos 1970. Coragem que não herdei, confesso. “Certamente, se mudaram para fugir desse lugar tão sombrio”, vocês devem estar pensando.  Hoje, penso que para os meus progenitores havia três alternativas, à época: abandonar o campo e ir para uma cidade maior, onde poderiam ser operários fabris; permanecer na lida agrícola e, talvez, ter um futuro bastante difícil, a exemplo dos vários tios e primos que lá permanecem; ou encabeçar as fileiras do Movimento Sem Terra. Eles optaram pelo primeiro caminho e lhes sou muito grata por isso. Contudo, sou bastante empática com aqueles e aquelas que seguiram as duas outras possibilidades, também com suas alegrias e mazelas.  Depois que meus pais trabalharam arduamente, criaram e formaram as três filhas na universidade, se aposentaram e resolveram voltar para o lugar onde nasceram. Por esse motivo, faz uns dez anos, a cidade se tornou meu destino sistemático e não mais local de passagem […]

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