Entrevista

Luís Augusto Fischer: “A memória é o solo fértil onde cultivamos nosso legado” – parte 1

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Luís Augusto Fischer: “A memória é o solo fértil onde cultivamos nosso legado” – parte 1 Luís Augusto Fischer em 1966

Em uma conversa íntima e despojada, Luís Augusto Fischer, uma das figuras mais importantes no panorama intelectual do Rio Grande do Sul, compartilha fragmentos de sua jornada ao completar quatro décadas de atuação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Neste encontro comemorativo, com Kátia Suman, Arthur de Faria e Guto Leite, Fischer nos conduz por um labirinto de memórias, onde cada virada reflete a riqueza de suas experiências pessoais e profissionais. Nascido em Novo Hamburgo, no ano que, segundo ele, “não devia ter terminado”, Fischer desenha uma paisagem íntima de sua infância, marcada tanto pela singularidade do cotidiano quanto pela complexidade das relações familiares.

A entrevista foi dividida em três partes. Na primeira parte, que o leitor aprecia hoje, Fischer recupera suas origens, sempre articulada ao contexto de sua época, seu ambiente familiar, infância, adolescência, até a entrada na universidade. Pela densa irreverência das próximas linhas, estamos certos de que o leitor irá se divertir. Boa leitura!


Arthur de Faria: Tá. Eu posso começar. Afinal de contas, você é de Novo Hamburgo ou de São Leopoldo? 

Luís Augusto Fischer: Novo Hamburgo. Nasci em Novo Hamburgo, no dia 25 de janeiro de 1958.

Arthur de Faria: No ano que não devia ter terminado. 

Luís Augusto Fischer: Não devia ter terminado, exatamente. Meus pais estavam morando lá fazia, provavelmente, menos de meio ano.

Katia Suman: E a mãe é aqui de Porto Alegre?

Luís Augusto Fischer: Não. Lajeado. Eu contei pra vocês a história, né? Depois que o pai e a mãe morreram, nós descobrimos as cartas deles de namorado. Então, bah, eu tô mergulhado na história.

Arthur de Faria: Sim, tu me mandou as cartas. Eu li muitas. 

Luís Augusto Fischer: Juntando coisas. É uma loucura.

Arthur de Faria: É muito legal. Naquela formalidade católica. Católico no meio dos literários, né? Ali em Lajeado?

Luís Augusto Fischer: Novo Hamburgo? Não sei se é mais forte. 

Arthur de Faria: Tu chegou a fazer colégio lá?

Luís Augusto Fischer: Não, eu vim pra cá com menos de um ano de idade.

Guto Leite: Ah, então você é porto-alegrense.

Luís Augusto Fischer: Novo Hamburgo é só na carteira de identidade. A única relação minha com o Novo Hamburgo é que eu tinha um tio que morava lá, que é o pai do Geraldo, que teve 12 filhos. Os primos. Então a gente tinha a cidade como uma coisa importante, porque eu ia lá, visitava o tio e tal. E esse tio era o mais velho do pai. O pai foi pra Novo Hamburgo por causa desse cara. E aí depois arranjou emprego aqui e veio pra cá. 

Guto Leite: E Novo Hamburgo era mais longe em 1958? 

Luís Augusto Fischer: Era, mas nunca foi muito longe.

Guto Leite: Tinha a coisa de viagem?

Luís Augusto Fischer: Não, era porque tinha já a BR aqui, né? Não, nunca foi não. Dava pra pegar ônibus tranquilo, ônibus da Central. Era barbada. Lajeado era muito mais longe. Lajeado continuou sendo vinte e poucos quilômetros, mas Lajeado era uma epopeia pra ir na casa do vô.

Arthur de Faria: E tu daí foi uma criança do Quarto Distrito?

Luís Augusto Fischer: Criança do Quarto Distrito. Avenida Pernambuco, 1514.

Katia Suman: Colégio São João.

Luís Augusto Fischer: Não, era no Santa Família. Ginásio Santa Família. 

Katia Suman: Grupo escolar?

Luís Augusto Fischer: Não… Era um ginásio. Ginásio de Freira. Ah, enfim. Uma coisa maravilhosa. A gente ia a pé pro colégio. Só nós, as crianças. A minha irmã, com um ano e meio mais que eu, eu, uma colega dela. A gente a pé pro colégio. Cinco quadras, caminhando. 

Katia Suman: Um padrão europeu, assim.

Peça de teatro no Colégio São João 1974/75. Foto: Arquivo pessoal
Boletim escolar, 1968. Foto: Arquivo pessoal

Arthur de Faria: Com que idade isso? Que idade tu foi pro colégio?

Luís Augusto Fischer: Eu fui pro colégio com quatro anos de idade, pro Jardim. Eu fui porque a minha irmã mais velha foi pro Jardim e eu fui junto com ela. Ela é um ano e meio mais velha que eu. Aí ela foi embora, pro primeiro ano e eu fiquei. Eu fiz dois anos no Jardim. Repeti o Jardim.

Arthur de Faria: Tu rodou no Jardim. Olha, isso nos unifica também.

Luís Augusto Fischer: Eu era muito criança, né? Tinha cinco anos só. Aí fiquei mais um.

Eu posso contar uma história traumática do Jardim. Eu sempre fui canhoto pra escrever. E eu nunca tive nenhum problema de ser canhoto. Mas eu ouvia toda a lenda, sabe?, de que canhoto era proibido e tal. Aí eu me lembro que um dia, uma das raras cenas que eu me lembro vivamente do Jardim, a diretora foi visitar a sala do Jardim e quando ela entrou, eu tava com o lápis na mão esquerda e passei pra direita e fiquei… 

Kátia Suman: Só no bico.

Luís Augusto Fischer: Fazendo de conta, por medo de freira, sei la…

Kátia Suman: De tomar um reglaço.

Luís Augusto Fischer: É, não teve problema. A professora era a dona Mariazinha, gente muito fina.

Arthur de Faria: E era um bucolismo? Ou era uma coisa industrial? 

Luís Augusto Fischer: O colégio?

Arthur de Faria: Não, o bairro.

Luís Augusto Fischer: O bairro. Sim, tinha indústrias ali. Tem uma outra cena que eu me lembro. Nós indo pro colégio. Eu estudei lá até metade do terceiro ano. Então, em algum momento entre os meus cinco e os meus oito anos, um dia a gente tava indo pro colégio, eu, a Rosa e a amiga dela, a Laís. Eu tava andando um pouquinho na frente, a gente dobrou uma esquina, e eu achei uma nota de cinquenta. Não lembro o quê, mas era cinquenta. E era muito. Ou era cinco, sei lá. Mas seria hoje algo assim como cem reais. Um valor desse tipo. E eu peguei a nota e mostrei pra minha irmã. Falei, que que eu faço com isso? E ela, o que que ela disse? 

Kátia Suman: Devolve. 

Luís Augusto Fischer: Exatamente na frente tinha uma fábrica de bicicleta. Não me lembro o nome. E tinham uns operários esperando pra entrar. E ela disse: quem sabe não é de um deles ali. Eu atravessei a rua, fui lá e perguntei: é de vocês?

Kátia Suman: Foi o primeiro que respondeu que era dele.

Luís Augusto Fischer: Não… Ninguém.

Kátia Suman: Sério? Ninguém?

Luís Augusto Fischer: E eu fiquei com aquela grana. Era época de Páscoa, eu me lembro. Daí perguntei pra mãe o que eu devia fazer. A mãe liberou, eu acho, e eu comprei chocolate. Era outro mundo. E é legal porque as ruas são todas ortogonais ali, né? Tudo umas quadras quadradas mesmo. Tudo plano. 

Guto Leite: Essas memórias pra ti, são nítidas ou são recompostas? 

Luís Augusto Fischer: Essa é muito nítida. Eu tenho uma… um tipo de consciência, de guardar coisas desde muito pequeno. Tipo assim, isso é uma coisa importante. Acho que tem a ver com a minha mãe. A minha mãe era muito assim, era… era uma pessoa de detalhes, sabe? Não tinha uma visão de conjunto.

Arthur de Faria: Tu ia construindo a tua autobiografia.

Luís Augusto Fischer: Exatamente. Eu me dava conta, eu me lembro de ir no armazém comprar cigarro pro meu pai. E o pai parou de fumar quando o Prego nasceu. Ou seja, eu tinha sete anos e meio, por aí. Mas eu me lembro que eu… eu comprava um Hudson com ponteira. E depois ele fumava Luxor. Era um tópico acima.

Arthur de Faria: E vocês eram crianças de rua, de andar na rua? Não era… 

Luís Augusto Fischer: É, mas naquele sentido ali, daquele…

Arthur de Faria: Jogar bola na rua. 

Luís Augusto Fischer: Todo mundo. Todo mundo brincava na rua.

Kátia Suman: Todo mundo brincava na rua na nossa geração.

Luís Augusto Fischer: Não tinha limite. Bem perto, a uma quadra de distância, tinha uma oficina de caminhão. Ônibus. Acho que caminhão e ônibus. A gente ia até ali, brincava, entrava, saía.

Kátia Suman: É, naquela rua, Augusto…?

Luís Augusto Fischer: Não, a gente morava na Pernambuco. Na Pernambuco. Era um endereço bacana: na Pernambuco, entre a Brasil e a Pátria. E o pai trabalhava uma quadra e meia de casa. Era um mundo de gente interiorana chegando, sabe, na cidade. 

Guto Leite: Com o que ele trabalhava?

Luís Augusto Fischer: O pai era o seguinte. Ele saiu do seminário e começou a dar aula. Ele não tinha formação superior. Ele tinha feito o que se chamava lá de curso de humanidades. Mais ou menos seria uma escola normal, um pouquinho melhor. Então ele saiu e começou a dar aula de Latim e Português. Mas aí ele fez o curso técnico de Contabilidade lá em Lajeado, que era o único curso técnico superior que tinha. E ele começou, então, a trabalhar com isso. E, assim que ele se formou nisso, em 1954, ele fez Direito na PUC sem frequentar. Ele só vinha aqui para assistir algumas conferências e para dar prova. E aí, em 1958, quando ele se formou em Direito, ele começou a fazer Letras na Unisinos. Mas aí abandonou, porque daí já trabalhava de dia como administrador, contador, gerente de uma empresa. E de noite dava aula.

Arthur de Faria: E a tua mãe cuidava das crianças? 

Luís Augusto Fischer: Cuidava da casa. Agora que eu estou lendo as coisas da mãe, me dá uma tristeza de ver que ela podia ter ido muito mais longe do que ela foi. A mãe era depressiva, né? E as mulheres dessa geração quase todas são.

Kátia Suman: É, mas também não tinha muita opção, né? Porque tinha que cuidar dos filhos e da casa. Então não dava para fazer voos. 

Luís Augusto Fischer: Mas é uma pena, claramente. Ela era uma pessoa muito inteligente. E eu tenho todos os boletins dela do ginásio aqui. Ela tirava só nove, nove e meio, dez, em tudo que era coisa. Em todas as matérias, inclusive matemática e tudo.

Kátia Suman: Viu esse teu cabeção aí daonde veio…

Arthur de Faria: E tinha livro em casa? 

Luís Augusto Fischer: Tinha muito livro em casa, sim.

Guto Leite: E disco? 

Luís Augusto Fischer: Disco também, mas tinha menos, proporcionalmente.

Kátia Suman: Eu queria saber como é que a música entrou. O que é que tu ouvia?

Luís Augusto Fischer: Música. Bom, primeiro é uma família católica, religiosa. E ia à missa. Então sempre tem gente cantando na missa. Agora, a nossa geração é a do rádio, né? A gente ouvia tudo. Tinha uma eletrola em casa.

Kátia Suman: Mas não tinha o primo mais velho, não? Que dava os rock and roll, não?

Luís Augusto Fischer: Os primos mais velhos lá de Novo Hamburgo. Exatamente. Bah, me lembro de ouvir Twist and Shout, entendeu? O compacto que… Sei lá que idade, eu tinha, sete anos. Lá em Novo Hamburgo. O meu primo mais velho, o Newton, era uns dez anos mais velho que eu. Então, porra, era um adulto já. Eu era um guri, né? E eles sabiam tudo. Eles estavam ligados. Intelectualmente, eram os caras com mais horizonte do que o meu pai. O pai era um cara que ficou muito agarrado no cotidiano muito mesquinho. O pai também era um cara muito inteligente. Bah, estou falando deles no passado. Primeira vez na vida que eu vou falar deles no passado. Mas é isso. E aí tinha o negócio de música, tinha esses primos. E tinha o rádio. Porra, o rádio era um negócio. A gente ouvia o tempo todo.

Arthur de Faria: Mas o rádio era o quê nessa época? O Guaíba? Ainda não era Continental.

Luís Augusto Fischer: Caiçara. Onde a música não para. Rádio Itaí: cinema, turfe e boa música. E eu ouvia. E em seguida, quando eu tinha uns doze anos, talvez setenta, um pouquinho depois, aparece a Continental. Que também o primo meu me disse, bah, tem que ouvir a Continental. 1.120. Bota lá.

Kátia Suman: E tinha a Pampa também, nessa época, que competia…

Luís Augusto Fischer: A Continental, eu me lembro que a primeira coisa que um primo meu me recomendou que eu ouvisse foi Ritmo Vinte, que era um programa daquele Clóvis Dias Costa, que era às nove da noite.

Guto Leite: A transgressão. 

Luís Augusto Fischer: Ele meio que dava uns toques, meio que falava no programa. Botava música, mas contava alguma coisa. É isso. Negócio dos festivais de música dos anos 60, por exemplo, eu via aqueles festivais. 

Arthur de Faria: Sim, tu assistia uma TV em casa desde sempre.

Luís Augusto Fischer: Não, não desde sempre. Desde que eu tinha uns oito anos, sete anos, 65.

Arthur de Faria: É, no ano do primeiro festival. Tu via isso tudo na TV.

Luís Augusto Fischer: A gente via e lia, porque aqui passava com algum atraso em relação ao Rio e a São Paulo. E a gente comprava a revista Intervalo. InTerValo. Que era intervalo e TV, com o T e o V grandão. Que era uma revista de programação da TV com as letras das finalistas. Então a gente via o Caetano cantar e lia, entendeu? Lia a letra ali na hora. Eu e minha irmã mais velha.

Kátia Suman: É claro, passava, tinha um delay. 

Guto Leite: É curioso isso, porque no centro eles não tinham isso. Eles viam sem a letra. E aqui vocês viam a letra.

Arthur de Faria: E o teu primeiro impacto de literatura e de música foi o quê? É, o primeiro livro que tu… Eu vi a coleção ali, agora é a mesma coleção que eu tinha.

Luís Augusto Fischer: Ah, dos clássicos? Cara, quando eu comecei a ler, de ler um livro inteiro que eu me lembro, eram os livros católicos que meu pai dava. Meu pai foi católico até quando não podia mais. Então ele tinha uma coleção de livros que comprava nas Irmãs Paulinas, no centro que tinha uma livraria lá na Doutor Flores.

Arthur de Faria: Maravilhosa. Eu ia comprar um marcador de páginas com pôr-do-sol e Porto Alegre.

Kátia Suman: Agora é na Rua da Praia.

Luís Augusto Fischer: Ah, sim, mais perto lá da Praça da Alfândega. Então eu me lembro de um livro que eu recuperei depois com o tempo, é o nome de um personagem chamado Percy, Percy Wynn, é o nome do livro. Eu fui tentar ler, é um livro horroroso, um livro mal traduzido, uma bosta, uma linguagem horrível. Como é que eu consegui ler aquela porcaria? Mas eu me lembro que eu li, e com a seguinte peculiaridade: no meio do terceiro ano primário a gente se mudou de bairro. Aí nós fomos para São João, para o bairro São João. E esse livro era de um cara que ia para um colégio interno. Então eu me lembro de eu chegando… Bom, então de resto. Santa Família era um colégio só de freira, misto, entendeu? E só tinha até o fim do ginásio, ou seja, só até a adolescência, começo da adolescência. Aí eu entro em São João que era um colégio só de guri. Toda aquela truculência de colégio masculino. E eu me lembro eu nos primeiros recreios, sentado num canto lá com o livro aberto e lendo. Me lembro da minha figura, sabe? Ah, depois me integrei e tudo. Então não foi aí que eu me tornei leitor. Esses livros eram horríveis, horríveis, medonhos. 

Arthur de Faria: E tu foi contemporâneo do Pezão, do Nelson, no São João?

Luís Augusto Fischer: O Pezão é mais velho que eu. Pezão é uns três anos mais velho que eu, uma coisa assim. Eu me lembro deles porque eles eram os adolescentes grandes, né? O Nelson não. O Nelson eu acho que eu conheci… Eu devo ter visto ele lá no colégio, mas ele saiu antes de terminar o colégio. Ele foi para, não sei onde. Ele foi morar no Cristal. Mas eu conheci ele depois. Ah, o colégio era muito legal. Vocês não me perguntaram, mas eu posso dizer. Minha experiência de colégio lá foi muito legal. 

Arthur de Faria: Já tinha banda? 

Luís Augusto Fischer: Tinha uma banda marcial maravilhosa. Tinha os canarinhos do Colégio São João, que a tia Isis meio que amadrinhava.

Kátia Suman: Ah, a galerinha.

Luís Augusto Fischer: Exatamente. Eu não entrei nunca nisso. Eu nunca tive muita paciência para entrar. Eu achava meio careta, na verdade. Porque eles tinham um uniformezinho, umas coisas meio, sabe?, coreografia…

Arthur de Faria: Aí tu deixou de cantar na Hebe. Tu viu?

Luís Augusto Fischer: E… Mas era legal porque aquilo dava um clima, assim, para o colégio. Realmente eu peguei uma fase maravilhosa. Tinha um diretor muito inteligente. O colégio tinha um esquema com a Sogipa. Então, o colégio tinha uns caras que vinham não sei de onde para ser atleta na Sogipa e ganhavam bolsa no São João. Tinha um time de futebol muito bom, tinha um basquete muito bom. Eu joguei também basquete e vôlei no colégio. Foi uma época muito legal. Fiz teatro no colégio. Bom, eu tive aula… Tudo por acaso. Acho que não chegava a ser um projeto, mas eu tive aula com o Vagner Dotto, de História da Arte. Era um pintor, enfim. Morreu de AIDS, até. Mas era assim. Ele pegava os filmes da Aliança Francesa e passava para o nosso colégio. Todo mundo achava aquilo… odiava, matava aula, e eu ficava vendo. Eu e vários outros. Adorava aquilo, sabe? O Dotto era um cara super fino. Tinha o apelido de Peruca porque ele usava uma peruca. Ele usou meio mal colocado. Sobrou um pedaço de careca atrás…

Guto Leite: E lá foi até…

Luís Augusto Fischer: Terminei o colégio lá. E aí eu era um guri daquele bairro ali, entendeu? Da Sogipa. Eu peguei a Sogipa no tempo que ainda era no Centro, na Alberto Bins. Então lá fui em baile de carnaval. Fui escoteiro na Sogipa.

Kátia Suman: Tudo na Sogipa.

Luís Augusto Fischer: Tudo na Sogipa.

Kátia Suman: Tá, e nessas alturas já tinha aparecido o primeiro livro, que tu…

Luís Augusto Fischer: Sim. O que me fez virar leitor foi com aquela coleção ali. Uma coleção que a Abril lançou. A gente tinha lá em casa, por exemplo, a obra completa do Machado de Assis. Não queria dizer nada. Eu sabia que ela estava lá. Sabia todos os nomes. Mas não queria dizer nada. Tinha o Lello Universal.

Arthur de Faria: Tinha o Lello Universal.

Luís Augusto Fischer: Tinha o Tesouro da Juventude que eu lia.

Kátia Suman: O Livro dos Porquês.

Luís Augusto Fischer: Tudo isso a gente olhava, via, fechava, abria outro volume e tal. Tudo aleatoriamente. Tinha a Barsa.

Kátia Suman: A Barsa era de rico.

Luís Augusto Fischer: É, a Barsa eu não tinha. Era a Delta… Delta Larousse.

Kátia Suman: Delta Larousse, que era a Barsa dos chinelos. Que era dos pobres. Que era a que eu tinha.

Arthur de Faria: É a que eu tinha também. Eu nunca tive a Barsa

Luís Augusto Fischer: Exatamente. Eu também tinha. E aí, bem na nossa adolescência, a Abril entrou numa trip maravilhosa de produzir conteúdo de alta qualidade para mercado. Então tinham coleções, coleção dos filósofos, por exemplo, aquela lá. Quando é que imaginou aquilo? Os caras vendiam em bancas. Alguns daqueles volumes eu comprei. Aquela enciclopédia Conhecer, que era super dinâmica.

Kátia Suman: Sim! Conhecer, encadernada.

Luís Augusto Fischer: Encadernada. E aí ela lançou, eu acho que eu tinha uns 12 ou 13 anos, então 70 ou 71, aquela coleção de clássicos adaptados. Aquilo ali que me fez leitor. Então, eu li A Ilha do Tesouro, Os Irmãos Corsos, A Filha do Capitão. Tudo adaptado.

Arthur de Faria: Moby Dick

Kátia Suman: Eu nunca li clássicos adaptados.

Luís Augusto Fischer: Por isso que eu sou leitor. Aí é que eu está. E aquilo ali era um livro a cada duas semanas. E eu acho que eu devo não ter lido um ou dois daqueles volumes. Um deles era Alice, que eu não li porque achei que já era muito de criança. Alice no país das Maravilhas. E o outro, não lembro qual era. Mas os outros todos eu lia com fervor. Winnetou, do Karl May. Puta, um monte de livro. Tudo livro de aventura. O Médico e o Monstro e tal. Classicão. Bah, eu me lembro que eu lia por nada. Eu ia na banca, comprava e lia. Ninguém me pedia para ler. 

Arthur de Faria: Os Aventuras do Rei Arthur foi um que me marcou.

Luís Augusto Fischer: Don Quixote adaptado. 

Guto Leite: Mas o horizonte de ir trabalhar com isso não estava ainda?

Kátia Suman: Não. Nem de trabalhar.

Luís Augusto Fischer Não, mas é uma questão engraçada porque o meu pai foi professor a vida inteira. Ele se aposentou como professor e depois continuou trabalhando e tal. Então o pai era professor de Latim enquanto houve Latim no ensino médio. Quando acabou o Latim, ele passou a ser professor só de Português. Ele dava aula de Latim, de Inglês e Português. E aí passou a dar aula só de Português. Como ele não tinha letras, então ele não podia trabalhar em Porto Alegre como professor. Então ele dava aula, chegou a dar aula até em Canoas. Ele dava aula em Novo Hamburgo, depois em São Leopoldo e depois em Canoas.

Arthur de Faria: E por que inglês e não francês? 

Luís Augusto Fischer: Não sei. 

Arthur de Faria: Raro na geração dele, né?

Luís Augusto Fischer: É… Então o que eu ia dizer que é engraçado é isso aí, eu tinha uma imagem muito positiva de ser professor. Porque o pai adorava ser professor. E ele dava aula de noite, de segunda a sexta. Mas me lembro dele alegre, corrigindo prova domingo, entendeu? Curtindo, conversando. E eu entrava ali, olhava e tal. E, no entanto, quando eu fui fazer vestibular, não me passou pela cabeça fazer Letras. Simplesmente não me passou. Fui fazer Geologia. E estando na Geologia, que eu disse, pô, olha só, eu devia estudar literatura e tal.

Foto: Arquivo pessoal

Arthur de Faria: E tu foi fazer Geologia porque era moda da esquerda da época, né?

Luís Augusto Fischer: Era uma coisa meio hippie, eu acho. Era uma coisa meio hippie. Tinha uma coisa objetiva que tinha um irmão de um colega meu que fazia Geologia. Eu conheci o cara, o Eduardo, até fui no enterro dele. Que Deus o tenha. Num bom lugar. Mas me lembro daí, uma vez eu conversei com o Eduardo. A gente estava no colégio, eu fui lá fazer um trabalho na casa do irmão dele, do Paulo, né? E aí o Eduardo falou, olha, caramba, que era legal, tinha acampamento. Eu gostava muito de acampar. Fui escoteiro até os 12 anos. Eu não achava legal aquilo. Na nossa época tinha todo um clima de sair da cidade, negar a vida burguesa, ser alternativo.

Kátia Suman: É, isso na adolescência, não com 12… 

Luís Augusto Fischer: Não, não, não. Com 12 eu deixei de ser escoteiro. Mas eu continuei gostando de acampar. Eu ia muito acampar. Cara, essa coisa é de velho, né? No colégio, a gente combinava com os colegas. Não ia, quase nunca foi guria, mas a gente combinava, vamos acampar, vamos aonde? Em Fanfa. Fanfa, na ilha de Fanfa, aqui.

A gente pegava um trem ali na estação de trem, que não tem mais, em uma hora estava lá na ilha de Fanfa, acampava na beira do rio, domingo de tarde pegava um trem de volta. 

Kátia Suman: Não tenho a menor ideia de onde seja a ilha de Fanfa.

Arthur de Faria: Mas os meus amigos mais velhos iam para Fanfa.

Luís Augusto Fischer: General Câmara, aqui. Rio Pardo. 

Arthur de Faria: Durou, durou, durou mais. Porque cinco anos depois, meus amigos ainda iam para Fanfa. 

Luís Augusto Fischer: É inacreditável isso. E a gente acampava onde? Na beira do rio, entendeu? Botava uma barraca, abria a porta, dava dez passos e estava no rio. Não tinha campo, não tinha porra nenhuma, nada. Que loucura, né?

Arthur de Faria: E com um cigarrinho de autista, gente?

Guto Leite:  Spielberg. 

Luís Augusto Fischer: Eu fumava, eu fumava.

Arthur de Faria: Mas o cigarrinho que o passarinho não fuma? 

Luís Augusto Fischer: Eu fumei, mas muito pouco. Nunca fui um adepto. Foi muito eventual. Fumava com os outros, porque nunca me encantou muito. E eu parei de fumar maconha, das poucas vezes que eu fumei, porque me deu taquicardia uma vez. Não sei se deu, mas foi associado.

Arthur de Faria: Foi Deus.

Luís Augusto Fischer: Eu morei com um camarada que fumava muita maconha, um cara que tinha toneladas de maconha no congelador. E eu estava fumando com ele, conversando à toa, e daqui a pouco. Pum, pum, pum, pum, pum. Mas aí eu já trabalhava e tudo.

Arthur de Faria: E tu nunca foi de beber muito também, né?

Kátia Suman: Não é das tragas.

Luís Augusto Fischer: Às vezes com o Benjamin, com as crianças aqui, eu digo: com 14 anos a gente começava a ir para a noite. Com 14 anos. Ia para o bar com os amigos, pedia um chope. Com 14 anos. Mas eu nunca bebia, de estrebuchar não. Acho que um porre, assim, de perder o controle, nunca tomei. 

Guto Leite: Eu nunca te vi, acho que nem alto, talvez. 

Luís Augusto Fischer: É, um pouquinho alto, alegre, sim, né? A minha alucinação é suportar o dia todo. O meu delírio é a experiência com coisas reais.

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