Ensaios Fotográficos

Os náufragos de Porto Alegre

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Os náufragos de Porto Alegre Foto: Theo Tajes

Pessoas com água pela cintura, nas mãos o que deu para salvar. No caso de uma senhora de 86 anos, resgatada de barco de um segundo andar na Rafael Saadi, rua que virou rio no Menino Deus, uma sacola do Zaffari com alguns ovos e o remédio da pressão. 

Escrever sobre a catástrofe que engoliu Porto Alegre, que dizimou o Rio Grande do Sul, dói. Nada que se compare ao que hoje vive quem de repente se viu dormindo no chão de um abrigo, sozinho ou com a família, de todo jeito, perdido. 

No começo, os abrigos foram recebendo gente sem organizar quem ficava onde ou com quem. Era o que se podia fazer. Com o passar dos dias e a abertura de novos lugares, a multidão de náufragos foi sendo realocada em busca de um mínimo de conforto. Desconforto talvez seja a palavra mais exata. O SESC Campestre, por exemplo, chegou a abrigar mais de trezentas pessoas, que hoje são cento e tantas. Facilita na hora da alimentação, do banho, das atividades para adultos e crianças. 

Muitos dos abrigados não têm meios para localizar as famílias. Sem celular, sem referências, resta rezar para que os seus estejam juntos, estejam em outro local, estejam vivos, pelo menos. 

Nos abrigos, o dono do maior comércio do bairro e a diarista que limpava a casa dele dormem a alguns colchões de distância. As divisões sociais acabaram. Mas claro que o ser humano não deixaria de mostrar o pior do ser humano, mesmo em uma tragédia como essa. Não demoraram a aparecer denúncias de abusos e furtos, o que tornou emergência separar as mães solos e suas crianças em casas só para elas.

As crianças. O que vai sobrar de uma infância depois da enchente? 

As famílias são infelizes, cada uma à sua maneira. Uma senhora, obesa mórbida, conseguiu todos os remédios graças ao voluntariado, mas está doente pelo único filho, aluno esforçado que perdeu todos os materiais e os tênis e os games, e que hoje passa os dias ao lado do pai acamado e com sequelas de outras moléstias.

Uma moradora do Humaitá com seus cinco filhos, três deles autistas e agora atendidos com remédios e apoio psicológico, não reclama. Conta que está sendo muito bem tratada e os filhos já comeram até Miojo. A massa de dois reais com o tempero que nós, os que nunca passamos fome, chamamos de radioativo. 

As urgências da vida não deixaram de existir nesse não-lugar – como diriam os modernos – que é o abrigo. Pelo contrário, só se tornaram mais urgentes. E enquanto a água não baixa, e a chuva não para de cair, e os bueiros vomitam, e as bombas são ligadas e desligadas, e os diques se rompem, e milhares continuam sem luz e sem água, e as pessoas olham para suas vidas destruídas, e os voluntários se desdobram, e não se vê perspectiva, duas figuras lamentáveis com o colete laranja da Defesa Civil frequentam programas de rádio e TV com discursos que conseguem deixar tudo ainda mais trágico.

Porto Alegre é uma cidade de náufragos. 


Fotos: Theo Tajes

Claudia Tajes é escritora e roteirista. Theo Tajes é fotógrafo e roteirista.

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