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O ruído de uma época, de Ariana Harwicz

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O ruído de uma época, de Ariana Harwicz Editora Instante/Divulgação

Partindo de aforismos, correspondências e ensaios sobre escrita e literatura nos tempos modernos, a argentina radicada na França Ariana Harwicz investiga, nesta obra de não ficção, os padrões duplos e a natureza enganosa que por vezes circundam a criação artística na atualidade. Com forte cunho pessoal, O ruído de uma época é um convite à observação do mundo das artes a fim de desmascarar as aparências com um olhar desafiador que oferece resistência e desobediência à postura pública. Mas é também, assim como os romances da escritora, uma defesa corajosa da liberdade pessoal e artística. Neste livro, ela lança ao leitor importantes reflexões para que, de alguma forma, ele também participe do que está sendo debatido, concordando ou não com as ponderações propostas. 

A Parêntese publica abaixo alguns trechos da obra. 

O ruído de uma época: aforismos, correspondências e ensaios
Ariana Harwicz, tradução de Silvia Massimini Felix
Editora Instante, 2024, 144pp. 


A escrita doutrinada 

“Escrever sem ofender alguém é um oxímoro. Montaigne é o melhor adversário de Pascal. Aron, o de Sartre. Escrever é uma controvérsia subterrânea. Em 1918, os alemães escreveram livros de vingança. Os franceses, por outro lado, escreveram livros de paz. É fácil imaginar quais foram os melhores. O politicamente correto é a gangrena da arte neste século. Um cartunista francês disse: “O que é bom para a caricatura não é necessariamente bom para a democracia”. Que cada um escolha o amo a quem obedecer.”

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“Esta época lê mal porque lê a partir da identidade. Os pró-wagnerianos veem Wagner como Deus. Os antiwagnerianos o veem como um nazista. O problema é que Wagner não é nem apenas Deus, nem apenas um nazista, mas os dois ao mesmo tempo. Se a ambiguidade for eliminada num artista, ele será destruído.”

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“Não há romances que sejam contra o racismo ou a misoginia. Há apenas aqueles que adotam a língua do inimigo e aqueles que fabricam uma língua fora da submissão. Mas, às vezes, vítima e algoz falam a mesma língua. Antes de escrever, para mim tudo é destruição, qualquer palavra parece caduca, as palavras se desfazem “na minha boca como cogumelos podres”. As palavras fora da escrita são lobotomizadas. Mas, ao escrever, a linguagem é refeita, reconfigurada, renascida. Escrever um romance é escrever a história de uma vergonha. É por isso que é sempre tão paradoxal escrever, porque se escreve a vergonha, mas é preciso perder o pudor. Escrever é ser um pária. Nunca tenho tanto medo de olhar para mim mesma como quando escrevo.”

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“Pode-se adotar uma pose em tudo: fazer livros falsos, filiar-se cinicamente a uma ideologia contrária, mostrar-se progressista e ser de direita, fingir ser má ou boa mãe, ser moderno quando se detesta a modernidade etc. O que não se pode fazer é mentir na língua, as palavras que escolhemos não mentem, ali toda a verdade aparece.”

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“Escrever é se subtrair à vida. Mas, para escrever, é preciso viver. Agora percebo até que ponto primeiro é preciso se lançar à vida, esquecendo a escrita, para depois começar a escrever, esquecendo a vida. Escrever é, antes de tudo, uma operação temporal, como a música. Escrever é mais do que viver, é viver duas vezes. Ou é menos do que a vida, é uma relação especular, oblíqua, distorcida. É por isso que às vezes um texto nos faz chorar. Mas o mérito da emoção não é literário, o mérito é todo da vida. E vice-versa.”

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“Há uma reconversão forçada na literatura: uma inquisição. Está se reescrevendo a literatura infantil e também a história, uma revanche em que opera uma instrumentalização das minorias. Marguerite Duras é mostrada como uma mulher oprimida quando não o foi, já que ela mesma disse que não era feminista e não acreditava em rótulos, assim como Yourcenar. E, ainda assim, Duras foi uma mulher crucial em sua época. Trocaram o nome de George Sand por seu nome feminino de nascimento, Amandine-Aurore-Lucile Dupin, mas George Sand decidiu ser do terceiro sexo, nem homem, nem exclusivamente mulher, como Flaubert a chamou. Isso é ir contra a vontade do autor. Procuram-se tradutores afrodescendentes para traduzir autores afrodescendentes, não-binários para traduzir não-binários. Essa redução do ser humano à sua condição genital, biológica, de identidade de gênero, sexual ou à sua cor da pele é típica do fascismo. É uma classificação da qual se fugiu com horror no século XX e que hoje estamos, com a ajuda de colaboradores, retomando na arte. Esvaziar a linguagem de violência é impossível.”


Nascida em Buenos Aires, em 1977, Ariana Harwicz mora no interior da França desde 2007. É autora dos romances Morra, amor, A débil mental, Precoce — os quais formam a chamada “trilogia involuntária” sobre maternidade e paixão — e Degenerado, todos lançados no Brasil pela Instante. Tem textos publicados em importantes veículos internacionais e em antologias na Argentina, México, Espanha, Estados Unidos e Israel. Seus livros foram traduzidos para os seguintes idiomas: alemão, árabe, croata, finlandês, francês, georgiano, grego, hebraico, holandês, inglês, italiano, polonês, português, romeno, sérvio, turco e ucraniano.

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