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Imagens de um popular brasileiro

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Imagens de um popular brasileiro

Muito do que identificamos com o Brasil ou com a imagem do brasileiro tem relação com um imaginário elaborado pelo modernismo nas artes plásticas, na música, na literatura, na arquitetura e com um projeto político de modernização em que a construção da cidade de Brasília é o símbolo mais evidente. No que se refere às artes plásticas, Di Cavalcanti (1897-1976) teve importante colaboração, trazendo visibilidade ao contingente dos trabalhadores suburbanos e contribuindo para associar a ideia de brasilidade à mestiçagem da população e aos festejos populares.

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo nasceu em 1897 no Rio de Janeiro, foi um dos idealizadores da Semana da Arte Moderna de 1922, ficou conhecido pela representação de mestiças brasileiras sedutoras e é o autor do mural vilipendiado no ataque aos edifícios dos três poderes de Brasília em 8 de janeiro deste ano. O artista foi criado no subúrbio do Rio e perdeu o pai aos 17 anos, passando a trabalhar pelo próprio sustento a partir de então. Em 1917, ele se muda para São Paulo, onde atua como caricaturista, ilustrador e jornalista, colaborando com o jornal O Pirralho e exercendo a função de diretor artístico na Revista Panóplia. Em 1918, o artista ilustra a tradução em português de Balada do enforcado, de Oscar Wilde, e no ano seguinte, Carnaval, de Manoel Bandeira. Na época, cursava Direito e tomava aulas de pintura com Georg Elpons (1865-1939). Suas referências simbolistas se fazem notar na obra Amigos, de 1921, de tons sombrios e contorno indefinido, como também nas figuras caricatas e algo decadentes que compuseram o álbum Fantoches da Meia-noite, publicado em 1922. 

Foi pelos círculos jornalístico e literário que Di conheceu Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954) e Guilherme de Almeida (1890-1969). Através deles, o artista conheceu também o escritor e diplomata Graça Aranha e Paulo Prado, que se tornaria o mecenas de vários artistas modernistas. A partir das conversas com esse grupo, Di Cavalcanti sugere a realização de um evento de arte moderna, “que seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulistana”, segundo registrou em suas Memórias. O artista participa com uma dezena de obras e elabora também a ilustração do cartaz de divulgação e do programa de atividades da mostra.  

Apesar de seu engajamento inicial, seu envolvimento com o grupo paulista da Semana de 22 não prosperou. Logo de saída ficou desgostoso com o caráter mundano que o evento havia assumido. No ano seguinte, partiu para Paris, a fim de “tirar uma prova de si mesmo fora de um ambiente que lhe parecia cada vez menor”, como ele mesmo assinala em seus escritos.

Di Cavalcanti permanece em Paris entre 1923 e 1924 como correspondente do jornal Correio da Manhã. Seu retorno ao Brasil ocorre devido ao fechamento do jornal durante o episódio da Revolta Paulista de 1924. Na capital francesa ele teve contato com Picasso, Jean Cocteau, Blaise Cendrars, Léger, Unamuno, Georges Braque, Henri Matisse, De Chirico, dentre outros. Como muitos dos artistas brasileiros de sua geração, Di buscou atualização no contexto francês a partir da apropriação do pensamento artístico das vanguardas pós-impressionistas como o cubismo, e, em especial, das lições de Paul Cézanne (1839-1906), no que se refere à modelação da cor e à ambiguidade do espaço. É interessante saber que a chamada “lição cezanniana” era estimada também pelos muralistas mexicanos, com cujas ideias Di Cavalcanti teve contato ainda em 1922 no pavilhão mexicano da Exposição Internacional do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro. Esse encontro se deu menos pelo contato com as obras, do que pelo acesso às ideias programáticas de José Vasconcelos, ministro da educação do México e um dos ideólogos do movimento muralista, presente com a comitiva de seu país nessa Exposição Internacional.

Di, que se nomeava um “perfeito carioca”, era boêmio e amante das festas e da cultura popular. Sua identificação com a gente das ruas e dos morros da zona norte do Rio apareceria de forma notável em obras das décadas de 20 e 30, como Samba, Serenata, Devaneio e Cinco garotas de Guaratinguetá. Nessas pinturas é evidente a caracterização sensual das mulheres negras e mestiças, a alusão a festas pela figuração dos instrumentos musicais e expressão de corpos dançantes e o tratamento cilíndrico das figuras, que se aproximam da maneira de Picasso no seu “período clássico”. A pintura Samba é luminosa. Os corpos dos bailarinos e músicos preenchem a tela de um modo que pouco deixa ver do fundo de morros e céu. A expansão e altivez de algumas figuras, como as mulheres centrais em cores vivas e os homens postos ao lado delas nas duas extremidades, contrastam com a personagem introspectiva de azul no canto inferior esquerdo. Os contrastes entre cores e expressões das figuras, bem como sua distribuição no espaço do quadro, tornam a pintura bastante dinâmica formalmente. 

Entre 1929 e 1931 o artista cria dois murais para o foyer do Teatro João Caetano do Rio de Janeiro. O tema dos festejos populares aparece nessas duas composições de quatro por cinco metros conhecidas pelos nomes de Samba e Carnaval. As duas pinturas apresentam figuras masculinas e femininas tocando instrumentos e dançando em um ambiente montanhoso que é figurado de forma escalonada, verticalmente. A paleta de cores combina azuis, rosas e brancos com alguns pontos em amarelo ocre. O céu azul é representado com padrões quadriculados que destacam as listras distribuídas nos babados e linhas das roupas das figuras, criando um inteligente ritmo formal. Pesquisadores como Ivo Mesquita e Rafael Cardoso consideram esse trabalho como a primeira grande realização dos modernistas, pela ousadia do tema, tratamento pictórico e escala das pinturas. Ivo Mesquita sublinha em uma conferência a reação de alguns críticos da época registrada nos jornais: “Como permitiram que esse artista fizesse isso nessa sala? Nesse teatro? Uma imagem dessas em um lugar de enlevo?” É digno de nota que o Teatro João Caetano tinha a pretensão de ser uma réplica da Salle Pleyel, a sala de concertos de Paris mais sofisticada e com melhor tecnologia de acústica da época.

A ousadia do artista na escolha do tema se relacionava com seu compromisso programático com uma arte social, que figurava os trabalhadores e pessoas comuns e, sobretudo, destacava a miscigenação da população. As pinturas de Di Cavalcanti no Teatro João Caetano colocaram o Brasil no mapa do muralismo latino-americano e criaram um diálogo direto com o movimento muralista mexicano. É imediatamente posterior à filiação de Di ao Partido Comunista (ocorrida em 1928) e poucos anos após seu contato com as ideias de José Vasconcelos, que havia cunhado o conceito de “raça cósmica” para designar a população mestiça ibero-americana, defendendo que residia nessa característica a originalidade do povo de nosso continente. 

Ao longo dos anos 1930 Di Cavalcanti escreveu textos discorrendo sobre as relações entre o trabalho artístico e a problemática social. Sua atuação política ocasionou problemas e perseguições. Ele foi preso durante três meses na capital paulista em 1932, acusado de ser getulista, além de ter sido perseguido nos anos seguintes e preso pela polícia de Getúlio. Em 1937 o artista se exila com sua esposa em Paris, retornando ao Brasil somente em 1940, por conta do início da Segunda Guerra. 

A prolífera produção muralista de Di Cavalcanti coincide com o otimismo político da década de 1950, a abertura democrática e a expectativa de modernização. É dessa época o painel “Feira Nordestina”, que originalmente media dois metros e 40 centímetros por seis metros de comprimento, mas foi dividido em dois e vendido para integrar coleções diferentes. Ainda que na porção esquerda do painel preponderem os tons terrosos e amarelos, e na da direita, azuis e cinzas, o tratamento do céu é bastante semelhante e há uma continuidade de figuras humanas com cestos à cabeça ou nas mãos, ladeadas por animais e tendo como fundo conjuntos de casarios.    

No final da década de 1950, Oscar Niemeyer convida Di Cavalcanti a elaborar uma imagem para tapeçaria a ser instalada no Palácio do Planalto. O artista criou a obra Músicos, desenhada em cartão em 1958 e tecida pela Tapisserie d’Aubusson, na França. Outra obra encomendada para ser instalada de modo integrado à arquitetura foi o painel conhecido pelo nome de “Candangos”, pertencente ao Salão Verde da Câmara dos Deputados. Embora realizados em meios diferentes, Músicos e Candangos têm em comum a paleta de cores em azul, cinza, preto e branco e a representação estilizada da figura humana, que em Candangos é bastante geometrizada e em Músicos é composta por uma profusão de linhas curvas. As duas obras trazem também os temas diletos do artista ,com a figuração de trabalhadores no painel e a de uma cena de fruição musical na tapeçaria. Nesta, a presença de instrumentos de corda e de uma flauta poderia sugerir uma roda de choro ou de samba, por exemplo. Poderíamos dizer, assim, que as criações de Di para os prédios dos Três Poderes estão entre o trabalho e a festa. 

Em 1963 o artista é indicado pelo então presidente da república, João Goulart, para o cargo de adido cultural do Brasil em Paris, no entanto sua nomeação é suspensa e não ocorre por conta do golpe militar de 1964. Ao longo da década de 1960 Di expõe em vários países, como Rússia, Argentina e Marrocos e viaja para vários pontos do Brasil. Falece em 1976 no Rio de Janeiro. 

O painel Mulatas, atacado na tentativa de golpe ocorrida em 8 de janeiro, não foi realizado originalmente para o Palácio do Planalto. A obra de pouco mais de um metro por três e meio de comprimento foi encomenda da Companhia Nacional de Navegação Costeira e decorava a sala de refeições de um de seus navios. Em 1991 a pintura foi incorporada ao acervo do Planalto por ordem do então presidente Fernando Collor. A cena representada figura em primeiro plano um grupo de mulheres em um ambiente semelhante a uma praça, com canteiros de plantas e árvores nas laterais e a vista de um atracadouro de barcos ao fundo com figuras humanas trabalhando, tendo em último plano o mar, um conjunto de morros e o céu. Uma das mulheres do primeiro plano está sentada no chão com dois cestos, um dos quais está repleto de peixes enquanto no outro, que ela traz entre as pernas, há um utensílio de preparo de alimentos. As outras três mulheres da pintura estão reunidas em torno de uma mesa. Uma delas toca um instrumento de cordas, enquanto as outras conversam ou escutam. Sintetizados em uma obra, vemos as mestiças e o morro, o trabalho e a canção. Imagens de um popular brasileiro construído e celebrado por um dos nossos mais importantes modernistas e vandalizado por aqueles que em sua prepotência e ignorância não podem estimar nem o povo, nem a democracia e tampouco a cultura.


Emiliano Di Cavalcanti; Capa de O Pirralho; 12 de maio de 1917

Emiliano Di Cavalcanti; Amigos; c. 1921; pastel oleoso sobre papel; 33,3 x 22,8; Pinacoteca do Estado de São Paulo

Emiliano Di Cavalcanti; Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922; Museu Catavento, São Paulo.

Emiliano Di Cavalcanti; Samba; 1925; óleo sobre tela; 177 x 154 cm. Coleção Boghici, destruído em incêndio.

Emiliano Di Cavalcanti; Serenata; 1925; Óleo sobre tela; 85×120 cm. Coleção Particular, SP

Emiliano Di Cavalcanti; Devaneio; 1927; Óleo sobre tela; 99,5×156 cm. Coleção Particular, RJ

Emiliano Di Cavalcanti; Cinco garotas de Guaratinguetá; 1930; Óleo sobre tela; 70 x 90,5 cm – MASP, Sâo Paulo.

Emiliano Di Cavalcanti; Painéis Samba e Carnaval no foyer do Teatro João Caetano (imagens acima e abaixo); Mural a óleo, fresco secco ; 450 x 550 cm (cada um) – 1929-1931 – Coleção Governo do Estado do Rio de Janeiro, Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro – Funarj / Teatro João Caetano

Emiliano Di Cavalcanti; Feira nordestina, 1951. Óleo sobre tela: 240 x 300 cm (cada um)
Cada painel (acima e abaixo) integra uma coleção particular diferente.

Emiliano Di Cavalcanti; Músicos. Cerca de 1958. Tapeçaria executada pela Tapisserie d’Aubusson, França. Palácio do Alvorada, Brasília, DF.

Emiliano Di CavaLcanti. Sem título (conhecida como Candangos), 1960. Óleo sobre tela, 283 x 881 cm. Salão Verde da Câmara dos Deputados, Brasília, DF.

Emiliano Di CavaLcanti. Sem título (conhecida como As Mulatas), 1962. Óleo sobre tela, 119 x 351 cm. Palácio do Alvorada, Brasília, DF.

Para saber mais: 

  • Vídeo-debate Di Cavalcanti, Muralista. Um pintor social no canal de youtube do Instituto Tomie Ohtake. Disponível aqui.
  • Di Cavalcanti, Emiliano. Viagem da minha vida: memórias.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1955.
  • Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti: mito e realidade no modernismo brasileiro.  São Paulo: MAM, 2002.
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