Crônica

Guitarras na parede

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Guitarras na parede

Um dos vários dons que Deus não me deu foi o do turismo. Tenho dificuldade em manter meu interesse na intensidade média, essencial ao bom turista. A sobrevoar, prefiro mergulhar ou passar batido. A falta de talento natural aumentou ao longo dos anos por conta do meu ofício de músico. Nele, a única certeza são as viagens. Nas férias, não tenho rotina para quebrar nem necessidade de evitar a própria casa.

Não falo só dos pontos turístico mais populares de cada cidade, a torre, a ponte, a fonte, o cais, o mar, o mirante, o restaurante, o Cristo. Longe de mim tal esnobismo. Me refiro também a museus que, por vezes, me lembram a fartura perturbadora de um espeto corrido ao contrário. Rodízio onde o prato fica parado e o cliente gira.

Mas a falta do talento não impede algumas experiências agradáveis, como a que vivi ao visitar o Museu Nacional, em Oslo. Num dia agradável, na companhia imbatível de esposa e filha, até comprei, satisfeito, quinquilharias baseadas no onipresente grito de Edvard Munch, a estrela local. 

O museu estava repleto de turistas chineses que, numa excursão muito ordeira, se revezavam em grupos pelas salas. Sem poder chegar perto dos quadros, eu só conseguia vê-los emoldurados por dezenas de cabeças, nucas e ombros.  Uma língua estranha falada em sussurros era a trilha sonora. Difícil de se concentrar. Restava a esperança de tranquilidade numa próxima sala, talvez. 

Não rolou. 
Talvez na outra. 
Também não. 

Já estava decidido pela segunda opção entre mergulhar e passar batido quando, graças a outro dom que me falta (o da orientação), pensando estar em direção à saída, encontrei uma sala milagrosamente vazia. Um breve intervalo de silêncio, tranquila solidão e… caraca! Dois Picassos na parede!

Lado a lado, duas representações cubistas de uma guitarra (pra nós, violão). À direita, em tons de cinza; à esquerda, em cores. Imediatamente começou a tocar na minha cabeça a música do Counting Crows: 

well, you know gray is my favorite color
I felt so symbolic yesterday
if I knew Picasso
I would buy myself a gray guitar and play

Foi-se o tédio! Milhões de conexões passam pela cabeça. Preciso registrar este momento único. E rápido. Já ouço o burburinho de uma nova turma chegando. É agora ou nunca. Em que bolso está o celular? Putz, um restinho de bateria. Foto horizontal dos dois quadros ou um filme vertical indo de um ao outro?  Lá vêm eles, vão invadir! Chance pra só uma tentativa! Clique, foi! Tá salvo! Pra sempre. Melhor do que pra sempre: pra agora! Que belo post para o instagram. Um haikai visual! O restinho da bateria fica pra postagem. Melhor post ever, com certeza!

Hashtag “só que não”. 

Um tempo depois, quando descobri que dá pra ver em números a reação às postagens no insta, reencontrei meus quadros e sua canção lá em baixo, no último lugar. Abaixo de registros de momentos bem banais. É assim nas redes. Somos todos turistas e pontos turísticos ao mesmo tempo. O que significa muito pode não significar nada. Rodízio do rodízio.

well, i’m gonna paint my picture
paint myself in blue and red and black and gray
all of the beautiful colors are very, very meaningful


we all wanna be big, big stars
but we got different reasons for that
I wanna be bob dylan
mr jones wishes he was someone just a little more funky
oh! son, that’s just about as funky as you can be

…mr jones and me
starin’ at the video
when i look at the television, i wanna see me
staring right back at me


O sempre Engenheiro do Hawaii Humberto Gessinger é músico e escritor. Dentre seus livros está “Seis segundos de atenção” (Ed Belas Letras).

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