Entrevista

Igor Simões: “Qualquer discussão sobre arte brasileira terá sua centralidade na participação negra”

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Igor Simões: “Qualquer discussão sobre arte brasileira terá sua centralidade na participação negra” Igor Simões. Foto: Vicente de Mello

A convite da Parêntese tive o prazer de conduzir uma esclarecedora e também necessária conversa com Igor Simões – pesquisador, professor doutor, crítico de arte e curador que, nos últimos anos, vem ganhando visibilidade na cena artística brasileira e estadunidense. 

Um questionamento presente em minhas pesquisas foi o fio condutor dessa conversa: quais regimes de visibilidade perpassam a trajetória de profissionais negros e negras nas artes visuais? 

Como exímio docente que é, Igor nos presenteia com uma verdadeira aula acerca de como o marcador social “raça” incide sobre os sistemas das artes e as complexas relações que permeiam esse universo. Nos dá a ver as perspectivas históricas, as narrativas subalternas e as lutas por representatividade dentro do cenário artístico contemporâneo. 

Foi um encontro inspirador que trouxe à tona reflexões cruciais sobre identidade, poder e transformação no campo das artes visuais.

Izis Abreu – Igor, para começar nossa conversa no mês em que se celebra a Consciência Negra no Brasil, conte um pouco sobre sua trajetória pessoal e profissional nas artes visuais. Como começou seu interesse pela arte e qual foi o percurso trilhado até se tornar docente na UERGS? 

Igor Simões – Acho difícil fugir do lugar comum de que a arte foi algo presente na minha vida desde os primeiros movimentos, a partir da segunda infância e se intensificando a partir da minha adolescência. Tive uma trajetória no teatro durante anos da minha vida. Esse caminho me levou à filosofia e me fez migrar para as artes visuais, onde me formo. 

Começo meus estudos na história da arte, e naquele momento, é muito importante a figura de uma pesquisadora – quando as coisas estão acontecendo, a gente não consegue ter essa dimensão, e de alguma forma a gente vai fabulando essa história. Mas sem dúvida alguma, há uma pessoa incontornável para a história da minha vida, que é a Eliane Nunes, uma pesquisadora incrível, minha professora e primeira orientadora de história da arte, que vai trazer uma perspectiva da história da arte completamente diferente daquela que eu tinha contato até então, na graduação. 

Com a Eliane, começo a olhar para a arte brasileira e para o contexto latino-americano. Em seguida, me formo, com orientação dela. Cerca de quatro meses depois, viro professor universitário substituto no curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas, já tendo duas áreas que vão continuar presentes na minha trajetória. O concurso era para História, Teoria e Crítica da Arte e para Metodologia e Prática do Ensino da Arte. Essas duas questões estão presentes desde o início da minha trajetória profissional. E de muitas maneiras, consigo identificá-las até hoje nos meus trabalhos mais recentes. 

Faço concurso para a UERGS em 2009/2010 e começo a dar aulas em 2011. O concurso era, de novo, para aquelas duas áreas. Passo em primeiro lugar, assumo as duas áreas, mas com o tempo e minha trajetória, vou focando nas questões de história da arte. 

A partir daí, vem a necessidade de fazer o doutorado, que nasce exatamente de uma espécie de inconformismo com as diferentes operações que precisava fazer em sala de aula para poder trabalhar a disciplina de História da Arte com meus alunos. Eram necessárias muitas aberturas dentro daquela bibliografia para tratar de coisas que não estavam ali. 

Essa trajetória me faz ter que criar tantos procedimentos e estratégias para trabalhar essas questões que, de muitas maneiras, isso acaba influenciando meu doutorado. Entro para pensar o espaço expositivo como esse espaço onde diferentes narrativas de história da arte se criam. Olho também para uma das grandes paixões da minha vida, que é o cinema. A partir da imagem de montagem fílmica, começo a ver na exposição a ideia de pensar histórias da arte que, muitas vezes, estão ausentes das bibliografias mais recorrentes a que se tem acesso.

A partir da entrada no doutorado, dessa percepção que já me acompanhava, mas que se torna mais ampla – de um corpo negro único em todos os espaços, desde o programa de pós-graduação, passando por todos os congressos, encontros e debates –, faço essa migração para pensar a história da arte afro-brasileira, tendo como ponto de partida a exposição. 

IA – Levando em consideração as barreiras que limitam a inserção nacional e internacional de quem produz desde o sul do Sul Global, como foi o percurso até se tornar um curador nacionalmente reconhecido?

IS – Precisamos pensar o que é esse reconhecimento. Se falamos de um reconhecimento que se dá entre os pares, a partir de um comprometimento de pesquisa, que se presentifica a partir de processos curatoriais, então posso entender e falar desse reconhecimento. Agora, se esse reconhecimento está pautado numa ideia apenas de visibilidade, geralmente associada com outro projeto que, pelas suas próprias características, acaba tendo essa visibilidade, as coisas mudam um pouco de figura.

Gosto de pensar a mim mesmo como um professor que, por ser professor, é pesquisador, e porque é pesquisador de história da arte, consegue, entre suas várias atividades, entender a exposição como espaço público de debate e amplificação dessas discussões. Gosto de pensar a exposição como esse lugar onde debates às vezes restritos ao ambiente acadêmico ganham uma repercussão muito mais democrática. E é claro que isso sempre vai estar atrelado aos limites institucionais de acesso a espaços artísticos. Quando penso meu corpo negro nesse contexto, necessariamente o entendo como um corpo político que atravessou toda a trajetória da minha vida. E não poderia ser diferente. 

Vocês falam de reconhecimento, mas de qualquer forma, com mais ou menos reconhecimento, essa visibilidade é o que chega primeiro ao meu corpo negro, né? Ele chega primeiro em qualquer ambiente. É desde um corpo negro que atravessa ambientes sociais que não foram previstos para ele até um corpo negro na rua. É em relação com outros corpos não negros.

IA – Quais foram os desafios ou facilidades encontrados nesse processo? Na mesma linha, quais são os maiores desafios enfrentados por artistas negros no cenário das artes visuais e como esses desafios podem ser superados?

IS – São muitos os desafios para o corpo negro. Muitos deles são conhecidos por qualquer pessoa que olhe para esse corpo negro ou lide com esse corpo negro cotidianamente. Quando trago essa questão para o campo da arte, devolvo a pergunta: quais são os desafios impostos para a branquitude dentro desses espaços onde ela sempre foi regra? Como essa branquitude, nas diferentes áreas do campo das artes visuais, tem se sentido ameaçada e muitas vezes contra-atacada por essa presença maior de corpos negros no campo da crítica de arte, da curadoria de arte, da história da arte e da produção poética em artes visuais no Brasil?

Acho que nós sabemos quais são os desafios, mas me interessa saber como a branquitude tem lidado com esses desafios. Como a branquitude tem criado estratégias para garantir seus privilégios históricos? Como ela reage no momento em que mais historiadores apontam o fato de que nomeamos como arte brasileira uma arte que sempre foi feita por pessoas brancas, criticada e curada por pessoas brancas, que formaram acervos institucionais brancos e que pautam exposições brancas de pessoas brancas? 

Se essa entrevista chega em um momento em que se associa a esse mês da Consciência Negra, me interessa muito mais, obviamente, sem falar em uma consciência branca, apontar o lugar das pessoas brancas nesse espaço das artes visuais e como, de um lado, algumas pessoas brancas podem, de fato, rever seus espaços de privilégio, mas, ao mesmo tempo, chamar a atenção para como têm sido cada vez mais visíveis os processos de contra-ataque da branquitude nas artes brasileiras, em uma tentativa de desqualificar a produção de corpos e mentes negras.

Sobre facilidades, essa palavra não existe, né? Mas há alguns pontos que fizeram diferença na minha trajetória, como ser filho de uma mulher negra que trabalha como faxineira, criado também por uma madrinha também faxineira, por uma avó que me cuidava em casa. Mas as duas mulheres que sustentavam a casa eram faxineiras, cada uma delas em uma universidade, uma pública, uma privada.

Para a minha vida e a vida da minha irmã, isso trouxe uma perspectiva completamente diferente, que não nos fazia duvidar de que teríamos toda a trajetória de formação básica e universitária como uma meta, um objetivo. Nós podíamos sonhar dessa forma, mas nem sempre as pessoas podem almejar isso, porque elas nem sabem que é um direito delas.

IA – A exposição “Dos Brasis”, da qual você é um dos curadores, vem tendo grande repercussão na mídia pelo tema abordado e número significativo de artistas negros e negras de diferentes partes do Brasil, mostrando a diversidade da produção de autoria negra no país e que existem artistas produzindo para alem do eixo Rio-São Paulo. Como vocês chegaram nesses artistas? Qual a importância de uma exposição integrada exclusivamente por artistas negros? Como o público não especializado tem recebido a mostra?

IS – Esperávamos que a exposição provocasse discussões muito importantes para se pensar uma arte de fato brasileira, e não uma arte que é exclusivamente pautada pela parcela branca, pela branquitude no campo da arte. Mas a repercussão e o acolhimento pela crítica, pelo público, pela imprensa especializada e não especializada foi um pouco além do que imaginávamos. Isso fala do sintoma de que cada vez mais pessoas negras no Brasil querem se ver, querem ver suas narrativas e a dimensão poética do mundo que é acessível a partir da obra de pessoas que são como elas, de artistas tão negros quanto negro é esse país.

É um projeto longo, já dura cinco anos desde as primeiras discussões no Sesc. Os últimos dois anos foram de pesquisa, com uma residência online chamada “Pemba, residência preta” e viagens por todas as regiões do Brasil, incluindo capitais e interior dos estados que foram visitados.

Quando a gente fala de arte brasileira, é possível perceber certa presença centrada, de maneira mais recorrente, na produção do Sudeste, com alguns avanços em termos históricos para incluir a Bahia. O projeto Dos Brasis queria olhar para variadas possibilidades de pensamento sobre a arte produzida por negros no Brasil. Para isso, era preciso atentar não só aos pontos em comum, mas também às particularidades desses artistas e à relação deles com diferentes contextos, em diferentes regiões. Nesse sentido, acho que a exposição demonstra, mesmo em termos expográficos, a impossibilidade de esgotar o que é arte afro-brasileira e a impossibilidade de apontar essa produção como algo recente – a exposição tem artistas do século 18 até o século 21. Foram 30 artistas comissionados de uma exposição que também tem obras do Mestre Valentim. 

Me parece que essa exposição, nesse momento, chega também como resultado de uma série de movimentos anteriores. É inegável a importância de exposições como A Mão Afro-brasileira (1988), feita pelo Emanoel Araújo, que inclusive é o artista homenageado e um dos núcleos (Baobá). Dos Brasis, de muitas maneiras, produziu um espaço de extrema visibilidade para um debate em que o Brasil já entra com atraso. Gosto sempre de pensar nas palavras que a Rosana Paulino vem repetindo a décadas: o Brasil está atrasado nesta discussão.

Óbvio que essa curadoria – da exposição considerada a maior de artistas negros já realizada no Brasil – é um orgulho tanto para mim quanto para meus colegas. Ao mesmo tempo, é no mínimo assustador que isso tenha acontecido com essas dimensões somente em 2023. O caráter de ineditismo de Dos Brasis não surge no vácuo. É devedor de experiências anteriores – e gosto sempre de destacar A Mão Afro-brasileira, mesmo sabendo de ações anteriores a ela. Ao mesmo tempo, apresentar essa produção em longo arco é também uma afirmação irrevogável de que qualquer discussão sobre arte brasileira terá sua centralidade na participação negra, que representa 57% da população desse país.

IA – As instituições tradicionais precisam se adequar a um novo cenário de inclusão de atores historicamente excluídos das esferas de produção, difusão e consumo da arte. Porém, temos visto inúmeros casos de instituições que acabam reforçando e perpetuando opressões raciais e de gênero.

Para citar dois casos que tiveram discussões acaloradas, mas necessárias, temos a exposição “Quilombo: vidas, problemas e aspirações do negro”, em homenagem a Abdias Nascimento, exibida em Inhotim, que gerou todo um debate acerca da presença de artistas negros nas instituições hegemônicas e sobre a essencialização da produção de autoria negra nas exposicões por elas desenvolvidas. Houve também protestos por parte de artistas mulheres contra o apagamento da arte urbana feminina na exposição “Além das ruas: histórias do graffiti”, que aconteceu no Itaú Cultural. 

Como você vê o papel das instituições culturais na promoção da diversidade na arte? Na sua opinião, onde essas instituições estão errando e acertando? Que medidas podem ser tomadas para a realização de discussões genuínas acerca de pautas emergentes da contemporaneidade e para tornar essas instituições efetivamente mais inclusivas?

IS – Quando a gente fala das instituições, gosto sempre de começar pensando numa curadoria, em um Sesc Vídeo Brasil, do grande Daniel Lima, um dos agentes do coletivo Frente 13 de Fevereiro, que perguntava no título da exposição: “E agora? Somos todos negros?”. Em um desses trechos, ele respondia algo como: será que todas as instituições ficaram negras? É preciso entender que a abertura dessas instituições em relação a essas pautas não vem necessariamente – como muitas vezes os discursos institucionais nos levam a crer – de um aprofundamento da consciência dessas instituições. 

Sabemos que existem as mais variadas demandas que nos fazem chegar a esse momento. Então, é preciso que a gente entenda que essa arte afro-brasileira e indígena, que agora chega nas instituições e parece fazer parte dessa pauta, sempre esteve aí. Ela é histórica. Não é recente, não é onda, não é moda. Bom, isso me faz pensar que durante muitas décadas, séculos, inclusive, essas instituições escolheram não olhar para essa produção. E quando a gente pontua essas questões, é possível entender que recente é a forma como essas instituições têm sido obrigadas a olhar para essas pautas. Porque essa obrigação vem de um conjunto de demandas que não são nem necessariamente nacionais. São pressões de um sistema de arte global que entendeu estrategicamente a importância dessa produção. 

E tem mais! Isso também é uma percepção de como essas instituições de arte também entenderam que isso produz visibilidade nacional e internacional, atrai público, reverte em caminhos mais acessíveis de fomento e financiamento, em parcerias que passam por grupos e aparelhos de gestão eminentemente brancos. 

Quando falamos do olhar dessas instituições, estamos falando não de uma consciência profunda que teria se alastrado pelo sistema da arte. O que estamos vendo é, de um lado, o resultado de uma demanda internacional. A compreensão de que esse tipo de programa produz um tipo de visibilidade e de leitura institucional extremamente importante no século 21, sem a qual não existe nem ao menos participação internacional dessas instituições. 

No que tange de fato uma revisão dessas instituições, isso não acontece. Acho importante entender que as relações de agentes negros com as instituições ainda são muito próximas da ideia da plantation. Ou seja, temos um conjunto de corpos negros trabalhando incessantemente à beira do desgaste, produzindo um tipo de valor que não pode ser produzido por outros grupos, exceto pelas maiorias que foram minorizadas, mas que, no entanto, continuam rendendo dividendos para instituições que mais parecem casas-grandes, que concentram a riqueza sem nunca alterar suas próprias estruturas.

Às vezes, ouço afirmações como “nós temos mais curadores negros nas instituições”. Temos? Quantos são curadores-chefe nas instituições? A maioria desses curadores são curadores-assistentes, e é preciso prestar atenção a esse dado. Segundo, qual é de fato a participação de agentes negros nos espaços decisórios das instituições? Os números, na minha percepção, não passam de uma mão. Quantos desses agentes negros conseguiram adquirir algum tipo de excedente financeiro que lhes permita, por exemplo, serem colecionadores? Quais editoras especializadas estão nas mãos de pessoas negras?

Falar da presença institucional dessas produções deve necessariamente passar por todos esses pontos. Ou a gente lida com o fato de que temos um conjunto de corpos negros trabalhando incessantemente, produzindo poética e conceitualmente para valores revertidos, na sua grande maioria, apenas para instituições estrutural e eminentemente brancas, e que essas alterações precisam vir no espaço decisório desses instituições – como, por exemplo, com mais negros na posição de curador-chefe –, ou então essa discussão é realmente pautada apenas nos interesses e na contínua produção de valor para os mesmos grupos que sempre estiveram no poder em relação à ideia de uma arte branco-brasileira.

Izis Abreu é pesquisadora, curadora independente e mestra em História, Teoria e Crítica de Arte pelo PPGAV/UFRGS. Trabalhou como coordenadora do setor de acervo do MACRS, onde atualmente integra o Conselho de Acervo e Curatorial. Atuou também no Núcleo de Curadoria e no Núcleo de Programa Público do MARGS. Investiga as imagens de controle nos regimes de representação visual de sujeitos racializados como negros nas artes visuais, com foco em acervos artísticos públicos de Porto Alegre. Sua prática é informada, principalmente, por teorias feministas negras, afrodiaspóricas, decoloniais e da Teoria Crítica da Raça. Defende que certos estereótipos raciais são usados nas diferentes práticas representacionais para marcar a diferença racial a fim de estabelecer hierarquias na organização social. Acredita haver uma relação de causa e consequência entre as imagens de controle forjadas e difundidas nos regimes racializados de representação e a representatividade de pessoas racializadas em espaços de poder, inclusive no campo das artes visuais.

Igor Simões é Doutor em História, Teoria e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor adjunto de História, Teoria e Crítica da Arte na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Pós-doutorando pelo Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Fellowship Clark Institut (EUA). Curador-geral de Dos Brasis, curador convidado de Inhotim para a temporada 2023.

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