Ensaio | Parêntese

Gonçalo Ferraz: Limites

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Gonçalo Ferraz: Limites É sábado, 21 de março de 2020. O sol ainda não nasceu e acabei de ler a última frase da coluna de Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo: “O caminho do golpe é debatido nas altas esferas na calada da noite. O de retomar a iniciativa cidadã ocorre no dia a dia, à luz do sol.” O momento é de transição entre a noite e o dia, propício à conjugação de opostos: do escuro da noite à luz do dia, da calma da madrugada ao bulício da manhã, do silêncio sereno à expressão viva… do repouso à ação. Já, já, Porto Alegre vai acordar para mais um dia frente a frente com a realidade implacável do crescimento exponencial. E as pessoas, esses organismos vivos que às vezes lembramos de chamar ‘seres humanos’, sairão do hiato do sono para continuar enfrentando a consequência inevitável das suas escolhas. Qual é o limite do repouso? Qual é o limite da ação? Qual é o limite do que se pode fazer, e dizer? Há poucos dias, na troca de mensagens em um fórum online, vi uma daquelas tentativas, usuais em tempos de saudável alternância de poder, na qual o partidário de um grupo busca atribuir todas as falhas da administração que apoia às supostas falhas da administração anterior, controlada pelo grupo oposto. Essa utilização falaciosa da ideia indisputável de que nenhum evento presente é causa de eventos passados, já de si é uma truculência intelectual que deveríamos votar à mais sumária indiferença. Mas acresce que ela veio revestida com a defesa do indefensável, na forma de um elogio ao juízo, honestidade e compromisso de um apologista de tortura que, por uma sequência de eventos profundamente infelizes da história recente, detém o poder executivo sobre mais de duzentos milhões de pessoas. Como responder? O fórum online em questão reúne cientistas. Os participantes estão conectados por compromissos de trabalho que, dita o bom senso, deveriam resistir às diferenças de opinião política. Fiel a esse dever, a moderação do grupo entrou em linha e rebateu a defesa do indefensável com argumentos racionais, ressaltando a importância de manter o debate democrático face às divergências de opinião. Pegando a mão e tomando o braço, o defensor do indefensável se espraiou sobre a premissa errônea de que em debate democrático qualquer afirmação é válida, lançando a retroescavadeira do seu fervor ideológico sobre qualquer tentativa lógica e dialogante de chegar à verdade dos fatos. Seguiu-se o desgaste inevitável, culminando no já conhecido ‘aqui não se fala de política’. Nas postagens seguintes voltaram os memes, as expressões gráficas de emoção legendada em inglês, e a troca de informações técnicas supostamente desprovidas de conteúdo político. E segue o baile, sob o acordo tácito de que é assim que deve ser e que no verdadeiro debate democrático toda a opinião merece o respeito do coletivo. Não. O respeito é algo que se conquista. Não é um direito adquirido pelo acidente de pertencer a um grupo.  Vou ilustrar com um exemplo. Imagine-se uma […]

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É sábado, 21 de março de 2020. O sol ainda não nasceu e acabei de ler a última frase da coluna de Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo: “O caminho do golpe é debatido nas altas esferas na calada da noite. O de retomar a iniciativa cidadã ocorre no dia a dia, à luz do sol.” O momento é de transição entre a noite e o dia, propício à conjugação de opostos: do escuro da noite à luz do dia, da calma da madrugada ao bulício da manhã, do silêncio sereno à expressão viva… do repouso à ação. Já, já, Porto Alegre vai acordar para mais um dia frente a frente com a realidade implacável do crescimento exponencial. E as pessoas, esses organismos vivos que às vezes lembramos de chamar ‘seres humanos’, sairão do hiato do sono para continuar enfrentando a consequência inevitável das suas escolhas. Qual é o limite do repouso? Qual é o limite da ação? Qual é o limite do que se pode fazer, e dizer? Há poucos dias, na troca de mensagens em um fórum online, vi uma daquelas tentativas, usuais em tempos de saudável alternância de poder, na qual o partidário de um grupo busca atribuir todas as falhas da administração que apoia às supostas falhas da administração anterior, controlada pelo grupo oposto. Essa utilização falaciosa da ideia indisputável de que nenhum evento presente é causa de eventos passados, já de si é uma truculência intelectual que deveríamos votar à mais sumária indiferença. Mas acresce que ela veio revestida com a defesa do indefensável, na forma de um elogio ao juízo, honestidade e compromisso de um apologista de tortura que, por uma sequência de eventos profundamente infelizes da história recente, detém o poder executivo sobre mais de duzentos milhões de pessoas. Como responder? O fórum online em questão reúne cientistas. Os participantes estão conectados por compromissos de trabalho que, dita o bom senso, deveriam resistir às diferenças de opinião política. Fiel a esse dever, a moderação do grupo entrou em linha e rebateu a defesa do indefensável com argumentos racionais, ressaltando a importância de manter o debate democrático face às divergências de opinião. Pegando a mão e tomando o braço, o defensor do indefensável se espraiou sobre a premissa errônea de que em debate democrático qualquer afirmação é válida, lançando a retroescavadeira do seu fervor ideológico sobre qualquer tentativa lógica e dialogante de chegar à verdade dos fatos. Seguiu-se o desgaste inevitável, culminando no já conhecido ‘aqui não se fala de política’. Nas postagens seguintes voltaram os memes, as expressões gráficas de emoção legendada em inglês, e a troca de informações técnicas supostamente desprovidas de conteúdo político. E segue o baile, sob o acordo tácito de que é assim que deve ser e que no verdadeiro debate democrático toda a opinião merece o respeito do coletivo. Não. O respeito é algo que se conquista. Não é um direito adquirido pelo acidente de pertencer a um grupo.  Vou ilustrar com um exemplo. Imagine-se uma […]

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