Entrevista

A instalação imersiva que Amsterdam viu, mas o Brasil ainda não

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A instalação imersiva que Amsterdam viu, mas o Brasil ainda não

Mariana Luiza, mulher negra e contadora de histórias, como se define, foi a única brasileira a ter um filme selecionado na mostra competitiva de documentários imersivos do Festival Internacional de Documentários de Amsterdam (IDFA) – o maior festival mundial dedicado ao gênero –, que ocorreu no mês de novembro, na capital da Holanda. A obra Redenção, uma instalação imersiva projetada pela cineasta como uma resposta poética e contra colonial ao embranquecimento imposto à sociedade brasileira ao longo de sua história, foi apresentada na galeria LNDWStudio, e ainda não conseguiu espaço para ser exibida no Brasil.

A obra, apresentada na categoria “novas mídias” para documentário, foi construída a partir de um olhar crítico e analítico do quadro A Redenção de Cam, de 1895, do pintor espanhol Modesto Brocos, que viveu radicado no Brasil por mais de 40 anos. A pintura de Brocos, cujos personagens centrais são uma avó negra, uma mãe mestiça, um pai branco e seu bebê de pele clara, foi exibida durante o Congresso Universal das Raças em Londres, em 1911, como um símbolo da ideologia de branqueamento racial no país, amplamente disseminada durante o final do século 19 e início do século 20. Na ocasião, o Brasil apresentou um projeto nacional que previa o extermínio dos negros da população brasileira em um período de um século ou três gerações para que o país se tornasse majoritariamente branco.

A instalação projetada por Mariana cria uma experiência imersiva e labiríntica, com o intuito de provocar certo desconforto no público. Conforme a artista, ao longo do percurso os espectadores vão “experienciar o que foi esse projeto de nação e uma resposta a este projeto sentindo o tempo de formas diferentes”, explica. 

Com uma trajetória marcada pela atuação ligada às questões relacionadas à identidade negra, ao pertencimento e a gênero, o trabalho de Mariana como roteirista e diretora tem sido reconhecido em diferentes festivais nacionais e internacionais. Na entrevista a seguir a autora conta um pouco mais sobre sua trajetória, a participação no IDFA, o processo de branqueamento e de conscientização do racismo estrutural na sua formação e no país, o convite para colaborar com o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, dentro do MIT Open Documentary Lab, e as dificuldades para montar Redenção no Brasil.

Luísa Kiefer – Quando você começou a contar histórias? Como começa tua trajetória com o cinema e o audiovisual?

Mariana Luiza – Eu conto histórias desde muito pequena. Fui uma criança muito inventiva. Mentirosa mesmo. Criava histórias mirabolantes sobre mim e sobre minha família. Tive muitos amigos imaginários a ponto de preocupar meus pais. Hoje eu percebo que a origem desse desejo em inventar histórias sobre mim se relacionava a um constante desejo de ser quem eu não era, de encontrar uma possibilidade de pertença nos espaços que eu circulava. Fui uma criança negra criada em um ambiente completamente branco, com poucas ou quase zero referências da minha identidade negra. E eu não me reconhecia como negra, me achava “um pouco branca” como aqueles com quem eu convivia. Eu acho que por isso eu mentia tanto. Depois, quando mais velha, resolvi canalizar essas mentiras para a ficção. Comecei escrevendo contos, participando de concursos no Brasil e no exterior. Ganhei prêmios de literatura em Portugal, na Áustria e no Brasil, até decidir estudar roteiro e começar a fazer filmes. 

Em que momento você se deparou com a obra de Modesto Brocos e como nasceu o roteiro de Redenção

Eu conheci a pintura A Redenção de Cam em um curso que fiz com a escritora Ana Maria Gonçalves, em 2017. Foi a primeira vez que eu ouvi falar que houve uma política de branqueamento racial no Brasil. Aquilo tudo me chocou imensamente. Principalmente a minha ignorância sobre o tema. “Como eu nunca tinha ouvido falar disso antes?”. A ignorância é parte do sucesso do projeto, claro. Mas eu fui entender isso depois. E a partir daí muitos incômodos começaram a fazer sentido. Eu comecei a compreender de onde vinha uma constante sensação de não pertencimento ao que chamamos de nação. Incômodo que ainda me acompanha. 

Depois desse primeiro contato, eu mergulhei em uma pesquisa mais profunda sobre como se deu o projeto eugênico de nação no Brasil. Me interessa muito entender os conceitos de nacionalidade, de patriotismo e identidade nacional, e como o governo brasileiro, ao longo dos anos, em diferentes regimes de governo – ditadura militar, democracia –, arquitetou o que chamamos de identidade nacional. A obra Redenção nasceu desse incômodo. De um desconforto que eu sinto desde muito jovem que é uma dificuldade de pertença. E esse desconforto permeia todos meus trabalhos e criações artísticas até agora.

Como o roteiro está estruturado? Há uma história linear sendo contada?  

A gente tinha um conceito muito nítido da obra como um todo. O projeto se propõe a criticar o colonialismo e a ideia de nação trazida pelo projeto colonial e herdada no Brasil independente. Jota Mombaça tem uma frase que me guiou no processo:  “Onde tem nação, tem brutalidade. E onde tem brutalidade nós somos o alvo”.

Redenção tem dois ambientes distintos e foram pensados dois roteiros distintos também. A primeira sala tem um vídeo produzido com imagens de arquivo e documentos e explica este projeto de nação eugênica que quis fazer do Brasil um país europeu nos trópicos. O filme explica como o governo brasileiro planejou o branqueamento racial do país com valores civilizatórios europeus. O imigrante europeu, simbolizado no quadro por um homem branco, que traz desenvolvimento, progresso e veio para combater o atraso, a selvageria, e a desordem representados pela floresta. Até alguns anos atrás, nosso ex-presidente dizia que o Brasil precisava civilizar os povos indígenas. Esse projeto é tão atual quanto antes.

O vídeo da segunda sala convida o espectador a conhecer uma sociedade. Uma sociedade afro-indígena que se localiza no sul da Bahia. Falo de uma sociedade e não de uma nação por concordar com Jota Mombaça. Projetos de nação trazem barbárie, genocídio, guerra e desigualdade. E falamos de uma sociedade específica, não queremos trazer modelos de família ou de nação como propôs o quadro A Redenção de Cam.

O conceito de criação desse segundo vídeo foi baseado no cosmograma bakongo traduzido pelo filósofo congolês, Bunsen Fu-Kiau. O cosmograma explica a origem da vida, dos planetas e das pessoas por meio do ciclo do sol.  Esses “quatro momentos do sol” equivalem aos quatro estágios da vida: concepção, nascimento, maturidade e morte. Filmamos o ciclo da vida, da existência negra neste território a partir do ciclo do fogo e do ciclo do sol (o fogo maior). As cenas se relacionam com o quadrante do sol (nascente, meio dia, poente e meia noite), com o ciclo da vida (concepção, nascimento, auge da vida e morte) e as fases do fogo: a fumaça primordial que anuncia o prelúdio da vida, a chama viva que queima o projeto eugênico, as cinzas que anunciam a transformação e uma vida possível para todos. 

Como a arte pode contribuir para esse caminho de luta contra o branqueamento e sobretudo contra um país que ainda tem o racismo embrenhado em todas as suas estruturas?  

Um dos papéis da arte é o questionamento. O outro é a provocação. E as diferentes linguagens como cinema, literatura, artes plásticas podem aproximar temas tão duros e difíceis, como este, da sociedade civil. Acredito que arte pode ser um agente de promoção de diálogos e reflexões em uma sociedade.

Por que criar uma experiência imersiva, um labirinto dentro da galeria? 

A proposta era criar um ambiente onde o espectador se deparasse com um desconforto físico e uma mudança de perspectiva, ao caminhar pela instalação para ver três vídeos. Ao longo dessa trajetória ele vai experienciar o que foi esse projeto de nação e uma resposta a este projeto sentindo o tempo de formas diferentes.

Primeiro, ele passa por um labirinto, estreito, hermético, com uma luz fria que remete a um hospital. No final do labirinto ele encontra o quadro A Redenção de Cam. E vê uma animação do quadro que revela os detalhes da obra. Depois, entra em uma sala também hermética e higiênica onde assiste a um vídeo que explica o que foi o projeto de nação. Os princípios do projeto político eugenista do Brasil eram o positivismo, a ordem, o progresso, o branqueamento, a limpeza da nação. E esta primeira parte tem como intenção proporcionar ao espectador a experiência desse projeto, seja uma experiência intelectual ao assistir ao vídeo, e seja sensorial ao circular neste espaço hermeticamente incômodo.

Por último, ele entra em um espaço completamente escuro, misterioso, e precisa se abaixar para permitir o contato com outra cosmo-percepção de mundo. O lugar tem um cheiro de Mata Atlântica (uma combinação de três óleos essenciais elaborada cuidadosamente para a experiência). É misterioso, mas é agradável. Há um desconforto também, já que o espectador precisa abaixar a cabeça para ver este segundo vídeo – que é bastante diferente do primeiro tanto no tratamento das imagens quanto no ritmo de montagem e no ritmo interno das cenas. O que eu gostaria com essa obra é que o público vivenciasse esses projetos distintos, mas refletisse sobre a possibilidade de uma confluência. 

O projeto eugênico que define a raça, base da colonização, é um projeto de superioridade. Dicotômico entre conhecimento e crença. Cultura e folclore.  A confluência, como diz o filósofo Nego Bispo, é a possibilidade de agregar conhecimento em vez de pensar com superioridade. E a segunda sala propõe isso. 

Os dois vídeos tem ritmos de montagem que propiciam uma experimentação distinta de cada obra. O cinema permite essa sensação do tempo variável, seja no ritmo montagem, seja no ritmo interno da cena, mas a arquitetura da instalação, o modo como reproduzimos os vídeos e o cheio do espaço levam o espectador de um estado iluminista do “Penso, logo existo”de Descartes a um estado do “sinto, logo existo”. E para isso precisamos de mais do que uma tela.

Ao final do labirinto, o espectador se depara com um vídeo de rituais de resistência negra. O que são esses rituais? 

Na verdade, são rituais de existência negra. E não de resistência. A primeira sala apresenta o projeto eugênico de nação pensado pela elite branca brasileira, que considera a existência de uma superioridade. Que classifica as pessoas e seus modos de vida. A colonização não considera a existência de outras formas de conhecimento, valores e saberes diferentes da lógica européia. É preciso espelhar o colonizador para ser reconhecido. O que difere é menor, é folclore. A imigração europeia se tornou o método ideal para “civilizar” o território nacional coberto de florestas e “melhorar” a população brasileira. Então era um pensamento dicotômico entre a nação versus a floresta. A floresta era vista (e ainda é por muitos conservadores) como um antro de selvageria, de anti-progresso. Era preciso domesticar a mata. A ditadura militar também usou esse mesmo discurso para justificar a construção da rodovia transamazônica. Para trazer progresso e desenvolvimento. E o governo Bolsonaro seguiu num caminho semelhante. 

Depois de passar pelo labirinto e conhecer como se arquitetou este projeto de nação, o espectador entra numa sala. Nesta segunda sala, que emula uma mata escura, e misteriosa, o espectador precisa mover seu corpo para entrar em contato com uma perspectiva de vida diferente da qual ele está acostumado. O segundo vídeo não é projetado em uma tela ou na própria parede. Ele é projetado no chão, em um espelho d’água. O espectador precisa se abaixar para ver a imagem. Mas ao contrário do mito de Narciso, o espelho d’água não reflete a imagem do espectador, nem reforça a importância de seu próprio reflexo; ao contrário, ele convida o espectador a vivenciar o tempo por meio de uma cosmo-percepção ancestral afro-indígena. 

As imagens projetadas são rituais de evocação da força do fogo e do magma, o fogo primordial da criação e transformação. Rituais realizados na mata. A ideia é ter a mata como valor civilizatório de um povo. 

Como diz o historiador e co-roteirista do projeto Rafael Galante: “Escrever uma história dos povos da floresta é desconstruir os paradigmas da colonialidade, da história ocidental, da ideia de civilização. Que para ter civilização é preciso derrubar a floresta, é preciso ter pirâmides, palácios e cidades.”

Esses rituais evocam o fogo primordial, que sai de dentro da terra, na floresta, para queimar este projeto de nação eugênico. Uma das cenas é justamente a queima do quadro A Redenção de Cam, na mata. 

A história é uma disputa de narrativas. De memórias. Queimar o quadro na mata é questionar essa narrativa eugênia e superior. É contestar a narrativa única e dita oficial. 

A queima é um gesto de reparação simbólica e um gesto de transformação. A gente queima a nação, simbolizada pelo quadro, para existir em uma sociedade possível e acolhedora para todos.

Que rituais de resistência e de luta seguem sendo necessários hoje?  

Resistimos para poder existir, já que a nossa existência não é permitida nesse projeto de nação que ainda está em curso, a meu ver. A roupagem é outra, mas o projeto eugênico está aí na nossa cara, todos os dias. E os rituais de sobrevivência são inúmeros e os dos mais simples. Realizados por todas as pessoas negras nesse país. Para sobreviver a este projeto de nação que até hoje extermina mais jovens negros do que qualquer outra guerra no mundo, pode ter certeza, colocar o corpo na rua é uma ritualística de enfrentamento.  

O que significa, na tua trajetória, participar do festival de Amsterdam, o maior festival de documentários do mundo?

Para mim, passar pelo IDFA é uma forma de levar o projeto para o Brasil. O IDFA foi o primeiro festival com espaço para projetos imersivos que procuramos, mas antes dele tentamos exibir a instalação em galerias e museus brasileiros sem sucesso. Acredito que foi preciso atravessar o atlântico e agora retornar para construirmos possibilidades de exibição no Brasil.

A sua colaboração com o MIT já está acontecendo? Poderia contar um pouco sobre o que tem rolado ou o que está planejado? 

A gente tem um contrato de um ano com colaboração de troca de tecnologias, mas o processo ainda não começou. Enquanto estava no IDFA fiz uma apresentação sobre o projeto e as tecnologias que utilizamos. Além das tecnologias conhecidas e validadas pelo MIT como equipamentos para captação de imagens, apresentei também tecnologias da floresta e da natureza. Na instalação, por exemplo, utilizamos óleos essenciais da floresta atlântica, tecnologia ancestral.

Há previsão de a instalação ser montada no Brasil?

Há um desejo. Um desejo muito grande de apresentar este projeto e trocar com os espectadores brasileiros, mas ainda não temos previsão. 


Luísa Kiefer é editora da revista Parêntese.

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