Entrevista

Luís Augusto Fischer: “Tenho aquela convicção de que a palavra cão não morde.”

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Luís Augusto Fischer: “Tenho aquela convicção de que a palavra cão não morde.” Luís Augustos Fischer e Luiz Tatit falando sobre canção

Chegamos à terceira e última parte da entrevista da entrevista com Luís Augusto Fischer, em comemoração aos 40 anos de UFRGS do nosso entrevistado. Se até aqui o assunto era a família, a infância, a vida escolar, a adolescência e a entrada na universidade como aluno, agora vamos falar centralmente de assuntos mais recentes, como o começo do trabalho de Fischer com a canção popular, sua entrada na universidade, como professor, e sua passagem pela prefeitura de Tarso Genro, além de duas ou três histórias maravilhosas.

Pensando retrospectivamente as duas primeiras partes, cremos que já seja possível delinear um perfil do entrevistado, bem como perceber traços de estilo da sua conversa, como, por exemplo, sempre trazer as falas de seus interlocutores como se fosse entre aspas (“daí o fulano disse assim: …”) Mas é claro que uma breve entrevista de pouco mais de duas horas não seria suficiente e decerto há muito mais a saber sobre o Fischer e sua vida em meio ao universo das Letras e da universidade. Além tornar visível, com clareza, de que há aí todo um contexto geracional que poderia ser recuperado com entrevistas afins.

Novamente, participam da conversa Kátia Suman, Arthur de Faria e Guto Leite, amigos e ex-orientandos. 

Ótima leitura!


Arthur de Faria: Tá, e aí quando é que tu começou a botar um negócio de canção? 

Luís Augusto Fischer: Que ano foi, Guto?

Guto Leite: Nós fizemos um livro, O alcance da canção. Tinha 30 anos, não era?

Luís Augusto Fischer: Foi por aí. Em 88, eu dei pela primeira vez uma cadeira chamada Poesia Brasileira. Era um programa que eu fiz, mas ele tinha a ver com o meu mestrado, 89, talvez. Eu estudava a história da poesia brasileira. Ali já entrava letra de canção, mas era dentro da cadeira de poesia brasileira. Dois ou três anos depois, eu comecei a dizer: pô, vou inventar uma cadeira chamada Canção Popular Brasileira. Mas demorava, tinha uma burocracia. Eu sei que em 91 ou 92, não tenho certeza, eu dei uma cadeira de poesia só com canção. Foi aí que apareceu, 93, por aí, 93, uma cadeira chamada Canção Popular Brasileira.

Arthur de Faria: Mais pro Guto, que é mais jovem, mas nos anos 80 já não era uma aberração falar de letra de canção em aula de português. Eu no colégio, em Gravataí, professora de português metia uns Chico Buarque, professora de inglês metia uns John Lennon violino. Não dizendo que tinha esse status, mas, assim, eram as letras tão boas que eram poesia.

Guto Leite: Eu fiquei aqui pensando também sobre uma coisa pessoal. Tem uma época aí de trabalho absurdo, no Anchieta, na UFRGS. E você ainda estava morando na casa da tua família nessa época?

Luís Augusto Fischer: Segundo ano que eu trabalhei eu saí de casa. Eu fui morar com dois amigos. 81, exatamente 81.

Kátia Suman: Com os maconheiros. (risos)

Guto Leite: Um deles é professor…

Luís Augusto Fischer: Um deles era o outro não era. 

Guto Leite: Agora tem que saber qual é. Porque um é nosso colega. (risos)

Arthur de Faria: Mas nenhum era Hare Krishna?

Luís Augusto Fischer: Não… Vocês viram agora essa nova denúncia de racismo de um porteiro negro que apanhou de um canalha? Exatamente. Era ali que eu morava. Naquele condomínio que eu chamava gentilmente de Cortiço, que era um conjunto habitacional bem popular, mas era no bairro Rio Branco, dentro de uma antiga pedreira. Eles tinham escavado o morro. O IPA fica bem em cima desse morro. Morei cinco anos ali.

Guto Leite: Uma outra pergunta que eu ia fazer, mas é um pouco de caráter geral de 84, 85 pra cá.

Arthur de Faria: Quantas vezes ele se casou? (risos)

Guto Leite:  Não, eu estava pensando assim: você deu aula pra todo mundo que estudou literatura de lá pra cá. Você tem lembrança desses alunos? Essas pessoas que passaram pela literatura e se formaram e agora são professores. Inclusive que atualmente já estão terminando carreira.

Luís Augusto Fischer: Muitas das minhas alunas já se aposentaram. 

Guto Leite: Pois é. Quer falar a respeito? 

Luís Augusto Fischer: O que que eu vou fazer?

Arthur de Faria: Eu só posso chorar. (risos)

Luís Augusto Fischer:  Quem foi o meu aluno? Nos primeiros anos, o Menuzzi será que foi meu aluno?

Guto Leite: Acho que ele foi seu monitor no curso básico. 

Luís Augusto Fischer: Foi meu monitor no básico, é. É, o João Ângelo, que era do grupo do Silvestrin, um poeta muito interessante. O Paulo Becker, que é professor lá de Passo Fundo. O Nicotti, por exemplo. O Flavinho, o Flávio Azevedo, que é professor de literatura. Eles foram meus alunos no primeiro ou no segundo ano em que eu dei aula de literatura.

Guto Leite: Nessa época você levava junto, dando aula, terminando o mestrado. O seu mestrado foi mais longo, né? 

Luís Augusto Fischer: Eu terminei o mestrado em 88.

Guto Leite: Sobre parnasianismo, depois começou doutorado sobre Nelson Rodrigues. Tudo isso sendo professor da UFRGS? 

Luís Augusto Fischer: Dando uma cacetada de aula e tal. 

Guto Leite: Então, você não tinha mestrado quando entrou?

Luís Augusto Fischer: Não. O meu concurso, esse de língua portuguesa, foi pra professor auxiliar de ensino. No meu concurso já tinha uma penca de candidatos. Sei lá, tinha uns 30 candidatos. Já era grande. E era um concurso aberto. Posso dizer com orgulho que o chefe da banca era o Luft. O Celso Pedro Luft, modéstia à parte. Mas o Luft gostava de mim também. Eu tinha sido aluno dele. Era outro mundo. Muito mais improvisado. E a Letras é uma área muito desprestigiada. Na verdade, a universidade toda era assim. Muita gente da minha geração entrou como auxiliar, lavando o tubo de ensaio, de química, sabe? O cara que me deu aula, por exemplo, na geologia, que eu conheço até hoje. Eu cruzo com ele lá no campus, o Pedro. Ele se formou e começou a dar aula como auxiliar de um professor de cristalografia, estudar os cristais. Mais nada, entendeu? O que era, ele era nada. O cara que sabia o nome dos cristais, não tinha informação. Era muito improvisado. Toda essa coisa, essa consolidação da carreira, essa estratificação nítida da carreira, é uma coisa que só na virada dos 80 para os 90 é que se configurou mesmo.

Arthur de Faria: E essa opção preferencial pelo entendimento? Essa coisa de escrever para as pessoas entenderem na contramarcha do que é a prática. E tem aquela célebre anedota que eu quero que tu conte, que eu nunca sei se foi no mestrado ou no doutorado.

Luís Augusto Fischer: Eu escrevi um trabalho sobre o Saramago, acho que foi no doutorado, e aí a professora me deu um A com uma observação. Eu tenho esse trabalho aqui guardado, se um dia precisar em juízo, eu mostro ele. Ela disse assim: teu trabalho está muito bom e tal, mas tu sofre de um mal que eu chamo de urfrgsismo. Dois pontos. Parece que tu escreve para ser lido. E eu li aquilo e disse, porra, se enganou, escreveu errado. Daí eu na maior ingenuidade do mundo, “fulana, tu esqueceu um ‘não’ aqui no meio”. E ela disse: não, é isso mesmo, tu concede muito para o leitor. Eu digo, claro que eu concedo. Sim, eu quero ser lido. Que coisa mais boba é essa? Acho que esse anti-pedantismo vem do meu pai. Meu pai era a pessoa mais antissolene do mundo. As pessoas vinham puxar o saco dele, ele saía fora.

Kátia Suman: Mas tem uma coisa Antonio Candido aí também. Onde é que ele entra?

Luís Augusto Fischer: Eu li as primeiras coisas do Antonio Candido na faculdade, eu acho que por causa do Guilhermino César, de quem eu fui aluno na graduação. Depois, quando eu fiz mestrado, o Flávio Loureiro Chaves era um bom leitor do Candido, e aí ele sugeria e tal. O Candido tem isso, era um cara é muito chão, muito comunicativo. Eu sempre tive apreço por isso. Nós fomos formados pelo Pasquim, né? Eu era adolescente, o Pasquim estava bombando. Eu ia toda semana comprar o Pasquim na banca. Aquele jeito de escrever, debochando, botando parênteses e tal.

Kátia Suman: E falando a língua que a gente falava.

Guto Leite: Ouvindo tua história antes da universidade, eu achava meio esquisito essa tua existência híbrida, de participar do Sarau e ao mesmo tempo ser professor universitário. Tem um lance de mundo muito forte. Mas agora, te ouvindo, acho que é quase inevitável. Não tinha como tu ir para um outro lugar. Digo porque tu colheu também na universidade tensões a respeito disso. Teve a tua passagem pela gestão do PT. Não sei se você quer falar um pouco disso.

Luís Augusto Fischer: Sempre teve algum atrito, porque eu escrevia para ser lido, porque era acusado de ser muito pop, não sei o quê.

Kátia Suman: E está na arena pública, né?

Luís Augusto Fischer: Estar na arena pública. Eu sempre escrevia para jornal, sempre, assim que eu pude. Também na área da literatura, os professores, o Guilhermino, o Flávio e o Dacanal escreviam em jornal. Eu era aluno dos caras que escreviam em jornal, aquilo ali era para ver. Aquilo que era ser professor. E o Luft, também. O Luft, que era um alemão todo sério, também escrevia para jornal sempre. O negócio da prefeitura foi isso. O Olívio foi eleito em 88, sucedendo o Collares, que tinha feito uma gestão tampão de três anos na prefeitura de Porto Alegre. O primeiro prefeito de Porto Alegre eleito foi o Collares. E aí o Olívio entra no governo. Eu nunca fui filiado a nenhum partido, mas eu era muito próximo aos caras do PT, com muitos amigos e tal. Então, quando o Olívio foi eleito, o secretário de Cultura foi o Pilla e o vice dele era o Winkler, que é meu camarada. E tinha sido meu contemporâneo na faculdade. O cara tinha feito Sociologia e fazia Letras. E o Winkler me sondou. “Escuta, tu não quer ser coordenador do livro?”. O governo do Olívio era o primeiro. E eu digo: “olha, não que eu queira, mas se quiser que eu ajude, eu ajudo. Não precisa ter cargo nem nada.” Realmente não tinha nenhuma pretensão disso. Aí o meu nome foi levado. Naquele momento o PT era todo quadradinho. Então aí o meu nome foi bombardeado porque eu não era filiado. Aí quem é que botaram? Um filiado de fé: Fernando Schuler. (risos) No comments. Depois é o cara que, enfim, foi para o PSDB, virou um liberal. Enfim, nada contra.

Arthur de Faria: Mas era uma prefeitura de sonho, né? Era tu, Luciano, Branco e Fernando Schuler.

Luís Augusto Fischer: Mas isso foi na segunda.

Kátia Suman: Foi no Tarso já.

Luís Augusto Fischer: Aí eu ajudei muito. Isso eu tenho até também documentado. Eu não conhecia o Fernando, conheci ele naquele contexto. E ele disse: pô, cara, o que a gente pode fazer aqui na literatura? Me lembro que eu sentei com ele, dei um monte de ideia e tal, eu ajudei ele a fazer eventos.

Arthur de Faria: Ele era pastor ainda, eu acho.

Luís Augusto Fischer: É, estava se preparando para ser pastor, algo assim. E aí quando foi na segunda gestão, o Tarso eleito em 92, aí eu fui convidado para ser coordenador do livro. Não sendo filiado. Eu topei. Era um grupo, pô, a nossa geração chegou ali. A gente tinha trinta e poucos anos. Então era o Luciano Alabarse no teatro, o Branco na música. Eu não sei se já era o primeiro, mas o Jorge Pozzobon, o cara do “Vocês brancos não tem alma”, da área da memória. Não, era Ana Meira depois do Pozzobon. Humberto Rodrigues, de cinema. O Fernando Schuler na Usina e tal. Foi um negócio sensacional. A nossa geração aqui em Porto Alegre chegou no poder numa época, sabe, muito boa. 

Arthur de Faria: Tu perdeu isso [falando com o Guto Leite]. Porto Alegre parecia inteligente, cara.

Guto Leite: Peguei o finalzinho.

Kátia Suman: Teve um momento bem bacana.

Tarso, Fischer e Luis Eduardo Utzig, 1995

Luís Augusto Fischer: Todo mundo querendo fazer coisas, o orçamento participativo começando, e aí naquela gestão se consolidou. Daí é coisa do atrito, começa a ter bronca. Por exemplo: tinha vários caras da universidade que foram trabalhar na prefeitura, faziam um acordo no seu departamento. Era assim, eu continuo professor, continuo ganhando salário de professor, mas eu vou ser também diretor da divisão tal. E o departamento dizia, legal, tranquilo. O que aconteceu comigo? Não. Tem que sair daqui. Não, pode ficar nas duas coisas. Eu também não queria sair. Eu queria continuar dando aula, me disseram que não. Então, acho que eu fiquei um semestre meio indo e voltando, daí fiquei fora desse tempo todo. Era mais um motivo. Aquela história que eu te contei… Todo mundo que não era petista, já naquela época, ou que era antipetista, já me olhou também assim, achando… 

Kátia Suman: Tá, mas eu não entendi, tu ficou afastado da universidade? 

Luís Augusto Fischer: Sim, por três anos. Três anos e pouco. Porque não me deixaram. Não me deixaram. Na verdade, vários colegas de apartamento…

Arthur de Faria: É licença interesse? 

Guto Leite: Não, tem uma aplicação específica. 

Luís Augusto Fischer: Cedência.

Arthur de Faria: Aí tu não recebe, mas tu tem o lugar garantido, é isso?

Kátia Suman: Fica garantido a vaga.

Luís Augusto Fischer: O meu chefe na prefeitura era o Tarso e o meu chefe na UFRGS era o Hélgio Trindade. Dois caras completamente homo sapiens. Então, enfim, não tinha culpa. O que eu ia falar? 

Guto Leite: Tu disse “aquele negócio que eu te contei”. 

Luís Augusto Fischer: Ah sim, do Candido. A história do Candido. Eu conheci o Candido ao vivo em 92, no fim de 92. O Candido veio a Porto Alegre num evento que eu tinha ajudado a programar junto com o Flávio Azevedo, que trabalhava lá. Um troço chamado “Roteiros novos para as velhas leituras”. E aí o Candido foi convidado para ser o palestrante de abertura. O Candido era petista e tal, não sei o quê. E era “O” Candido. Ele veio numa sexta-feira para dar aula sábado de manhã, que o curso que a gente fazia era sábado de manhã lá na Renascença. Nessa sexta-feira à noite teve uma recepção para o Candido. Uma casa lá na Mostardeiro. Bah. E eu fui lá. Eu era um guri ainda, tinha 34. Porra, o Candido, né? Mas estava todo mundo, sabe? “Tout” Porto Alegre estava lá. Todos os escritores.

Arthur de Faria: Todo mundo. Todo mundo entre aspas.

Luís Augusto Fischer: Exatamente. E eu lá. O Candido ali, entendeu? E todo mundo muito se pavoneando. E agora, eu como velho interpretando, todo mundo com medo de falar com o velhinho. Falar uma bobagem. Aí numa hora eu chego, o Candido sozinho sentado na ponta de um sofá. Eu já vi que ele estava meio deslocado, né? Mas sozinho, sozinho, literalmente assim, paradinho. Aí eu sentei, eu aterrizei do lado dele. Professor, pô, bababá, que honra e tal. E ele, muito querido, começou a conversar comigo. Me perguntou: o que é que tu fez? O que é que tu estuda? Aí eu contei para ele. Fiz uma dissertação de mestrado sobre Parnasianismo. Estudei tal coisa. Enfim, aluguei o velho. Fiquei o resto da noite com ele, praticamente. Claro, depois tinha mais gente, que foi chegando. Na manhã seguinte, o Candido foi fazer uma conferência lá no Teatro Renascença. Também toda a Porto Alegre letrada estava lá. Todo mundo. E eu, evidentemente, estava lá também. O Candido fazia uma palestra, assim, de velho sábio, sabe? Era “Fluxos e refluxos da literatura brasileira”, uma coisa assim. “Maré e contramaré”, sei lá. Enfim, um passeio. Os mineiros e depois não sei o quê. E vem vindo, cronologicamente. Daqui a pouco ele disse assim: bom, agora eu vou falar do Parnasianismo e eu tenho que pedir licença para o Fischer, que é quem entende do assunto. Eu fiquei muito vaidoso, mas eu senti, sabe?, aqueles olhares, assim, no meu pescoço. Aí eu digo, pô, professor, muito obrigado. [risos] É uma coisa interessante isso, que até eu, por outro lado, também já tenho me dado conta, é que eu sou de uma geração meio intermediária, sabe? Os caras que entraram na universidade no final dos anos 60, começo dos 70, foram meus professores jovens ainda, tipo Dacanal, Flávio, Tânia Carvalhal. Mas na minha geração, meio que só eu. Só tem eu na área da literatura. Depois começou a aparecer mais gente um pouquinho depois de mim. Então eu meio que sou que nem os velhos, os velhos pra mim, né? Enfim, não importa muito, mas é uma sensação meio estranha, assim, de não ter muito parceiro, né? Quando eu cheguei, os caras já estavam ali, todo mundo, sei lá, o Antônio Hohlfeldt, por exemplo, o João Gilberto Noll, o Caio Fernando Abreu. Todos os caras dez anos mais velhos do que eu. Não é tanto assim, né? Mas já não era a minha geração, né? E a minha mesmo, também já não era do, sei lá eu, Silvestrin, entendeu?

Antonio Candido, Fischer e Luis Alberto Nunes Alves, USP, 2004.

Arthur de Faria: Tem um livro maravilhoso do Ricardo Alexandre, jornalista de rock, que é sobre os anos 90, que o título é “Cheguei a tempo de ver o palco desabar”.

Luís Augusto Fischer: É mais ou menos isso. 

Arthur de Faria: Tá, e essa sensação agora… 

Luís Augusto Fischer: Depois de velho? 

Arthur de Faria: Não, depois de velho, mas assim… Eu acho que tem dois impactos grandes pra quem dá aula, né? Recentes. Um é a possibilidade das pessoas conferirem tudo o que tu diz com o Google na mão. E a outra é o impacto da coisa da pandemia, em que não parou de dar aula e ficou online. E como é que é voltar pra captar a atenção das pessoas. Fale mais sobre isso, como diria minha psicanalista.

Luís Augusto Fischer: Dá pra botar um terceiro aí, que é a coisa do movimento identitário, que é muito forte também. O que eu sei falar sobre isso? Não sei se eu sei falar direito. Eu me lembro quando eu comecei a me irritar com gente mexendo no celular na aula. Eu lembro que uma vez, já faz sei lá quantos anos, uma vez eu disse… Porque às vezes eu brigo com os alunos na aula. É raro, mas acontece muito. O cara mexendo no celular, eu digo: tchê, eu tô aqui falando, eu tô me esforçando, tu não tá entendendo o que eu tô falando? Aí ele disse: Não, professor, eu tô ouvindo, eu fui conferir aqui uma data que o senhor falou. E eu digo: puta que pariu, não tinha me dado conta, rapaz. E aí, enfim, mudou, né? Eu nem sei mais como é que era antes, sabe? Não sei, só entrou muito tranquilo, assim.

Arthur de Faria: E isso não é um problema, né? 

Luís Augusto Fischer: Não… 

Arthur de Faria: Porque tem muita gente apocalíptica.

Guto Leite:  Tem professores mais novos do que o Fischer, que são mais alarmados com isso. O Fischer participou de um evento agora recente, né? E aí no evento, todo mundo falando: oh, o mundo acabou, O avesso da pele, meu Deus. E o Fischer: não, peraí, pô. Vocês são de esquerda, a gente tá nisso há 30 anos.

Luís Augusto Fischer: É isso aí, cara. É a primeira vez que tem escola pra todo mundo no Brasil. Primeira vez que tem. Primeira vez que tem uma universidade tão expandida como tem agora. Como assim que acabou? Tudo que a gente queria agora tem. Quando eu tava me formando, era de vanguarda a gente reivindicar que a escola aceitasse o jargão, a linguagem das ruas. Eu dizia, pô, tu tem que acolher, o cara fala, as casa amarela é bonita, tu tem que dizer, porque, tá bom, essa é a tua fala, vou te dizer, tá ok, eu vou te dizer, tem uma outra forma que é assim, as casas amarelas são bonitas. É Luft, o velho Luft defendendo isso aí. E agora, tá todo mundo vivendo.

Arthur de Faria: Mas até hoje tem dessas…

Luís Augusto Fischer: Eu nunca fui de vanguarda e nunca fui apocalíptico. Talvez tenha isso no fundo. Lembro do Aníbal Damasceno falando, quando o Juremir fez aqueles troços do pós-moderno, acabaram as narrativas. Aí o Aníbal dizia assim: esse troço de decretar o fim do mundo é bom, mas, pô, e se mundo não acaba? Com que cara que o cara fica? [risos] Essa é a minha família, esse deboche. Para com isso. Mas esse troço agora do identitarismo é o que eu acho que é mais pesado, porque se tem criado… Eu não sinto muito isso em aulas, nunca me senti intimidado. Mas certamente eu calculo mais para falar, eu presto mais atenção. Porque eu continuo acreditando no esclarecimento, falar das coisas e tal. Eu tenho aquela convicção de que a palavra cão não morde. A gente não pode se deixar afogar em água tão rasa assim. Eu não brinco mais contigo se tu não disser essa palavra ou se tu disser aquela palavra. Acho que tem a ver com uma ideia de tu preservar um ambiente de dúvida, de complexidade. Acho que essa é a chave. Em vez de tu ter um ambiente de certeza em que tu vai só botar a sua carta contra a carta do outro, que é um pouco o que tem acontecido, acho que tu tem que dizer, bota as tuas cartas e bota as minhas e vamos conversar. Lá em Princeton aconteceu isso, algumas vezes. Toda essa coisa de identitário está no primeiríssimo plano. Tinha uma aluna muito inteligente, uma brasileira, formada em História, fazendo um doutorado lá. Negra, uma mulher negra. Eu vi que ela me tratava como um certo sestro, que tinha alguma coisa que não fluía. Enfim, tocando e tal. Eu me lembro que um dia, falando do Noel Rosa, não sei qual era o contexto, mas apareceu o Noel Rosa. Eu digo, olha, por exemplo, “Feitiço decente”, do Noel Rosa. O Noel Rosa fala do feitiço, mas ele vai decompondo o feitiço da esquina, dizendo que a vila tem um feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém, que nos faz bem. Quer dizer, é um feitiço, mas não é igual ao que esses caras fazem na encruzilhada. E eu falando isso, mas não falei isso para agradar, falei isso porque é o que está lá. Ela me olhou assim, como se fosse uma revelação. Ela viu que eu estava do lado dela. E aí mudou, girou a chave. Tinha uma preliminar que, do ponto de vista dela, eu não tinha vencido. Venci naquele momento. Uma bobagem, enfim.

Arthur de Faria: É, mas é um pouco, a gente já falou sobre isso, aquela coisa assim, a nossa sensação de homem branco, hétero, cis, de minha idade é muito assim, tá, é exagerado esse negócio, mas aguenta, filho. Aguenta. Todos os outros que não somos nós aguentaram tanto tempo e continuam aguentando. Não te queixa, porque tu está há muito menos tempo nisso. 

Luís Augusto Fischer: Sim, eu tenho isso, mas ao mesmo tempo eu já tenho idade para ter visto muitas modas acadêmicas. Então as modas, elas vêm e vão também. Claro que não. Isso não é apenas uma moda acadêmica. Não, não é isso. Mas uma parte disso é moda acadêmica. De repente, o cara vira um novo paladino. Ele sabe usar as palavras certas. 

Arthur de Faria: É o que vai decantar depois.

Guto Leite: E coloca alguns objetos fora de crítica. Não pode falar da literatura da Conceição Evaristo porque ela é, a princípio, a melhor literatura.

Kátia Suman: Não, eu não posso falar de feminismo porque os feminismos e eu não tenho letramento. Tu tem que ser meio que PhD em todas as manifestações.

Luís Augusto Fischer: Eu não posso falar da Conceição Evaristo porque eu não sou mulher, não sou negro. Então vamos pensar o contrário. A Conceição Evaristo não pode falar sobre o Shakespeare? Claro que pode, né? Como que não? Mas eu acho que um pouco é isso. Tem essa… 

Kátia Suman: É um exagero do contrafluxo.

Arthur de Faria: Exatamente.

Luís Augusto Fischer: É uma pancadaria agora porque os caras estão tomando a palavra. Isso, vai decantar. Tudo decanta. Não sei se vai ser na minha gestão ainda. [risos]

Guto Leite: Aqui somos três ex-orientandos. Sabe quantos orientandos tu teve? 

Luís Augusto Fischer: Ah, não sei. Ah, orientando de verdade assim…

Arthur de Faria: Quando é que tu começou a fazer isso?

Luís Augusto Fischer: Orientar? Bom, mestrado e doutorado foi só depois do meu doutorado que foi em 98. Não faz tanto tempo assim. Mas antes tinha muita orientação disso que depois passou a se chamar TCC. Não chamava nada. Monografia. Eu fiz uma vez uma conta, mas faz muitos anos e não corresponde mais. Mas eu ia dizer assim, tem muito orientando, mas ao mesmo tempo orientando com quem eu tenho interlocução assim como eu tenho com vocês… Uma coisa curiosa que eu tenho é que eu tenho muito orientando da minha geração. Isso é uma coisa que é engraçada, né? Tu pega assim, o Karam. Eu fiz uma lista até esses dias. A Kátia. A Heloísa. A Amanda. A Amanda Costa.

Fischer, Nei Lisboa e Arthur de Faria, 2002

Kátia Suman: É que tu acolhe os velhinhos. [risos]

Arthur de Faria: É, isso aí é tudo herança do teu lance lá da Santa Casa. [risos]

Luís Augusto Fischer: Não, mas tu sabe que tem uma coisa que isso é convicção minha. Desde que eu comecei a dar aula lá na faculdade eu dizia e digo isso pros alunos. Vocês estão aqui, vocês são usuários de um serviço público. Vocês têm direito a coisas aqui. Se alguém fizer cara feia pra vocês, façam uma cara feia de volta. Eu tô dizendo isso porque eu era muito ingênuo quando eu entrei na faculdade, sabe?

Guto Leite:  Tem aquela história do Dacanal que é muito boa, né? Da aula inaugural da Canal, não sei se você quer contar…

Luís Augusto Fischer: Ah, sim, é. Eu tive uma briga com o Dacanal no auge dele, em 78 uma coisa assim, eu fui aluno dele. E quando eu entrei na Letras eu queria estudar literatura, eu já sabia que era isso que eu queria. Primeira aula de literatura brasileira era com o Dacanal. Aí chego na aula, a Elisa Henkin, a irmã do Léo Henkin, era minha colega de aula. A gente tava bem junto nessas coisas. Chegamos na aula, tinha um recado no quadro do Dacanal, dizendo assim… Pô, e nós queríamos ter aula com ele, era um cara famoso e tal. A aula de literatura brasileira um, tem que ler os seguintes livros. Aí tem uma lista lá de 10 livros, e dizia assim: daqui a três semanas eu volto pra começar a falar sobre esses livros. Aí eu digo, pô, mas é o fim da picada, tchê! Eu quero ter aula, que história é essa, né? Mas aí também tem essa, naquela hora eu já tinha passado pela Geologia, já tinha sido presidente do centro acadêmico. Então eu já não tinha medo, isso é um negócio importante. Eu não era um aluno calouro, entendeu? Ah, sabe, eu sou filho de um cara que veio do interior, entendeu? Daí três semanas depois nós vamos pra aula, algumas leituras feitas, e o Dacanal diz assim: bom, vou começar fazendo uma discussão, eu quero saber o seguinte, o que é arte?

Kátia Suman: Porra, não fode.

Luís Augusto Fischer: Aí alguém levantava a mão e dizia: a arte é um símbolo. Tentava alguma coisa assim, aproximativa, daquelas que se tu é um professor, tu bota no colo, conversa e tal, né? E ele dizia: mas que símbolo, rapaz? Que história é essa de símbolo? Símbolo é a placa de trânsito. Tu acha que a arte é igual à placa de trânsito? Porra, não era isso que o cara tava dizendo, distorcendo, sabe? E eu puto, assim. Aí outro dizia: a arte é uma expressão social. Tentativa, assim. E aí ele dizia, como assim expressão social? Tu quer dizer que uma greve do ABC, que estava começando, greve do ABC é arte, que história é essa? E aquilo começou a me subir, eu estava muito bravo, muito bravo. E naquela época a gente fumava em aula, os alunos também fumavam, eu estou fumando em aula nessa altura. Todo mundo muito acuado, daí ele diz: é, na verdade, nem sei o que eu estou fazendo aqui, eu devia ir lá cuidar das minhas terras lá, em Catuíbe, estou perdendo meu tempo aqui. Aí eu disse assim: mas por que o senhor não vai pra lá então e pede para alguém vir aqui dar aula, que a gente quer ter aula? Por que o senhor não vai pra lá? Puto, tremendo. Pânico. O que ele fez? Ele fez assim, bota a mão na cara e começa a rir. A rir como um demente. [risos] E aí eu digo, o que é isso? Onde é que nós estamos? E aí, sei lá, meio que se desarticulou a aula, ele dispensou todo mundo, uma coisa assim. Eu fui falar com ele, primeira aula com ele, eu disse: tá, professor, eu entendi, o senhor queria que a gente reagisse, foi isso, o senhor estava nos provocando, tá bom, eu reagi, mas eu quero lhe dizer o seguinte, tem gente muito boa na aula que não reagiu, mas que tem valor, sei lá, porque eu falei uma coisa assim. Tinha outro camarada que era nosso colega, o Arnoldo Doberstein, o cara foi professor de História na PUC muitos anos, um cara de qualidade. Aí o Dacanal me olhou e disse assim: como é que é o teu sobrenome mesmo? Fischer? Tu deve ser terceira ou quarta geração de migrante. Tu nasceu ali, ou no Vale do Rio dos Sinos ou no Vale do Taquari, tu deve ter formação cristã, tu é católico, né? Então eu vou te dizer uma coisa, tu conhece a parábola do semeador? Eu disse: sim, conheço. É o seguinte, o semeador saiu a semear, jogou a semente e tal, parte caiu sobre a pedra, secou, parte caiu entre os espinhos, cresceu e foi sufocada, e uma pequena parte caiu em terra boa e deu fruto cem por um. Eu sou o semeador, eu só salvo os salváveis. Uma coisa, sabe, subdarwinismo. [risos] Eu só salvo os salváveis, como assim? Os outros não mereciam ser salvos? E com tudo isso ele foi um professor muito importante na minha história, um cara que tinha régua e compasso. 

Kátia Suman: Super performático.

Arthur de Faria: E eu fui colega do Dacanal como aluno do Fischer.

Luís Augusto Fischer: Ele se aposentou sem ter feito mestrado e doutorado. Eles se aposentou e foi fazer o doutorado. E eu orientei ele. Os velhinho.

Arthur de Faria: Então tu imagina a maravilha, ele levantando a mão pra falar: professor, se o senhor me permite discordar. [risos]

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