Entrevista

Helga Piccolo – A primeira doutora em História no estado

Change Size Text
Helga Piccolo – A primeira doutora em História no estado Luís Augusto Fischer com Helga Iracema Landgraf Piccolo (Foto: Genaro Joner, com licença da Zero Hora)

Que uma mulher de ascendência germânica se chame Helga, na própria Alemanha, na Áustria, na Suíça ou em alguma colônia, nada estranha; mas que uma mulher se chame Helga Iracema, isso por certo só no Brasil. É um nome que talvez seja também um programa de ação, uma exigência de síntese entre a matriz europeia e a circunstância brasileira.

Pois uma filha de alemães imigrados em 1923 para o sul do Brasil se chama de fato Helga Iracema Landgraf, nome a que agregou o Piccolo, por casamento. Nascida em 1932, em Porto Alegre, teve como língua materna o alemão – o português seria aprendido na escola, uma pequena escola também alemã no bairro Menino Deus. Estuda no colégio Farroupilha, da mesma comunidade germânica, e depois no mitológico colégio estadual Júlio de Castilhos, escola-padrão que deu ao mundo algumas gerações brilhantes. Cursa, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um remoto bacharelado de Geografia e História – sim, os dois cursos eram um só, naquela altura. Gradua-se aos 20 anos e começa a dar aulas de História do Brasil, primeiro no hoje ensino médio, depois na mesma universidade onde estudou, permanecendo na ativa até 1990, e depois como pesquisadora e professora voluntária.

Nesse tempo, a professora Helga formou várias gerações de historiadores e outros profissionais (ela cita Sílvia Petersen, Sandra Pesavento, René Gertz e Paulo Vizentini, entre seus alunos notáveis). Pesquisou bastante, especialmente temas da história regional do Rio Grande do Sul, envolvendo a História Política do século 19 e a imigração alemã e italiana. Foi a primeira doutora em História no estado, como foi também pioneira em uma série de outras atividades. No que se refere a orientação teórica, Helga manteve sempre a convicção de que a tarefa do historiador é mais a de levantar fatos do que a de propor interpretações; daí ter enfrentado problemas que hoje podem parecer estranhos, mas que nos anos 70 e 80 estavam na ordem do dia, problemas derivados de sua convicção de ser “uma empirista assumida” e a de não ser marxista.

A professora Helga marcou seus alunos com uma dedicação exemplar à sala de aula. Na vida universitária de nossos tempos, em que boa parte dos professores-doutores prefere a rarefação das aulas de pós-graduação, Helga se sente mais à vontade com alunos iniciantes, de graduação, aqueles jovens que, mesmo chegando aos bancos universitários com cada vez menor nível de informação (a impressão é dela mesmo), querem e precisam aprender. E ela não se faz de rogada: expõe cuidadosamente os conteúdos, comenta, espera perguntas, indica bibliografia variada, respeita pontos de vista.

Marcada profundamente pelo exemplo dos pais, que não tinham formação universitária mas liam e se interessavam pela vida cultural, Helga segue estudando, atualmente revisitando o velho e bom tema da Independência de nosso país. Tem muita coisa escrita – e prefere artigos a livros, como quem prefere voos rasantes, colados nos fatos, a voos panorâmicos, dependentes de muita interpretação. Tem saudade da velha Faculdade de Filosofia, que congregava todas as licenciaturas, as ciências, as letras e as humanidades, numa estrutura clássica de distribuição do poder na universidade. Estrutura que a reforma de fins dos anos 60 acabou, enterrando para sempre as formações múltiplas, a convivência entre áreas, o diálogo – quer dizer, enterrando todo um modo de ser universidade, em favor da visão tecnicista ainda hoje em voga.

E com tudo isso, quem diria que a séria, a germânica professora Helga, aquela que sabe ler a língua alemã mesmo em caracteres góticos, tem um arquivo pessoal com panfletos e materiais do movimento estudantil dos anos 60? No fim das contas, não é de estranhar nada: uma historiadora dedicada e séria, que como todo grande mestre ensina pelo exemplo e pelas palavras, sabe que tudo é matéria de consideração. 

A entrevista que segue foi feita no dia 20 de dezembro de 2002 na confortável casa da professora Helga, por este ex-aluno e admirador seu.


Parêntese – Vamos começar por sua formação, seus primeiros anos.

HELGA – Eu nasci no Menino Deus, a 7 de maio de 1932. Sou filha de alemães imigrados em 1923, fugidos da crise pós-Primeira Guerra Mundial, crise que a República de Weimar não conseguiu resolver. Tenho um irmão, seis anos mais velho. Devo muito da minha formação intelectual aos meus pais, principalmente porque os dois fizeram militância política na Alemanha, pertenciam ao partido que é hoje o do Schröeder, o Partido Socialista. Minha mãe sempre me contava de seu contato com Liebknecht e com Rosa Luxemburgo, só que não acompanhou a migração deles para fundar o KPD, o Partido Comunista. Eles dois liam muito. A biblioteca de meu pai era muito grande. Por causa do Segundo Conflito Mundial, pelo medo de represálias, na campanha de nacionalização, meu pai encaixotou boa parte da biblioteca dele e enterrou, para que não fosse levada. E assim mesmo a polícia bateu e levou uma bibliografia enorme. Até mesmo um mapa-múndi, em pergaminho egípcio: como ele estava escrito em alemão, a polícia levou. Quando acabou a Guerra e meu pai desencavou os livros, estava tudo estragado. Toda a coleção que a minha mãe tinha, a Biblioteca da Mulher Socialista, em alemão.

Parêntese – Eles tinham formação acadêmica?

HELGA – Não. Minha mãe era dona de casa, quase não saía, e pouco português ela falava. Meu pai não: assim que chegou ao Brasil, se inscreveu na ACM, num curso de português para estrangeiros. E o primeiro livro que ele leu foi Iracema, de José de Alencar. E ele se prometeu: “No dia que eu tiver uma filha, ela vai ter um nome germânico e um nome indígena”. Daí meu nome, Helga Iracema. Minha mãe era católica, e meu pai era evangélico de confissão luterana, e isso nunca foi problema de espécie alguma.

Parêntese – E por que eles escolheram Porto Alegre?

HELGA – Não tinham conhecidos ou amigos por aqui, mas meu pai sabia que no Rio Grande do Sul havia uma colônia alemã significativa – e não era apenas pessoal rural, porque a comunidade alemã urbana, em Porto Alegre, era bastante grande. Tu podes ver isso pelo colégio Farroupilha, onde eu estudei, pelo hospital Moinhos de Vento, etc. Tu aprendeste em História do Brasil…

Parêntese – Com a professora Helga…

HELGA – …a importância econômica do grupo mercantil e industrial de origem germânica. E isso sem falar nos restaurantes, nos clubes, nas cafeterias. Ah, a cafeteria Woltmann.

Parêntese – Na Cristóvão Colombo?

[Continua...]

O acesso a esse conteúdo é exclusivo aos assinantes premium do Matinal. É nossa retribuição aos que nos ajudam a colocar em prática nossa missão: fazer jornalismo e contar as histórias de Porto Alegre e do RS.

 

 
 
 

 

 

 

 
 
 

 

 
conteúdo exclusivo
Revista
Parêntese


A revista digital Parêntese, produzida pela equipe do Matinal e por colaboradores, traz jornalismo e boas histórias em formato de fotos, ensaios, crônicas, entrevistas.

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.