Filosofia na vida real

Até que a razão os separe. Cena 6: Rousseau

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Até que a razão os separe. Cena 6: Rousseau Nesta seção, ao longo de dez ensaios, o professor de filosofia da UFSM propõe uma curiosa incursão filosófica sobre nada menos que o casamento. A cada semana, um capítulo novo, a partir de pensadores e pensadoras que se dedicaram ao tema. Leia aqui o anterior, sobre Mary Astell. O primeiro encontro com Madame de Warens. Desenho de Steuben e gravura de Lefèvre, por volta de 1830. Fonte: Musée Historique de Vevey. Nas Confissões, Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) afirma que Emílio é não apenas a sua obra mais importante, mas também a porta de entrada para compreender a sua posição filosófica. O complicado é saber qual posição filosófica. O pensamento de Rousseau aparece em camadas geológicas distintas conforme avançamos na leitura de seus textos. E este é um de seus encantos. Rousseau apetece variegados paladares.  Para delinear as suas visões sobre a instituição do casamento, quatro obras são fundamentais: Narciso, ou o amante de si mesmo, Emílio, Júlia ou a Nova Heloísa e Confissões. Como não temos fôlego para tudo, escolho Emílio para o começo da conversa. Uma conversa que se assemelha a um monólogo entre os sexos, onde tudo que é esperado de Sofia, futura esposa de Emílio, é que ela deva agradá-lo, servi-lo e cuidar de sua prole. Aliás, tão numerosa quanto possível, já que os métodos contraceptivos eram vistos com reservas por Rousseau.  Você aí, não esperava topar com laivos reacionários do arauto da igualdade e da liberdade? Então prepare o pano para enxugar o ranço desta pérola do livro 5 de Emílio:  Na união dos sexos cada qual concorre igualmente para o objetivo comum, mas não da mesma maneira. Dessa diversidade nasce a primeira diferença assinalável entre as relações morais de um e de outro. Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco. Estabelecido este princípio, segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem. Se o homem deve agradar-lhe por sua vez, é necessidade menos direta: seu mérito está na sua força; agrada, já, pela simples razão de ser forte. Não se trata da lei do amor, concordo; mas é a da natureza, anterior ao próprio amor. Me arrepia os pelos o tour de force retórico de um dos slogans mais batidos Do Contrato Social: “O homem nasceu livre, e em toda parte vive acorrentado”. Arrepios amplificados quando contrastado com outra tirada, que nunca é demais recordar, da poderosa Astell: “Se todos os homens nascem livres, então como todas as mulheres nascem escravas?”  É no mínimo paradoxal pressupor que a desigualdade entre homens e mulheres é natural. É um paradoxo em especial para alguém que dedicou tantas páginas e tutano para encontrar as origens da desigualdade entre os “homens”.   A resistência para conceber qualquer espécie de comando ou poder para as mulheres no espaço doméstico produz extravagâncias. Montesquieu, para malharmos outro republicano de uma quebrada vizinha, considerava razoável que mulheres comandassem impérios, mas não o próprio lar. Segura essa […]

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Nesta seção, ao longo de dez ensaios, o professor de filosofia da UFSM propõe uma curiosa incursão filosófica sobre nada menos que o casamento. A cada semana, um capítulo novo, a partir de pensadores e pensadoras que se dedicaram ao tema. Leia aqui o anterior, sobre Mary Astell. O primeiro encontro com Madame de Warens. Desenho de Steuben e gravura de Lefèvre, por volta de 1830. Fonte: Musée Historique de Vevey. Nas Confissões, Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) afirma que Emílio é não apenas a sua obra mais importante, mas também a porta de entrada para compreender a sua posição filosófica. O complicado é saber qual posição filosófica. O pensamento de Rousseau aparece em camadas geológicas distintas conforme avançamos na leitura de seus textos. E este é um de seus encantos. Rousseau apetece variegados paladares.  Para delinear as suas visões sobre a instituição do casamento, quatro obras são fundamentais: Narciso, ou o amante de si mesmo, Emílio, Júlia ou a Nova Heloísa e Confissões. Como não temos fôlego para tudo, escolho Emílio para o começo da conversa. Uma conversa que se assemelha a um monólogo entre os sexos, onde tudo que é esperado de Sofia, futura esposa de Emílio, é que ela deva agradá-lo, servi-lo e cuidar de sua prole. Aliás, tão numerosa quanto possível, já que os métodos contraceptivos eram vistos com reservas por Rousseau.  Você aí, não esperava topar com laivos reacionários do arauto da igualdade e da liberdade? Então prepare o pano para enxugar o ranço desta pérola do livro 5 de Emílio:  Na união dos sexos cada qual concorre igualmente para o objetivo comum, mas não da mesma maneira. Dessa diversidade nasce a primeira diferença assinalável entre as relações morais de um e de outro. Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco. Estabelecido este princípio, segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem. Se o homem deve agradar-lhe por sua vez, é necessidade menos direta: seu mérito está na sua força; agrada, já, pela simples razão de ser forte. Não se trata da lei do amor, concordo; mas é a da natureza, anterior ao próprio amor. Me arrepia os pelos o tour de force retórico de um dos slogans mais batidos Do Contrato Social: “O homem nasceu livre, e em toda parte vive acorrentado”. Arrepios amplificados quando contrastado com outra tirada, que nunca é demais recordar, da poderosa Astell: “Se todos os homens nascem livres, então como todas as mulheres nascem escravas?”  É no mínimo paradoxal pressupor que a desigualdade entre homens e mulheres é natural. É um paradoxo em especial para alguém que dedicou tantas páginas e tutano para encontrar as origens da desigualdade entre os “homens”.   A resistência para conceber qualquer espécie de comando ou poder para as mulheres no espaço doméstico produz extravagâncias. Montesquieu, para malharmos outro republicano de uma quebrada vizinha, considerava razoável que mulheres comandassem impérios, mas não o próprio lar. Segura essa […]

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