Entrevista

Luís Augusto Fischer: “A memória é o solo fértil onde cultivamos nosso legado” – parte 2

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Luís Augusto Fischer: “A memória é o solo fértil onde cultivamos nosso legado” – parte 2 foto: arquivo pessoal

Agora vamos para a segunda parte da nossa entrevista com o Luís Augusto Fischer. Mesmo que o papo recupere tempos anteriores e avance na linha do tempo, o foco aqui é a adolescência, a entrada no curso de Geologia, o afastamento da religião e os desdobramentos disso no ambiente familiar, o começo do trabalho regular e a entrada na UFRGS. Aliás, o ensejo da entrevista, lembremos, é justamente esse, os quarenta anos de UFRGS que Fischer celebrou agora em março.

Temos também momentos importantes de suas memórias, como a mãe e o pai cantando em casa e militância da juventude, além de passagens decisivas de sua atuação como intelectual futura, como quando começa a introduzir o estudo, com método, de canção popular no Ensino Básico, o que se desdobraria para o Ensino Superior nos anos seguintes. Novamente, participam da entrevista Kátia Suman, Arthur de Faria e Guto Leite, amigos e ex-orientandos do entrevistado. Seria bom que o leitor pudesse ter acesso ao áudio descontraído da conversa, com um tanto de risadas de quando em vez. Indicamos em alguns momentos do texto essas risadas, como modo de captar o clima descontraída da conversa.

Ótima leitura!


Kátia Suman: E o circuito de festa na cidade, essas manifestações, essas coisas, o Clube do Comércio…

Luís Augusto Fischer: Sim, eu ia… A minha experiência é muito de bairro, num sentido muito antigo, né? Eu estudava no Colégio São João, ia na igreja São João (enquanto eu fui na igreja) e o meu clube era Sogipa. Então era uma coisa muito de bairro. Mas, ao mesmo tempo, eu trabalhava no grêmio estudantil do colégio. Desde que eu estava na quarta série de ginásio, eu participava do grêmio. Uma das primeiras coisas que eu fiz no grêmio foi divulgar os bailes promovidos pelo grêmio estudantil. Então a gente ia nos colégios, bah, no Pio XII, era uma aventura ir até o Pio XII! Não sei se existe ainda, lá no Centro. Por que ia lá? Porque tinha umas gurias legais. Alguém tinha dito que tinha. A gente chegava lá pra tentar ver as gurias. Então, é isso, a gente andava na cidade. Eu ia no Baile dos Magrinhos.

Kátia Suman: Baile dos Magrinhos, que acontecia onde?

Luís Augusto Fischer: No SAVA (Sociedade Amigos da Vila Assunção).

Kátia Suman: Lá do outro lado da cidade, no Zona Sul. Era do… 

Arthur de Faria: Cascalho.

Luís Augusto Fischer: Maravilhoso, um som sensacional. Umas gurias lindas.

Guto Leite: Vocês estão tudo falando grego pra mim.

Luís Augusto Fischer: É, é tudo outro mundo.

Guto Leite: Eu ia perguntar, você falou “até quando eu continuei na igreja”. Tu tem claro isso, de quando tu saiu, razões e tal?

Luís Augusto Fischer: Foi um problema complicado na minha vida. Assim: a partir dos 14 anos, eu participei de grupo de igreja, grupo de jovens. Estamos falando de 72, por aí, em diante. Olhando agora como adulto, eu sei explicar bem. Em 64 e em 68, a esquerda católica foi muito combatida pela ditadura. Tinha o que antigamente se chamava de Ação Popular, AP, que era a esquerda católica. Muitos desses caras “se perderam”, tipo o Frei Beto, tiveram que ir embora, foram exilados. Mas alguns que eram periferia desse grupo sobreviveram como professores de colégio. Eu fui aluno de alguns desses caras. E de umas freiras também. Então esses caras começaram, na virada dos anos 70, a fazer encontros com jovens, com lideranças, que era uma palavra-chave deles. Faziam encontros de conscientização sobre a realidade. Depois isso ganhou o nome de Teologia da Libertação. Era uma reinterpretação da visão da Igreja, o papel de Cristo etc. Então foi nessa que eu entrei. E aí a gente logo começou a fazer trabalho de base. Era assim chamado.

Arthur de Faria: As comunidades eclesiais de base.

Luís Augusto Fischer: Na verdade, eu comecei um pouco antes. Eu com 14 pra 15 anos de idade, fui, por um ano e pouco, voluntário na Santa Casa. Eu trabalhava lá na enfermaria 28, que era a enfermaria de homens que tinha perna e bacia quebrada. E aí tinha uma assistente social que nos conhecia, prima do meu pai, que nos convidou para trabalhar lá. Eu já estava aprendendo a tocar violão. E o negócio é que esses caras, como não tinham o que fazer, o ambiente era uma podridão, um negócio horrível, era sujo, e ela nos convidou dizendo o seguinte: qualquer coisa que vocês façam com eles ajuda. Era uma enfermaria, sei lá, de umas 40 camas, coisa absurda. Qualquer coisa, pode até ir lá só para conversar com eles. Porque os caras passam o dia se masturbando. imagina ficar lá… Tudo pobre. A Santa Casa era depósito de pobre. Coisa medonha. Então, esse tipo de trabalho, de abnegação, tinha toda uma coisa religiosa envolvida.

Arthur de Faria: E o que vocês iam fazer lá?

Luís Augusto Fischer: Não, não rolou masturbação (risos)… Eu tocava violão com os caras, eu tinha junto com um primo meu, a gente fazia um pouco de artesanato, ia lá e levava para os caras. Aí tu descobria que tinha um cara lá que era pescador. O cara sabia fazer rede. A gente achava um jeito de comprar fio de nylon para o cara fazer uma rede. Assim por diante. Uma experiência humana maravilhosa. Uma vez eu conversava com um cara e ele me contou que tinha realmente matado um cara. Assim, contando, na boa. É, eu tive que matar o cara. Tudo uns guris de apartamento ouvindo essas histórias. Então a coisa religiosa, no sentido de fé, começou a se esboroar por aí, pelos 14 anos. Mas eu estava envolvido nesse trabalho. Então, dos 16 para 17, por aí, eu comecei a trabalhar com um grupo cujo líder era o Silvino Heck, que viria a ser o assessor espiritual do Lula depois que o Frei Beto saiu fora. Enfim, um camarada. E aí a gente trabalhava numa vila lá perto do Anchieta, chamava Beco do Resvalo. O nosso negócio era ir lá ensinar os caras a fazer usucapião. E essa coisa vai indo até um ponto em que eu digo: não tem mais sentido eu pertencer a isso. Eu já tinha entrado na faculdade. Foi um processo muito duro para mim, pessoalmente, porque o pai ficou absolutamente siderado com o fato de eu não estar mais na igreja.

Kátia Suman: Mas estar na igreja era participar do grupo?

Luís Augusto Fischer: Era ir à missa.

Arthur de Faria: Tocar violão na missa.

Luís Augusto Fischer: Tocar violão na missa.

Arthur de Faria: E os teus irmãos pararam junto?

Luís Augusto Fischer: Pararam junto, eu e as minhas duas irmãs. O Prego, meu irmão mais novo, era muito pequeno, quer dizer, ele era sete anos mais novo que eu.

Kátia Suman: Bah, então tu liderou a revolta.

Luís Augusto Fischer: É, assim, a minha irmã mais velha fazia psicologia. Me lembro dela dizendo, no começo, entrando na faculdade, a gente na missa olhava aquelas velhinhas que iam se confessar. E eu lembro dela dizendo assim: mas o que essas mulheres vão confessar na vida? O que elas têm a confessar? Esse tipo de coisa. Vida real.  O meu negócio nunca foi espiritual, entendeu? Deus e coisas espirituais, zero. Mas eu tinha esse engajamento que era muito forte. Na faculdade, pô, aí fui presidente do centro acadêmico da geologia, por exemplo. Naquela passeata de 77, as primeiras passeatas grandes, eu estava lá.

Arthur de Faria: Bah, então ficou um tempo na Geologia?

Luís Augusto Fischer: Fiquei dois anos e meio, cinco semestres.

Arthur de Faria: E a Geologia te deu o quê, além de acampar…?

Luís Augusto Fischer: A Geologia era um curso muito legal. 

Arthur de Faria: Essa coisa científica que tu tem, de tentar… Essa certa inveja científica que tu tem.

Luís Augusto Fischer: Exatamente. Eu não tenho medo de ciência, dizendo de outra maneira, de ler coisas de ciência. A Geologia é um curso muito imaginativo. Isto é, a parte que eu fiz. Na verdade, a parte que eu fiz foi a pior parte do curso. Todo mundo diz que ele fica bom na segunda metade, porque tem um monte de cadeira de Química, de Paleontologia, de Matemática, de Física. Começa a estudar rocha, mineral e tal. É um negócio muito especulativo. Eu tinha um professor de Geologia Geral que, na primeira aula do curso, disse assim: a Geologia é uma ciência ao contrário de todas as outras; porque todas as ciências conhecem os fatores e querem saber qual é o resultado, mas a Geologia tem um resultado e pergunta quais foram os fatores. Legal, né? Não é muito verdade, mas é uma boa imagem. Quer dizer, tu olha pra um morro e diz: como é que esse morro saiu desse jeito? Tu vai lá, pega um pedaço de pedra, olha… Foi um curso bacana. E é um curso muito absorvente. É um curso de poucos alunos que saem muito juntos a campo. Tem muita aula, muita prova. Então tu cria uma agregação muito legal. E o curso era no centro, né? O curso era lá no centro, onde hoje é o teatro.

Guto Leite: Tu ainda tem amigos que foram colegas dessa época? 

Luís Augusto Fischer: Tenho, tenho. Agora mesmo, um camarada que era meu colega de aula me procurou. O cara se aposentou, trabalhou com não sei o quê lá em Rondônia. Ele voltou e disse: eu tenho umas fotos do nosso tempo. Digo, pô, manda aí, né? Eu fiz com ele uma cadeira importante, um grupo de quatro pessoas, numa cadeira chamada Mapeamento Topográfico. A gente foi aqui pra… entre Viamão e Itapuã, o professor designava uma área de um quilômetro quadrado e a gente tinha que fazer um mapa. Um mapa planialtimétrico. De medir com o teodolito, com a régua e tal. Aí passamos duas semanas acampados lá. Um calor desses de verão daqui.

Arthur de Faria: E daí, pra Letras, tu tava lendo Os sertões, por causa da primeira parte? 

Luís Augusto Fischer: Não, não, não. Aí eu fui fazer Letras porque… Enfim, lá na Geologia tinha muito isso também. Tinha muita gente leitora. Tinha uns colegas mais velhos. Eu tinha dois colegas que tinham estudado na União Soviética, na Patrice Lumumba. E um deles declamava em russo. Ele dizia que era russo, ao menos… (risos) Enfim, tinha um clima legal. A gente fazia a feira do livro no diretório acadêmico. Até então eu não tinha lido Graciliano Ramos, por exemplo. Fui ler ali. Drummond… Um monte de coisa. Aí fui fazer Letras. Uma coisa que a Geologia me deu foi ritmo de estudo. Isso eu digo pros meus alunos, não adianta muito, mas… Na Geologia a gente estudava como uns tarados, assim, sabe? Tinha que fazer prova. Tinha que saber um monte de coisa de cor. Sabe aquelas coisas de atravessar a noite estudando pra prestar prova na manhã seguinte? Eu fazia isso.

Guto Leite:  Só pra eu marcar uma coisa que, pra gente que é da Letras, é uma questão. Tu não tinha lido Graciliano Ramos até… 22 anos? 

Luís Augusto Fischer: Não, não tinha.

Guto Leite: Que hoje já tá incorporado, todo mundo lê…

Luís Augusto Fischer: O ensino básico de literatura, na minha época, era o ó do borogodó. Não tinha nada a ver, nem se compara. Mas só pra dizer isso aí. Quando eu entrei em Letras, tem uma cena que eu nunca me esqueço. Primeira aula que eu fui fazer de Letras era uma cadeira de História da Linguística com o finado Baltazar. José Baltazar Teixeira. Professor muito inteligente, morreu muito jovem. Ele deu uma aula lá. Platão achava que não sei o quê, a linguagem e tal. Ele terminou de falar e ele disse assim, bom, isso aqui tá mais explicado no capítulo tal do livro tal. Aí eu anotei. Na Geologia a gente tinha aula assim, no meio da manhã, no meio da tarde, no começo da noite. Era uma zona. Passava o dia na função. Aí o que que eu fiz? Almocei lá na faculdade. Fui na biblioteca, peguei o livro e li depois do almoço. Na aula seguinte, o professor disse, bom, não sei o quê, não sei o quê. Aí ele não falou daquele capítulo que eu tinha lido. Eu levantei a mão e disse: professor, mas naquele capítulo lá que o senhor falou, não sei o quê, não sei o quê. Ele era um cara muito engraçado. O quêêêêêê? Um aluno de letras leu fora da aula? Mas não é possível! O que que tá acontecendo aqui, hein? E aí eu fiquei imediatamente com fama de ser um grande estudioso. Eu era muito estudioso, sou muito estudioso ainda, mas é que essa coisa do ritmo, eu aprendi ali. Certamente foi ali. Não foi no colégio, isso de mergulhar num troço. 

Guto Leite: Mas isso ainda não existe geralmente. Esse aluno aí é meio difícil de aparecer.

Luís Augusto Fischer: É. Mas aproveitando a coisa do ensino de literatura, cara, eu digo isso e parece mentira. O modernismo paulista não estava ainda configurado quando eu estava no colégio. Tu sabia que ele existia, tu falava dele, o modernismo. Os professores mais moderninhos, do cursinho, esses falavam. Ah, modernismo. Se bem que eu fui aluno do Appel, o Appel não era muito modernistófilo, mas era quando começava a aparecer, ah, vanguarda, ah, Oswald de Andrade, mas era tudo muito, muito remoto.

Guto Leite: Nem na escola, nem na Letras?

Luís Augusto Fischer: É, na Letras também não. Tinha um pouco, mas aí logo fui aluno do Dacanal, esses caras que não levavam livre o modernismo. O Sergius era o cara mais parecido com isso, porque o Sergius era do pessoal de cursinho, né. Aí eu fui aluno dele.

Arthur de Faria: Mas voltando na questão do que a Kátia perguntou, e a música?

Luís Augusto Fischer: A música, pois é, eu comecei a tocar violão, porque eu sabia todas as músicas de cor, de cabeça, eu sei até hoje. Essas letras do Paulinho da Viola, pô, eu sei porque eu escutava no rádio. Inacreditável isso, né. Aliás, foi isso que me levou a inventar a cadeira de canção popular brasileira. Simplesmente porque eu disse, essas pessoas têm que saber o que eu sei. Porque eu ganhei de graça isso. A história nos brindou, a nossa geração conhecia, a gente ouvia. O Caetano lançava um disco, a gente ouvia o disco na rádio, entendeu? Ninguém nos ensinava, não tinha letra de música, não vinha encarte nos discos, era umas porcarias. Mal e mal vinha de vez em quando. Mas não era muito comum. Tipo o Transa do Caetano, não tinha as letras. Mas a gente sabia porque ouvia. E aí, quando eu tinha uns 14, 15 anos por aí, eu comecei a aprender a tocar violão. 

Arthur de Faria: Sozinho?

Luís Augusto Fischer: Sozinho. Consegui emprestado um violão com uma turca, aliás. Era uma colega minha de aula que um dia disse que tinha um violão em casa e disse que não estava usando. O violão tinha um braço empenado, você tinha que fazer um sol assim, uma força infinita. Mas aí eu aprendi a…

Kátia Suman: Modular.

Arthur de Faria: E como é que tu aprendeu a afinar essas coisas, os acordes, já tinha as revistinhas de música? Tudo no YouTube? (risos)

Luís Augusto Fischer: Tinha Vigu

Arthur de Faria: Ah, sim. Violão e guitarra.

Luís Augusto Fischer: Mas eu olhava os caras tocarem e dizia: olha ali é, isso aqui também é um Lá? Eles diziam: sim, é um Lá, pode ser assim, pode ser assim. Eu ia para casa e ficava lá até tirar um. Mas era só pra namorar.

Kátia Suman: Mas ninguém mais tocava na tua casa?

Luís Augusto Fischer: Não. Mas o meu pai e a minha mãe cantavam. Isso é muito importante também.

Guto Leite: Cantavam na igreja? 

Luís Augusto Fischer: Não, cantavam em casa. A mãe cantava essas músicas, Dalva de Oliveira…

Kátia Suman: A minha mãe cantava também. 

Guto Leite: Mas como assim cantava? Espera aí.

Arthur de Faria: Em família normal, feliz, Guto, as pessoas cantam em casa. Minha mãe cantava em casa também. Meu pai cantava em casa também. 

Luís Augusto Fischer: A mãe de vez em quando estava assim… 

Kátia Suman: Fazendo uma coisa, fazendo um bolo. 

Luís Augusto Fischer: E a mãe postava a voz: “Tu não te lembras da casinha pequenina onde o nosso amor nasceu?”

Guto Leite: Chegava e dizia, gente, agora eu vou cantar. E todos se reuniam…

Luís Augusto Fischer: As pessoas assobiavam. As pessoas tinham um papagaio em casa, por exemplo.

Kátia Suman: Essa aí é musical americano, para tudo, que eu vou cantar.

Arthur de Faria: Bom, eu já passei por umas dessas. O pessoal do teatro, eu já passei por uma dessas. “Para a festa, que agora eu vou cantar as músicas.” À capela. Vocês sentam aí e me assistem.

Luís Augusto Fischer: Não, mas era uma coisa muito… Tinha um entranhamento, entendeu? Ninguém sabia para que servia a canção. Tu já pegou a coisa consolidada. Nessa época, quem era o Caetano Veloso? Era um cara que fez umas músicas e entrou lá. Não era o Caetano Veloso. Nana Caymmi, tá, era a filha do Caymmi, o cara que cantava “Marina”. Todo mundo sabia isso. Acho que não tem quem não soubesse.

Kátia Suman: E tinha aqueles programas na época, de calouros e de apresentação musical.

Luís Augusto Fischer: A mãe cantava e dizia assim: isso eu ouvia na Rádio Nacional. Era repetido no mundo todo, nos anos 40, 50. Todo mundo sabia essas coisas.

Arthur de Faria: Tinha um repertório bom. Não era nichado. 

Luís Augusto Fischer: Exatamente. O Star System também era muito ligado com essa tradição de música popular. Artista era artista internacional. Artista de cinema americano. E não tinha ainda telenovela. Tem que pensar isso também. Começa a ter força mesmo nos anos 60 e em diante.

Guto Leite: Você foi a shows aqui em Porto Alegre, marcantes, que você se lembra? 

Luís Augusto Fischer: Eu não gosto de show. O show marcante que eu fui, que foi o último show massivo que eu fui, foi quando o Milton Nascimento veio lançar Minas em Porto Alegre, pra tu ter uma ideia. 

Arthur de Faria: Depois tu foi no Almôndegas comigo e ficou reclamando o tempo todo.

Luís Augusto Fischer: Agora. Mil anos depois eu fui no Araújo Viana ver o Almôndegas. Nós somos de verdade. Devo a ti essa. 

Guto Leite: Peraí, nos anos 70, não?

Luís Augusto Fischer: Não, fui a alguma coisa sim. Um show marcante que eu fui foi no Clube de Cultura. Era um show de rock com o Bicho da Seda. Uma banda chamada Prosexo. Que era daquele contrabaixista, aquele…

Arthur de Faria: Mitch Marino.

Luís Augusto Fischer: E tinha mais uma outra banda que eu não lembro qual era. E o Bicho da Seda a gente ficou assim. Será que era nos anos 70?

Arthur de Faria: 75.

Luís Augusto Fischer: Clube de Cultura, na Ramiro. Nós voltamos pra casa enlouquecidos. E também a gente pegou, na minha geração, exatamente, na minha adolescência, os Beatles eram uma coisa meio do passado já. Todo mundo sabia todas as músicas, mas o que era nosso era Led Zeppelin, Pink Floyd, aqueles caras dos anos 70. E em seguida começou a aparecer uma onda, que pra mim foi muito próxima, que era do Crosby, Stills e Nash. E desses caras lá do folk americano. James Taylor, jovem. E eu tocava violão. 

Arthur de Faria: Mas você tocava violão pra pegar as gurias? 

Luís Augusto Fischer: É.

Kátia Suman: Como todos, né!

Luís Augusto Fischer: Pra fazer onda, né? Claro…

Arthur de Faria: É que a Kátia falou “como todos”, mas é porque tem uns idiotas que tocavam, que queriam tocar… 

Luís Augusto Fischer: Que queriam ser músico… (risos)

Fischer e amigos, 1984. Foto: Arquivo pessoal

Guto Leite: E a relação entre canção e literatura dentro da universidade inexistia nessa época da tua graduação? Nenhum professor em algum momento disse isso aqui é Drummond, tal como Chico Buarque…

Luís Augusto Fischer: Nunca, jamais. A primeira coisa que eu me lembro disso de canção com literatura foi quando eu comecei a dar aula. Comecei a dar aula em março de 1980. No colégio Anchieta, por acaso, apareceu uma vaga. Tinha uma amiga minha, que era minha colega de aula, que dava aula lá. E um dia, começando o semestre, ela me disse: tu não quer ir lá fazer seleção? Sobrou uma vaga pra dar aula de redação. Aí cheguei lá, fiz uns testes, fui selecionado. 

Guto Leite: Cabeludo ainda nessa época?

Luís Augusto Fischer: É, cabeludo. Já não a mesma coisa lá dos 17 anos, mas ainda era cabeludo. Usava macacão Lee, essas coisas.

Arthur de Faria: Magrão. A gente precisava fazer uma pesquisa de foto. (risos_

Kátia Suman: E a gente nem falou do cinto calhambeque. Que isso aí foi um marco da tua vida. 

Guto Leite: O que é isso?

Luís Augusto Fischer: Mas isso eu tinha há uns seis anos àquela altura. 

Kátia Suman: Eu sei, mas a gente não pode passar por essa sem falar.

Luís Augusto Fischer: É uma música do Roberto Carlos, que virou uma indústria em volta.

Guto Leite: Sim, meu calhambeque, beep, beep.

Kátia Suman: Tinha o cinto, a roupa, a calça.

Luís Augusto Fischer: E eu tinha o cinto calhambeque. 

Arthur de Faria: Indústria cultural. Adorno. Adorno.

Kátia Suman: E bicicleta?

Luís Augusto Fischer: Eu não tive bicicleta. É um trauma que eu tenho. E não tive por um trauma familiar, por causa da doença do Prego, meu irmão. Poliomielite. E eu me lembro assim, um dia eu perguntei pro pai, eu tinha oito ou nove anos, e ele disse: tu não pode ter bicicleta, porque teu irmão não pode andar de bicicleta. Acabou. Psicologia daquele tempo. 

Arthur de Faria: Terapia do joelhaço.

Luís Augusto Fischer: Mas o que que eu me lembro? Eu comecei a dar aula lá no Anchieta em 1980 ainda. 80. E eu com todo aquele embalo, todos os meus amigos da Geologia. Eu tinha 22 anos. E meus amigos da Geologia, eu saía com eles. Tinha um grande camarada meu, depois a gente se afastou, o Bira, que era um cara muito talentoso, compunha, e eu tocava muito com ele. A gente quase começou a se profissionalizar num circuito alternativo. Eu tocava junto com ele, então a gente ia nas festas, e era atração de festa. Assim, por 79. Bom, aí, em 80 eu começo a dar aula, eu  comecei no segundo ano e um mês depois vagou a literatura no terceiro ano. Um rolo lá que deu. E o Paulo Guedes, que era o meu chefe, perguntou: tu não quer dar aula de literatura no terceiro ano? Eu digo: como assim? Claro que eu quero. Eu comecei a dar aula, então, no terceiro ano. Eu era um guri de merda, dando aula para uns caras que tinham 18, 17 ou 18. E aí, com aquela energia de professor jovem e tal, de vez em quando eu falava, embora o programa fosse mais de história da literatura, aparecia. 

Arthur de Faria: Aparecia o quê? 

Luís Augusto Fischer: Música. Canção. Eu acho que eu fiz um grupo, como se fosse um curso à parte, de tarde, não me lembro bem. Enfim, a gente se reuniu com alunos que quisessem. E eu imediatamente fiz, devo ter guardado aqui em casa ainda, um polígrafo, como a gente dizia, com letras da Bossa Nova, do que se chamou depois de MPB e da Tropicália, que era uma experiência recente que eu tinha vivido. E os alunos tinham quase a minha idade. Também tinham aquela mesma experiência. E eu me lembro que pedi para o Paulo. Paulo, eu posso falar de canção? Aliás, a primeira vez que eu falei com o Paulo sobre isso foi no dia em que o João Bosco e o Aldir Blanc tinham lançado um disco novo. E aí eu, sei lá, não sei se eu cheguei assobiando uma música ou coisa assim, o Paulo disse, ah, não sei o quê e tal. Eu digo: ah, sim, é do João Bosco. Tu gosta do João Bosco, Paulo? E ele diz assim: o épico ou o lírico? Aí eu digo, porra, verdade, tem o épico e tem o lírico. E aí imediatamente quebrou toda a barreira, saímos falando sobre o assunto. E aí o Milton, em seguida, em 82, o Clube da Esquina 2.

Arthur de Faria: Clube da Esquina 2 é de 78.

Luís Augusto Fischer: Não, já tinha saído, exatamente. Aí tinha um Drummond cantado lá, “Canção Amiga”.

Arthur de Faria:  É do disco dele de 80 ou de 82. Não, é do Clube da Esquina 2. Acho que é do Sentinela. Ou é do Caçador de Mim

Luís Augusto Fischer: Bom, enfim. Mas eu sei que tinha isso. Era tudo vivo. Sabe o Drummond, aquele velhinho que está vivo ainda…

Arthur de Faria: Pode ser que seja Clube da Esquina 2. Sigam aí que eu vou conferir aqui. 

Kátia Suman: Tá, então começou essa atividade extracurricular no Anchieta, com MPB.

Luís Augusto Fischer: Exatamente. Aí na faculdade, eu acho que eu fiz um trabalho de Literatura 3.

Arthur de Faria: Tem razão. Clube da Esquina 2, em 78.

Kátia Suman: Tá, quando tu foi dar aula no Anchieta, tu já tinha te formado?

Luís Augusto Fischer: Não, eu me formei no fim de 80. No último ano que eu dava aula, e tudo porque era um colégio particular. E o Paulo era o chefe. Então não tinha problema.

Arthur de Faria: E daí deu uma alegria no teu pai, compensou o abandono da Igreja Católica? 

Luís Augusto Fischer: Mais ou menos, demorou um pouco. Ele sempre teve muito orgulho de mim. Sempre dizia que eu era muito inteligente. Mas sempre tinha esse problema, estava faltando uma parte. (risos)

Fischer e Paulo Coimbra Guedes, anos 1990. Foto: Arquivo pessoal

Guto Leite: A gente está aqui, enfim, o motivo é os 40 anos de URGS. A entrada, tu sabe, é março?

Luís Augusto Fischer: Eu me formei em 80, continuei estudando, porque eu fazia História, mas já dava muita aula. E em 82, eu acho, eu entrei no mestrado. Eu entrei logo no primeiro ano de formado. Ou foi em 81, não me lembro mais. Era outro planeta. Tinha a coisa do ciclo básico. Em 72 começou uma coisa chamada ciclo básico, que era uma ideia meio norte-americana de universidade, em que as pessoas, metade das vagas, a metade superior das vagas era preenchida por gente que vinha direto do vestibular. O cara entrava em Medicina, se ele entrasse, digamos, que eram 100 vagas, se ele entrasse nas 50 primeiras, ele entrava direto. Mas nas 50 seguintes, o cara não entrava direto na Medicina, ele entrava no ciclo básico, que se compunha de algumas matérias obrigatórias, que supostamente eram dadas de maneira homogênea para todas as turmas. E ao final desse semestre, o cara fazia provas, e conforme ele pontuasse, ele entrava no curso que ele queria, ou não. Eu conheço um cara que queria fazer Medicina e acabou fazendo Educação Física, exatamente nesse período. A ideia deles era que tinha um professor da Informática, se chamava Processamento de Dados na época. Esse cara tinha lá uns estudos que diziam que os primeiros colocados eram os caras que iam no curso até o fim. Mas quem entrava mais na rabeira, tinha uma frequência muito alta de desistência. Então a ideia dos caras era fazer o cara entrar na universidade, mas não no curso. Tudo isso para dizer que uma dessas cadeiras obrigatórias era uma língua portuguesa, de seis créditos. Seis créditos: aula segunda, quarta e sexta. Então isso se manteve durante alguns anos. Depois esse modelo caiu, ele não funcionou por muito tempo, mas a obrigatoriedade de língua portuguesa para vários cursos continuou. E era uma disciplina muito desprestigiada, porque ninguém queria dar. Era uma merda. Tu aprendia a fazer relatório técnico, uma coisa chatíssima, que nem aprender a escrever ata, sabe? Coisa chata. E era toda programada, todo mundo tinha que dar a mesma aula no mesmo dia, porque a prova era igual para todo mundo. Enfim, uma coisa de maluco. Então, eu fui aluno disso. Quando eu entrei na Geologia, eu fiz essa cadeira de língua portuguesa. Quem me deu aula foi a Zilá Bernd, que depois se tornou professora do francês, mas também jovenzinha formada, foi convidada e tal. Bom, e aí então, em 1984, eu fui convidado. Eu não fiz teste nenhum, mas fui convidado para dar aula em uma cadeira dessa de língua portuguesa. Fui lá e comecei a dar aula. E a contratação demorou até, sei lá, em outubro, novembro, uma coisa assim, até o segundo semestre. Então, eu dava um monte de aula em colégio para me sustentar e dava aula lá, porque era um investimento na universidade, que era o lugar em que eu queria estar. 

Arthur de Faria: Mas pagava muito mal? 

Luís Augusto Fischer: Não pagava. De março até outubro eu não ganhei nenhum pila. 

Kátia Suman: Porque não tinha sido contratado. 

Luís Augusto Fischer: Na moral, assim. (risos) Fui contratado em outubro, então eu dava aula desde março. 

Kátia Suman: Na moral…

Arthur de Faria: E existia isso?

Luís Augusto Fischer: Os caras da geração do Paulo Guerra, do Moreno…

Arthur de Faria: E daí, quando foi contratado, você recebeu retroativo? 

Luís Augusto Fischer: Sim. Com uma mordida do imposto de renda que me deixou quase com nada. Foi uma coisa ridícula. Toda essa geração que entrou nos anos 70 também não fez concurso. Mas eu vim a fazer depois. Esses caras ficaram dando aula e esses caras eram contratados dez meses por ano. 

Kátia Suman: É tipo nomear?

Luís Augusto Fischer: Não. Contratado. Contratado dez meses por ano. Cinco meses no primeiro semestre, cinco meses no segundo semestre. 

Kátia Suman: Boia-fria.

Luís Augusto Fischer: Não tinha férias, não tinha nada. E aí, em 79, eu aluno, teve uma greve de professores. Pela contratação desses caras. De 79 para 80, todos esses caras foram incorporados como funcionários. Aí mudou muito a coisa. Porque muitos desses caras, tipo a Zilá, que foi a minha professora, queria dar aula de francês. Então ela larga o básico e vai dar aula de francês. O Paulo Guedes queria dar aula de redação. Largou o básico e vai dar aula de redação. Na Fabico. 

Kátia Suman: Ninguém queria o básico.

Luís Augusto Fischer: O básico era lixo, entendeu? E foi aí que sobrou uma vaga para mim. Para mais duas ou três pessoas. Aí, em 85, no ano seguinte, portanto, todo mundo que era professor horista da URGS, como se chamava, foi obrigado a se inscrever no primeiro concurso que esteve aberto para a língua portuguesa. Eu também. Eu não apenas me inscrevi, mas eu estudei que nem um tarado. E passei. Eu estava no mestrado de literatura. Mas eu fiz. Então passei. Só que a validação desse concurso demorou meio ano, porque teve recurso e tal. Eu era professor de língua portuguesa no começo. Eu dava aula de redação com o Paulo na Fabico e no Curso de Letras.

Arthur de Faria: Ah, tu também deu aula na Fabico? 

Luís Augusto Fischer: Quando eu dei aula para a Cláudia Laitano, o Lerina, a Sandra Simon. Então, aquela geração. E o teu amigo, aquele, que dirigiu a Rádio Gaúcha depois, me esqueci o nome dele. 

Arthur de Faria: Cyro Martins.

Luís Augusto Fischer: Cyro Martins, exatamente. Aí, estando na UFRGS e dando aula de português, aí teve um quiproquó lá, que não importa aqui reproduzir. Tinha uma professora, que era professora estável do quadro, que tinha sob sua responsabilidade três turmas de literatura brasileira. E ela brigou com não sei quem lá e declarou, era uma madame, né, declarou que não ia mais dar aula de literatura brasileira. Aí o departamento não sabia o que fazer. Tinha três turmas abertas e o departamento manda uma mensagem para todo mundo, papel, naturalmente, e pergunta alguém está interessado na aula de literatura brasileira? Então eu comecei a dar aula de literatura brasileira sem passar nem pelo titular de brasileira, que era o Flávio Loureiro Chaves, de quem eu tinha sido aluno e que não ia muito com a minha cara. Não chegava a me repudiar, mas não era muito meu camarada. Foi isso. 

Guto Leite: Isso em 1985?

Luís Augusto Fischer: Em 85 ou 86. Eu comecei a dar aula mesmo de literatura, acho que foi em 87. Aí que realmente eu virei só professor de literatura. Eu não dava mais redação, ou dava só de vez em quando. Pronto, acabou a história. Podemos ir pra casa.


(A entrevista tem sua terceira e última parte na próxima semana.)

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