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Caron, um jovem paisagista

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Caron, um jovem paisagista

Entre a banalidade e o assombro sincero, a visão de uma paisagem é uma das imagens que mais encontram acolhida nos olhos de espectadores em geral. Quem, hoje, ao olhar para pinturas de paisagem de Hipólito Caron pensará que imagens como essas poderiam ter sido objeto de disputas?  Contudo, subjacente à aparente inocência, vigoram o olhar de uma época e as expectativas de diferentes grupos. 

Hipólito Boaventura Caron (1862-1892) nasceu em Resende-RJ, de pai francês e mãe brasileira. Faleceu precocemente, aos 30 anos de idade, por ter contraído febre amarela. Durante sua vida foi pintor de paisagens, mas também executou retratos e decorações; foi professor do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro; fundador de uma instituição semelhante em Juiz de Fora, Minas Gerais; e correspondente de um jornal dessa cidade, O Pharol. O período de sua formação e atuação coincide com um momento de intenso debate em torno do modelo de representação da paisagem brasileira. A variedade da produção paisagística de Caron evidencia tanto o processo de experimentação de um jovem artista quanto a multiplicidade de concepções que esse tipo de pintura alcançava na época. 

Entre 1880 e 1884, Hipólito Caron estudou na Academia Imperial de Belas Artes, situada no Rio de Janeiro, então sede do governo de Pedro II. Nessa instituição teve como professor o paisagista alemão Johann Georg Grimm (1846-1877), cuja pintura era bastante elogiada por articulistas dos jornais cariocas, que julgavam sua representação da natureza como mais fidedigna do que a realizada tradicionalmente na Academia. Grimm estava no Brasil desde 1878 e foi contratado como professor temporário pela instituição. Quando deixa o cargo em 1884, parte de seus estudantes saem também da Academia e passam a acompanhá-lo, pintando nas praias de Niterói, onde ele se instala. Caron é um deles.

Permanecendo com Grimm até o início de 1885, as pinturas de Caron desse momento são bastante minuciosas, sendo a maior parte delas, marinhas. Nelas, o mar e o céu se estendem, desvelam camadas de vapores até fundirem-se no horizonte, ou encontrarem montes que delimitem seu domínio visual. As paisagens são solares, enquadram áreas estreitas de território: uma faixa de areia; um rochedo próximo, caracterizado com minúcia; às vezes, pequenos barcos e figuras humanas de cabeça baixa, sem que nos seja dado distinguir a fisionomia do rosto. Normalmente são empregados muitos ocres e azuis, construindo uma composição luminosa e harmônica, como ocorre na pintura Praia da Boa Viagem, de 1884, pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. 

Também do período de formação com Grimm são as pinturas de paisagens rurais, em que geralmente vemos estradas atravessadas por animais de carga acompanhadas por figuras humanas solitárias. A vegetação é o cenário de uma passagem. As figuras margeiam a estrada e cercam-na, em maior ou menor evidência. Tais paisagens não transfiguram idílios, nem apresentam qualquer tom exasperante que imprima deleite. Apresentam apenas o caminho banal cotidianamente atravessado por animais e vaqueiros.  

O despojamento e familiaridade de um lugar comum da restinga e orla fluminenses apontam para a valorização do característico, aquilo que era considerado singular e próprio ao lugar. Esse era um aspecto importante e valorizado pela crítica atuante em periódicos porque ressoava um projeto de arte nacional identificada com a verossimilhança da natureza do país, em oposição à pintura de paisagem clássica, que normalmente era feita mediante um modelo ideal de paisagem, ainda que utilizando aspectos da topografia do lugar retratado. Importante salientar que, embora as pinturas de Caron se referissem a lugares circunscritos ao estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais e, muito fortuitamente, ao Espírito Santo, eram todas julgadas a partir da ideia de paisagem nacional. Essa redução da ideia de nacional ao que era produzido a partir dos arredores da corte era comum naquela época e decorria principalmente do fato de os debates estarem concentrados no centro político do país, que era o Rio de Janeiro.

Após a temporada com Georg Grimm e seu grupo, Caron viaja para a França. A complementação dos estudos artísticos na Europa era então muito prestigiada, ainda assim, alguns críticos manifestam em seus textos o temor de que o estudo da natureza europeia alterasse a pintura do artista, tornando-o menos sensível às cores e fisionomia do território brasileiro. 

O período de estudos na França foi financiado por apreciadores da obra de Caron que decidiram apoiá-lo.  Nos três anos em que permaneceu no país, o artista se dividiu entre a propriedade rural de Hector Hanoteau, na província de Nièvre, e as aulas na Escola de Artes Decorativas de Paris, alternando temporadas nos dois lugares. Nesse momento ele passa a empregar uma maneira diferente de pintar, tornando mais frequente o uso de manchas largas e um menor apego ao detalhe. Essa característica se mostra de forma evidente, por exemplo, na tela Arredores de Paris, de 1887, conservada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo. 

A alteração na maneira de pintar do artista é percebida quando ele ainda estava na Europa e enviava telas para serem expostas no Brasil. Em 1886, por ocasião de uma dessas exposições, Luiz Gonzaga Duque Estrada, principal crítico de arte da época, escreve um texto dizendo que tanto a maneira de ver do artista como sua maneira de pintar estavam mudando. Embora nesse episódio Gonzaga Duque não tivesse certeza da consistência da mudança, dois anos depois, quando Caron retorna e expõe 27 quadros de paisagens europeias, sua apreciação é elogiosa e a constatação da qualidade vem na forma de declaração de que “há sentimento” nessas pinturas.

Ainda que o modo mais expressivo de pintar reapareça em várias obras depois que Caron retorna ao Brasil, como em Praia Formosa, de 1888, conservada pelo Museu Nacional de Belas Artes, as pinturas produzidas após 1889 apresentam variadas maneiras de representação. Ele oscila entre o detalhe e a mancha, produzindo, por um lado, trechos de natureza próximos e minuciosos e por outro, vistas distantes com muitos planos, feitas mediante grandes áreas de manchas e simplificação das formas. Um exemplo do primeiro caso é a pintura sem título, de 1890, pertencente ao acervo do Museu Mariano Procópio, uma das poucas de Caron com a tela na orientação vertical. Como exemplos de vistas mais amplas em que as pinceladas são feitas de maneira mais expressiva, temos Poço Rico Antigo, também conservada pelo Museu Mariano Procópio e Paisagem de Sabará, de 1891, pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. De qualquer forma, Caron se afasta do modelo de paisagem realista aprendido com Grimm.

A essa altura, com o advento da república, a Academia havia sido reformada, recebendo novo regulamento e renovando o quadro de professores. As pinturas que retratam cenas do cotidiano e as pinturas de paisagem encontram especial acolhida tanto no circuito de exposições acadêmico quanto nas exposições em estabelecimentos particulares. Caron, que já residia em Juiz de Fora, participava de ambos os espaços, viajando com frequência para o interior do estado de Minas em busca do tema de suas telas. Em uma dessas viagens adquiriu a doença que o vitimou, morrendo como jovem artista na plena possibilidade de experimentações e exercícios do olhar para a paisagem.  

Hipólito Caron. Praia da Boa Viagem, 1884. 50,2 x 75 cm. Óleo sobre tela. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/Ministério do Turismo, Rio de Janeiro, RJ. Foto: Ana C. Brito.

Hipólito Caron. Cena rural, 1884, Óleo sobre tela, 48,5 x 68 cm. Coleção Hecilda Fadel, Rio de Janeiro, RJ. Foto: Ana C. Brito

Hipólito Caron. Trecho de paisagem na restinga de Icaraí, 1884, Óleo sobre tela, 38,5 x 60 cm. Coleção Hecilda Fadel, Rio de Janeiro, RJ. Foto: Ana C. Brito.

Hipólito Caron. Arredores de Paris, 1887. Óleo sobre tela. 45 x 49 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, SP. Foto: Isabella Matheus.

Hipólito Caron. Praia Formosa, 1888. Óleo sobre tela, 38×54,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/ Ministério do Turismo, Rio de Janeiro, RJ. Foto: Ana C. Brito

Hipólito Caron. Sem título, 1890. Óleo sobre tela. 108 x 76.5 cm. Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora, MG. Foto: Ana C. Brito.

Hipólito Caron. Poço Rico antigo, 1890. Óleo sobre tela, 52 x 80.5 cm. Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora, MG. Foto: Ana C. Brito

Hipólito Caron. Paisagem de Sabará, 1891. Óleo sobre tela, 52 x 80 cm Museu Nacional de Belas Artes/Ibram/Ministério do Turismo, Rio de Janeiro, RJ. Foto: Ana C. Brito.

* A Parêntese agradece a licença das imagens concedidas por Hecilda Fadel, Museu Nacional de Belas Artes, Pinacoteca do Estado de São Paulo e Museu Mariano Procópio.

Ana Carla de Brito é doutoranda em Artes Visuais (concentração em História, Teoria e Crítica) pela UFRGS e mestre pela mesma instituição. Pesquisa noções de paisagem nas Artes Plásticas há nove anos e estuda a pintura de Hipólito Caron desde 2016.

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