Entrevista

Wrana Panizzi: “O conhecimento é uma obra coletiva”

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Wrana Panizzi: “O conhecimento é uma obra coletiva” Foto: Felipe Rodrigues

Recém-aposentada, a ex-reitora da UFRGS Wrana Panizzi lança um livro junto com alunos de sua última disciplina e propõe reflexões sobre a cidade e o planejamento

Reitora da UFRGS por oito anos e uma das professoras mais antigas do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da universidade, Wrana Panizzi está se aposentando. Para a despedida das salas de aula, ela organizou o livro “A cidade e suas anamorfoses”, cujo lançamento ocorrerá no dia 29/04, na livraria Cirkula.

Licenciada em Filosofia, bacharel em Direito, mestre em Planejamento Urbano e Regional e doutora em Urbanismo e Ciências Sociais ao longo de uma trajetória de quase cinco décadas no ensino superior, Wrana se vê agora no “entardecer da vida”. Engana-se, porém, quem a imagina em um retiro calmo e pacífico: “Não quero ter um futuro curto”, avisa ela, que já aproveita o tempo para uma série de releituras, a começar pela literatura e, também, da cidade que está à sua volta. 

Nesta semana, Wrana recebeu a reportagem da Matinal para uma entrevista que durou quase uma hora – o que acarretou no atraso de outros compromissos, mas garantiu o tempo para completar uma série de reflexões. Na conversa, a professora falou de sua trajetória e o que espera deixar de legado, além de comentar sobre a cidade e seu planejamento e, claro, o papel da educação nesta construção que – como enfatizou diversas vezes – é coletiva.

Professora, o livro é sua última contribuição pública e o que exatamente a senhora espera da sua aposentadoria?

Eu diria, sim, que é uma das minhas contribuições e feita, o que muito me orgulha, com os alunos juntos. É o resultado do que foi a última disciplina que eu ministrei. Embora agora eu seja uma professora convidada do Propur, eu até posso ter uma disciplina, mas não sei muito se eu quero ficar vinculada a uma disciplina em si. Eu tenho alguns interesses, de poder fazer com que esse meu tempo de aposentadoria me permita fazer muitas das coisas que eu não fiz quando não estava aposentada. Esses dias eu estava lendo um artigo bem interessante sobre uma mulher artista, aos 102 anos, e ela dizia que estava na tarde da vida. Então agora é para o anoitecer. Eu estou na tarde vida, né? E eu quero bem essa tarde da vida, onde a gente é um pouco mais lento, onde a gente mantém a confiança, e também toma consciência da quantidade de coisas que existem ainda para serem aprendidas. Então estou focando em algumas coisas, por exemplo: estou me dedicando a ler e reler clássicos da literatura. Agora o que eu quero fazer são coisas que mostrem que o conhecimento é alguma coisa coletiva. Sempre se fala “ah, torre de marfim do grande pesquisador, do grande intelectual”. Eu não me acho uma grande intelectual, nem uma intelectual. Eu me acho uma pessoa que trabalha com conhecimento, com a produção de conhecimento. Eu tenho cada vez mais consciência de que isso é uma produção coletiva. Não só pela junção de todos aqueles que pensaram, fizeram, escreveram e produziram. Mas de que ela pode ser produzida junto. E aí não tem muito essa separação entre se você está na manhã da vida ou se você está na tarde da vida, certo? Eu acho que é muito bom. Para mim, é fundamental poder reencontrar ou conviver com os que estão na manhã da vida. E outra coisa: não ficar tão presa à ortodoxia do conhecimento. Buscar a natureza das próprias coisas e, para mim, a cidade é esse objeto.

O livro trata sobre a cidade, sobre o planejamento. Gostaria que a senhora apresentasse um pouco da obra e falasse da sua relação com o planejamento. 

É uma reflexão conjunta, que foi escrita com uma turma pequena. E eu me dei conta que precisamos de outros paradigmas para poder entender a complexidade da cidade, que nós somos, ficamos e estamos ainda muito apegados a modelos, a respostas, como fizeram em outros países ou a um modelo, que às vezes é mais teórico do que prático, que a materialidade – e a cidade é a materialidade da vida urbana –, tem várias outras. Um dos grandes avanços já foi quando eu comecei a aprender isto lá no início, quando eu fiz o Propur. O conhecimento não é, e com isso se faz uma crítica a um funcionalismo, alguma coisa fechada. Muito pelo contrário: o conhecimento atinge a diferentes áreas do próprio conhecimento. Conhecer é tratar de várias áreas. Não pode olhar para uma cidade e só olhar, como se via no começo, a parte físico-territorial. Ela é muito mais que um território, ela é um território que tem gente, que tem relações, que tem uma cultura, uma política, um território que é essa complexidade. A cidade é coletiva e ao mesmo tempo onde a gente vive individualmente, porque a cidade é um lugar da vida no singular e da vida no plural. Nós temos a nossa vida individual na cidade, mas temos sobretudo a nossa vida coletiva. Nós representamos um coletivo, então o conhecimento é uma obra coletiva também. Para mim, essa disciplina, que era com estudantes que eram colegas praticamente, teve esse sentido de ver este coletivo e ver este interdisciplinar ou transdisciplinar. 

Você me perguntou do planejamento. Eu trabalhei muito com planejamento urbano. Mas o que é planejamento? O planejamento é feito por alguns atores: o estado com suas políticas públicas; a academia, universidade, com  o conhecimento, com sua visão ortodoxa de teoria, certo? E a população? Os instrumentos teóricos científicos e práticos certos não deram as respostas para a grande problemática, o grande problema que uma cidade abrange, que ela contém. Neste livro, convidei dois professores. O Enéas de Souza, economista que também é um professor e intelectual entendido de cinema. Ele fez uma aula sobre a cultura e a cidade. E a professora Ester Limonad, que é do Rio de Janeiro e tem um trabalho muito interessante sobre o planejamento, com vários autores de outras universidades. Planejar pra quê, por quê, para quem? Para mim, que trabalhei muito com educação e gestão da educação enquanto gestora, vi muito isso. Que universidade nós queremos? Que universidade temos que planejar, para quê, por quê? Para qual sociedade? E nós muitas vezes esquecemos os nossos planos. É muito bonito, por exemplo, querer fazer uma grande reforma do centro da cidade, e daí?

Foto: Felipe Rodrigues

Voltaremos à universidade, mas preciso lhe perguntar: como a senhora está vendo o planejamento de Porto Alegre atualmente? O que a senhora observa do planejamento urbano a partir da sua experiência?

Bom, eu acho que o planejamento urbano está sendo feito no contexto da predominância de um determinado sistema político econômico e social vigente. Nós estamos vivendo em pleno neoliberalismo. Então neste contexto, o que é o planejamento? O planejamento é um instrumento, mas é um instrumento que não é neutro. Nós estamos partindo de uma ideia que o planejamento é um conjunto. “Vamos criar leis”, “vamos criar instrumentos”, “vamos criar normas”, regular, regular, regulamentar etc. E as pessoas não estão sabendo do que estão fazendo. Eu não sou a pessoa que tem trabalhado mais com essa observação e análise do atual plano. Não tive como participar muito dessa discussão que, por exemplo, o IAB faz. Mas eu fiquei muito impressionada, esses tempos, em uma reunião em que estava um representante de uma ocupação famosa aqui de Porto Alegre. Este cara, quando falava, mostrava que a cidade tem múltiplos atores, que a cidade tem um coletivo, mas que ela tem suas especificidades também. Eu não sou a pessoa que estou acompanhando de perto as discussões. Mas vejo o seguinte: estamos construindo o Centro para quem? Nós estamos planejando para quê, para quem? Claro que nós queremos produzir riqueza. Mas qual é o processo de produção de riqueza que nós queremos valorizar? O que nós achamos que ele é capaz de fazer com que cada um se sinta cidadão, se sinta produtivo no verdadeiro sentido da sua cidade, do seu lugar, do seu espaço. Mas que também ele seja produtor, mas um usuário também desse mesmo espaço. Cito a Ermínia Maricato: não nos faltam planos, não nos faltam políticas. Ela diz: não se mexeu em algumas coisas estruturais. Os nossos planos são discursos bonitos – a Maricato também diz isso. Quem não quer uma cidade para todos? Eu! Nessa ideia do plano discurso, a palavra é muito importante se bem dita, se verdadeira expressão de uma ideia, de uma convicção, de um valor. Se não, ela se põe ao vento.

Qual é o papel de uma instituição do porte da UFRGS? Que papel ela tem na criação de políticas públicas, de ações para a cidade? 

Do ponto de vista urbano e do próprio plano educacional, vejo a universidade como uma instituição. Ela não é um departamento, muito menos uma empresa. Ela é uma instituição pautada em valores, com objetivos e metas que são de longo alcance e sobretudo de natureza civilizatória, de natureza transformadora, porque o conhecimento é isso que vai produzir. Sobre as políticas públicas, eu penso: Porto Alegre fez 252 anos esses dias. E a universidade, com a faculdade de arquitetura que tem, com as outras faculdades que tratam da vida das pessoas na cidade, não deveria fazer de quando em quando uma grande discussão sobre a cidade que nós queremos? Vai ter agora uma eleição e qual é agora esta cidade? Nisso a universidade tem um papel que é fundamental. Ela não faz a política, mas oferece os fundamentos e os princípios de uma política que seja realmente inclusiva. Temos que recuperar o sentido das palavras e bem empregá-las. A população é capaz de entender que você não transforma uma cidade como uma coisa. Uma cidade como Porto Alegre, quando que ela foi uma cidade reconhecida internacionalmente? Quando ela fez uma reunião e chamou outras pessoas [referindo-se ao Fórum Social Mundial]. Nem tudo que o fórum disse foram as melhores coisas. O mundo funciona a partir de posicionamentos de valores que a gente tem, e isso é o que? São posicionamentos políticos e ideológicos de qual cidade que nós queremos, de qual política de habitação que nós queremos. Nós vamos continuar fazendo o quê? Transformando algumas áreas lá não sei aonde em pequenos apartamentinhos sem esgoto, sem isso, sem aquilo? 

Ampliando um pouco a pergunta anterior: pela produção de conteúdo em suas universidades, não só a UFRGS, como PUCRS e Unisinos, por exemplo, Porto Alegre sugere ser uma cidade vibrante. Ao mesmo tempo, a cidade parece estar encolhendo ou literalmente encolhendo, conforme o Censo. Tem alguma relação que precisa ser aprimorada entre a cidade e sua população e seus centros universitários, sejam eles públicos ou privados? 

Acho que deveria ter muito mais. Acho que nossas universidades muitas vezes se preocupam com seus status, suas métricas. Que métrica que nós usamos para dizer que esta é uma grande cidade? A nossa métrica não pode ser só quantas pessoas nós formamos. É quantas pessoas nós formamos que se tornaram lideranças, que são trabalhadores, que constroem. Eu não sou contra o empreendedorismo. Mas ele só é quanto menos se gasta para produzir mais. Produzir mais coisas, mas para quem? A cidade tem tudo. Ela tem centros educacionais. Embora, eu ache que as universidades estão se encolhendo um pouco. Nós, internamente, temos que ter consciência disso. Eu acho que falta um pouco mais amalgamar. Nós estamos às vezes fazendo correndo para sair bem nas provas, para corresponder a exercícios da métrica, a parâmetros estabelecidos por uma métrica. Métrica que se reveste às vezes. O quanto tem de cultural dizer quantos alunos nós formamos? Agora, o que corresponde é dizer o seguinte: estes alunos têm capacidade, têm visão de que aquilo que eles fazem é muito mais importante do que pendurado no diploma com seu currículo atrás. 


Lançamento
A cidade e suas anamorfoses
29/04/2024, segunda-feira, 18h
Livraria Cirkula (Av. Osvaldo Aranha, 444 – Porto Alegre)


Tiago Medina é um dos fundadores da Matinal e editor da Matinal News. É mestrando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS.

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