Inéditas e Novidades

Avant-première – Houve uma vez Malvina

Change Size Text
Avant-première – Houve uma vez Malvina

NO ANO DE 1917,
Espertirina Martins é uma das protagonistas 
da Batalha da Várzea na Greve Geral 
e lidera uma passeata exigindo 
o direito ao voto às mulheres.
da Batalha da Várzea na Greve Geral 
e lidera uma passeata exigindo 

As últimas flores das paineiras barrigudas e espinhentas apodrecem sobre a terra úmida da barranca do rio Taquari como um jazigo cor-de-rosa.  Apodrecem porque acabou mais um ciclo florido. Apodrecem porque é da natureza o instante. Não é preciso o calendário da Alfaiataria Fischer avisar a troca de estação: O Inverno chegou com tudo outra vez – Malvina suspira. Um arrepio de frio. Ou de medo.

O sol escorrega. Daqui um nadinha, é noite. Logo a primeira camada de estrelas geladas clareia o céu. Antes de fechar a janela da cozinha, um taboão de madeira, a professora percebe os lampiros. São como faíscas nos arbustos.  Esses não têm medo do frio. Esbanjam luz. Estrelas e vaga-lumes. Um belo tema de poesia para a aula de amanhã.  

Malvina afasta o xale de tricô dos braços. Senta no tamborete e começa a escolher os grãos esparramados na mesa. É preciso deixar de molho. Feijão sadio para um lado, pedrinhas e palha para o outro. Feijão carcomido por bicho também vai para a panela. Ninguém na família é dado a melindres, apesar da ressaca aristocrática que a envolve. 

Os pensamentos como pás de um moinho de vento. Atordoam. E, se os vaga-lumes não têm medo da noite glacial de agosto, também Malvina não receia os vapores frígidos da boca do povo. Um ou outro já deve saber. E até o meio-dia, todos. “É ela, é ela com essas aulas sem rigor, com essas bobagens de nova educação”, já imagina dona Maria José aos cochichos. Quando justificou o ensino como uma arma privilegiada que pode libertar as mulheres da canga dos homens, olhos insidiosos se arregalaram como se profanasse o nome do próprio Cristo. 

Será que me equivoquei tanto assim? Será que Espertirina entendeu errado? E se chegar aos ouvidos dos politiqueiros de Lajeado? Vão me destituir, com certeza. Que agonia. Não quero nem pensar em começar tudo de novo! Do peito, outro suspiro. O feijão ganha uma chaleira de água do poço, fervida. Malvina cobre a panela com um pano alvo e ouve a voz do marido. José Joaquim pede o jornal. 

– Tá aqui! – Antes de alcançar, leva ao nariz as páginas d’A Federação. Tem esse costume. Gosta do cheiro da impressão. 

Todos os dias, Memeco vai ao trapiche atrás do vespertino. Deixa que eu busco!  O filho gosta de ver o pequeno movimento que se forma com a chegada e partida dos barcos e outras embarcações menores. Os jornais chegam com o vapor das 16h30, que sobe de Porto Alegre. Inclusive o Correio do Povo. Não mais do que três ou quatro exemplares são entregues na vila. Para os Bohrer, os Lopes, os Azambuja. Todos os dias, Memeco vai ao trapiche atrás do vespertino.

Minha nossa! Quem deles vai perceber a nota da página cinco? 

A sorte é que todos os olhares em São Gabriel estão atentos ao julgamento do assassinato de Pinheiro Machado. Assim, escapam-lhes as greves na capital. 

– Olha isso! – à voz rouca do marido, Malvina ergue o rosto iluminado pelo claro da lamparina. Endireita a postura, alerta, tranca a respiração. Pronto. Vai perguntar.

– Malvina, olha só isso – repete. O Correio está dizendo que a arma do assassino era do próprio advogado de defesa! Mas acham que são cúmplices? O ex-deputado Flores da Cunha também faz parte da acusação – torce o grosso bigode que começa a pintar de branco. – Esse nunca perde oportunidade de aparecer. Até chorou no tribunal. Pois, pois… Atores, todos eles. 

Comento? Malvina se acomoda melhor no banco, inquieta. Caso não revide, não distrai o marido. Responde, sem dar chance de respirar e com pólen na voz:

– É um covarde esse Manso Coimbra. Claro que tem cúmplices, Tavares! Vão ter que descobrir quem. E só pode ser um desses políticos graúdos. Por falar em morte, na semana passada, os dois filhos da dona Ercília, do primeiro casamento, sabe? Não vieram na aula. Precisaram ajudar o marido dela lá na serraria. Que perigo essas crianças trabalhando naquele lugar, Tavares! Tinha que ser proibido, isso sim! Não é por menos que estão fazendo greves no país. Quando me falam em segundo marido, lembro a falecida comadre Estrellina: “Se uma viúva quer casar de novo, deve matar os filhos porque o padrasto vai judiar deles todos”. Ahã, antes matar o padrasto.

Malvina desvia o canto dos olhos para o marido, atrás de suas impressões. Não acredito que ele não leu! 

O palavrório compulsivo da esposa atordoa. Consulta o relógio de bolso. Apenas folheia o resto do jornal. Guerra na Europa. Despachos dos secretários. “A batalha do Somme” no Cine Guarany. Há quanto tempo não iam a uma sessão de cinema?  Malvina, com seu olhar de corça desconfiada, vê o marido dobrar o jornal. Suspira aliviada e se agacha. Arqueia as sobrancelhas enquanto, agachada, remexe o braseiro no fogão.

– Esses dias, contaram que, na fundição em Estrela, um guri de dez anos se queimou feio enquanto ajudava na solda de estanho. O negócio escorreu e pegou em cheio nos pés da criança, coitadinha. Sabe o que o patrão fez? Deu uma semana de folga e ainda descontou dos vencimentos. É uma exploração, isso sim. Estão pagando dois mil réis para as crianças trabalharem dez horas por dia! Mas um dia o vento muda a direção. E se não muda, a gente assopra. 

Cai, no piso de chão empedrado, uma fagulha como se quisesse brincar. Malvina observa, fascinada. Um lume tão pequeno pode acender uma fogueira e acabar com a ignorância, pensa.

A lacônica nota da greve no jornal. O editor optou por não chamar atenção? Malvina deixa escapar outro suspiro, carregado de aflição. Perdeu a cor das faces e as pernas baqueiam ao lembrar-se de sua ex-aluna. Espertirina. Tão alegre e compenetrada nos estudos. Espertirina…  Tão inteligente e curiosa. Com perguntas e respostas na ponta da língua. A mais nova das irmãs Martins. Como se metera nisso? O repórter da Federação viu? Foi ela mesma? Tem fotografia? Quem prova?

Em Porto Alegre, as grevistas jogaram um buquê de flores contra a Brigada Militar, de Borges de Medeiros. Durante o enterro de um operário assassinado por brigadianos. Estratagema montado, guerra é guerra. Camuflada entre dálias e gérberas coloridas, como um apêndice insurreto, seguiu a bomba caseira recheada com metais e colheres. O inimigo se desconcertou.  

Uma retaliação? Olho por olho? Depois, na Várzea, os soldados do 11º Regimento de Cavalaria prenderam vários manifestantes da Federação Operária. Espertirina entre eles. Minha afilhadinha! Que um dia abandonara São Gabriel para se juntar às irmãs, estudar e, quem sabe, buscar trabalho em alguma indústria da capital.

Como essa menina se arriscara desse jeito? Bravura ou loucura? Uma Dom Quixote de saias? Sem a compreensão real dessa greve… Mas não é que me saiu também uma sufragista! Acho que essa guria não tem nem 14 anos! Se trabalhar pesado numa fábrica, ainda vai contrair tuberculose, coitadinha. Ainda se fosse num escritório! E o irmão? Com seu espírito revolucionário ousou afrontar Borges de Medeiros! Quer dar uma de herói… Por que Henrique trocou de nome? Por quê? Santa Natureza. Bate o desespero em Malvina.  Os olhos azuis-claros dos Souleaux, arregalados, como se previsse o rascunho do futuro. Vão me crucificar – geme.


SERVIÇO

  • Lançamento em Porto Alegre: dia 11 de julho, 3ªf, às 18h, na livraria Paralelo 30, à rua Vieira de Castro, 48, próximo ao Parque da Redenção e Colégio Militar.
  • Malvina, de Laura Peixoto, 260 páginas, e é editado pela Libélula Editorial, com recursos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul por meio do Pró-Cultura RS FAC – Fundo de Apoio à Cultura. 

O romance Malvina resgata parte da história de Julia Malvina Hailliot Tavares, primeira professora estadual e a primeira com turma mista na colônia de São Gabriel de Lajeado. Malvina nasceu em Encruzilhada do Sul, em 24 de novembro de 1866, e era filha de imigrantes franceses. Em determinado momento, Júlio de Castilhos a transfere para São Gabriel, hoje Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari. A lenda familiar fala em represália política, sem explicar por quê.

Malvina Hailliot Tavares é avó do jornalista e escritor Flavio Tavares, nascido em Lajeado. E agora Malvina contará sua história, uma ficção com base documental. 

Como educadora, ela exerceu influência na sociedade rural para além dos limites da sala de aula. Sua forma de ensino seguiu a pedagogia libertária, associada às primeiras organizações proletárias. 

Apesar disso, ou talvez por causa disso, pouco se sabe sobre Malvina. Há um apagamento da sua trajetória. Não é possível apresentar uma biografia com os poucos indícios históricos que restaram. Mas é possível criar uma ficção, um romance histórico, trazendo sutilmente personagens que existiram, os eventos e histórias reais daquela época, pesquisados para esse livro. Além disso, o romance quer revelar para as gerações de hoje a existência dessa mulher, dessa professora, que viveu durante 40 anos num lugarejo que até hoje continua pequeno, mas cuja existência foi completamente excluída da história local. 


Laura Peixoto – A investigação de fatos históricos faz parte do processo criativo de Laura Peixoto.  Antes de ser escritora, é jornalista. É, também, especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS e em Filosofia e Educação pela Univates. É autora de quatro obras: Um dia tudo se ajeita! (livro infantil), Intrigas da Colônia (contos), Crescer é morrer devagarzinho (crônicas) e Engole esse choro (romance), lançado em 2020. 

;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.