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Em algum lugar lá fora

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Em algum lugar lá fora

Jabari Asim 

Considerado um dos melhores livros de 2022 pelo New York Times e pelo Washington Post, Em algum lugar lá fora é um romance profundo e comovente sobre a vida dos negros escravizados nos Estados Unidos, narrado sob o próprio ponto de vista deles. A história se passa em uma região não especificada do país, por volta dos anos 1850, na fazenda Placid Hall. Nela, os escravizados — ou “Sequestrados”, como se autodenominam — são submetidos aos caprichos de um tirânico e excêntrico captor e nunca sabem o que pode lhes ocorrer além do trabalho físico desumano de todos os dias: um castigo brutal ou a venda inesperada de um ente querido. Porém, o que mais fere William, Cato, Margaret, Pandora e o Pequeno Zander é a falsa crença de que são incapazes de amar. Ainda que tenham aprendido o idioma e a doutrina religiosa de seus captores — chamados por eles de “Ladrões” —, possuem linguagem e rituais próprios e desejam, a todo instante, estar “em algum lugar lá fora”, uma realidade distinta daquela em que vivem. Até que o pastor Ramson, homem negro liberto com um passado misterioso, começa a incutir neles ideias de liberdade.

Confira abaixo o primeiro capítulo do livro. 

*

Todos nós temos duas línguas.

A primeira é para eles. Um idioma que é uma piada ruim, um lamento recoberto por uma capa de engano, um corpo estranho e ensanguentado em nossa garganta. Tem gosto de cobre, sal e pó.

A segunda é para nós. É uma canção de sonhos e tambores, com promessas murmuradas e encantamentos. Falávamos essa língua na senzala, nos raros fins de noite e inícios de manhã em que eles não estavam olhando dentro de nossa boca à procura de indícios de traição. Essa língua é rica, saborosa e, se não tomarmos cuidado, pode ser nossa ruína. Essa língua nos lembra que, apesar de tudo, nós amamos.

*

I – Os deuses que nos fizeram

 

William

Pelas minhas contas, já haviam se passado catorze colheitas desde meu nascimento quando vi as crianças. Na época, eu era cativo de um Ladrão chamado Norbrook, homem alto e magro com um olhar nervoso e um riso que seria fácil confundir com um rosnado. Ele estava longe de ser rico, tendo em seu nome apenas uma fazenda pequena e dez pessoas sequestradas. Por nosso trabalho, Norbrook nos dava duas refeições diárias de papa de milho e caldo de osso, a cada ano uma calça nova, vestidos para as mulheres, camisões para as crianças, um par de botas que não serviam direito e o máximo de cicatrizes que nossa pele negra fosse capaz de aguentar. Nossas privações eram muitas, e, no entanto, havia algum consolo em saber que existiam outros seres no mundo – ratos, digamos, ou cobras – que sofriam ainda mais.

Nasci já como propriedade de Norbrook. De meus pais, nada sei. Minhas memórias mais antigas envolvem poucos seres humanos, Sequestrados ou não. Em vez de lembranças de primeiras palavras ou primeiros passos ou de memórias de doces canções de ninar cantadas por uma mãe, eu me lembro de ir cambaleando com os outros até a mata para encher nossos cobertores com folhas. Para oferecer conforto aos porcos e às vacas de Norbrook, éramos obrigados a amontoar folhas sobre cobertores – os mesmos trapos que nos protegiam enquanto dormíamos na terra fria e úmida à noite – e arrastá-los até as pocilgas e os estábulos, onde forrávamos as camas dos bichos. Deve ter sido uma das minhas primeiras tarefas, rebocar um peso quase igual ao meu, lutando contra enxames de moscas e mosquitos que pousavam em grande quantidade e me picavam olhos, orelhas e boca. Tão frequentes eram essas marchas e seus suores que minha mente infantil mal pensava em outra coisa além desse desconforto, e muitas vezes eu não sabia dizer se estava sonhando ou se estava acordado. Muitos dos Sequestrados de Norbrook eram obtidos por meio de esquemas realizados nas sombras, o que incluía jogos de azar, leilões fraudulentos e negociações indecorosas. Sofríamos as torturas que nos impingia enquanto ele lutava com suas dívidas, afirmando que em breve teria uma maré de lucros que encheria sua algibeira e lhe renderia a aclamação e as palmas de que era tão merecedor.

Enquanto fugia dos credores, ele ficou sabendo da má sorte de um comerciante chamado Bill Myers. Esse homem percorria o estado todo participando de leilões, comprando mulheres Sequestradas cujo tempo como reprodutoras estava se esgotando. Muitas tinham os filhos menores nos braços. Myers guardava suas aquisições junto com os bebês a portas fechadas em um barracão de madeira da cidadezinha e mandava duas senhoras cuidarem delas à base de caldos e migalhas. Pouco depois, ele pegou só as mães e as levou para o sul para vender, deixando as crianças para trás, com a intenção de voltar para colher também esta safra. Mas ele foi preso e as crianças ficaram abandonadas, expostas ao sofrimento à medida que o inverno se aproximava. Quando Norbrook soube da situação de Myers, achou que poderia pegar para si os órfãos e engordá-los para conseguir lucro rápido. Recebi ordens de preparar a carroça e ir com ele até a cidade. Mas chegamos tarde demais.

Ao entrar, Norbrook e eu deparamos com o cheiro de carne pútrida. Moscas enchiam o ar com um zumbido ávido. Aqui e ali, viam-se massas de carne, que uma inspeção mais cuidadosa revelou serem crianças mortas. Umas vinte ao todo, cada uma tinha apoiado as costas em uma das paredes para descansar, encolhidas em formas que lembravam os ventres dos quais haviam saído não muito tempo antes. Nenhuma tinha mais de três colheitas, e evidentemente nenhuma delas era alta e forte o bastante para retirar a tranca da porta e pedir ajuda. Ninguém tinha ouvido seus gritos pedindo por suas mães? Por leite? Talvez o ruído nas ruas ao redor tenha abafado seus lamentos desesperados.

Norbrook havia feito arranjos para que um médico, um certo dr. LeMaire, nos encontrasse no barracão para dar uma olhada nas crianças. Minutos depois de chegarmos, ele abriu a porta, aumentando a nesga de luz criada por nossa entrada. O médico meteu a mão no bolso do colete e pôs um lenço sobre o nariz e a boca; balançou a cabeça e murmurou. Vi que seus olhos estavam úmidos e não consegui decidir se ele tinha sido tomado pela tristeza ou se fora levado às lágrimas pelo cheiro.

Bem nessa hora, uma das crianças, mais robusta e talvez mais velha que as outras, deu um gemido triste. Segundos antes, Norbrook, frustrado, tinha erguido a bota para chutar o menino. Agora ele se agachou e olhou de perto para o único sobrevivente enquanto o médico e eu olhávamos por cima de seu ombro. As costelas do garoto eram aparentes acima da barriga inchada. Os olhos pareciam selados, embora eu tenha visto movimentos por trás das pálpebras. O nariz e o queixo traziam as marcas de um ataque recente, provavelmente de camundongos. Norbrook virou com delicadeza o menino de lado, revelando um feixe de escoriações e uma ferida supurada no braço.

– Meu Jesus! – exclamou o médico.

Um gosto amargo inundou minha boca. O menino gemeu mais alto, como em um protesto.

Eu sabia que a morte podia chegar a qualquer momento. Podíamos cair duros no campo. Podíamos ser esmagados pela roda de um carroção, levar um coice de um cavalo, ou alguém podia partir nosso crânio porque uma fatia de presunto havia sumido da mesa de um Ladrão, e daríamos nosso último suspiro enquanto o miserável que roubara a carne ainda a engolia.

As mortes no barracão, porém, me afetaram como nenhuma outra e fizeram surgir perguntas sobre a vida fora da propriedade de Norbrook. Até aquele momento, eu nada sabia sobre o mundo exterior, exceto pela vila tranquila a uns quinze quilômetros de casa. Aprendi com os Sequestrados mais antigos que nossos Ancestrais foram tirados de um lugar chamado África, mas eu não sabia a que distância ficava esse lugar nem se as pessoas de lá nos aceitariam de volta. Nossos captores, que tinham o controle de nosso mundo e de tudo que havia nele, contavam histórias para nos manter amedrontados. Diziam que uma criatura chamada Swing Low aparecia com frequência à noite para levar Sequestrados desobedientes para um lugar chamado Canadá, onde seriam punidos e provavelmente mortos. Os canadenses, diziam eles, usavam casacos com golas de pele feitas com os escalpos dos Sequestrados assassinados por eles. Pior ainda, gostavam de comer a carne das crianças Sequestradas. Não chegávamos a um acordo sobre a veracidade dessas afirmações. Questionávamos essas coisas tanto quanto a conversa deles sobre um salvador divino, um homem chamado Jesus. Até onde eu conseguia entender, eles acreditavam que Jesus tinha morrido para que todos os Ladrões pudessem voltar a viver em outro mundo, que eles podiam continuar roubando, e estuprando, e ferindo sem parar, e, se dissessem estar arrependidos, seriam perdoados. Os nomes deles constariam em uma lista nas mãos de um sujeito chamado Pedro, que morava em uma nuvem e guardava os portões de um lugar conhecido como paraíso. Parecia uma história muito tola, do tipo que os adultos rejeitariam quando deixassem a infância para trás.

Mas tínhamos nossas próprias ideias estranhas, e também nesse caso era preciso ter certa boa vontade para acreditar nelas. Nossos anciãos nos ensinavam que as palavras tinham o poder de mudar nossa situação. Sussurravam sete palavras no ouvido de cada Sequestrado recém-nascido antes que a criança ganhasse um nome, sete palavras cuidadosamente escolhidas apenas para aquela criança. Depois que aprendia essas palavras, esperava-se que ela as recitasse fielmente toda manhã e toda noite. Eu tinha lá minhas dúvidas. Várias e várias vezes as palavras fracassaram quando precisamos ser salvos. Mesmo assim, por menos  eficazes que elas fossem, muitas vezes aquilo era tudo que tínhamos. Sem palavras próprias, nossa única escolha seria ver o mundo como eles viam. E, embora víssemos a vida acontecer com olhos bem diferentes, compartilhávamos com nossos captores a necessidade de acreditar que os nomes podiam afetar os acontecimentos. Para nós, eles eram Ladrões, e chamavam a si mesmos de Filhos de Deus. Para nós, éramos os Sequestrados, e eles nos chamavam de crioulos. Nosso idioma, nossa língua secreta, era nossa última defesa.

Norbrook tinha jogado água nos lábios rachados, cheios de bolhas do menino e tentou sem sucesso fazer com que ele parasse sentado com as costas apoiadas na parede. Quando Norbrook soltou o garoto, ele caiu no chão como um saco de sementes. Norbrook falou com o médico sem se virar para ele.

– Acha que consigo alguma coisa por ele? Encher o mole- que de mingau e untar até ficar brilhando?

– Reluto em especular — disse o médico. Embora o cabe- lo dele fosse escasso, as faixas prateadas chegavam quase até o colarinho. Passou os dedos pelo cabelo, a papada balançando enquanto falava.

Norbrook concordou com a cabeça e disse:

– Não tem muito que fazer, então.

– Eu poderia sugerir que o senhor levasse em conta a compaixão, sr. Norbrook?

Norbrook semicerrou os olhos, ainda estudando o menino.

– Quando um cavalo quebra a perna, você demonstra compaixão dando um tiro na cabeça do bicho. É isso que está sugerindo?

– Não exatamente, senhor. Estou meramente dizendo que, com os devidos cuidados, esse menino pode ter uma recu- peração plena. Mas isso pode exigir algum tempo, e a despesa talvez não seja pequena.

– E mesmo assim você não tem como dar certeza.

– Não, senhor, não tenho. Norbrook coçou o queixo.

– Então olhem para lá. Os dois. Olhem para o outro lado. 

Não pude fazer isso. Senti que desviar o olhar seria uma traição, que de algum modo eu estaria falhando com o menino. Vi quando ele piscou forte. Remela e muco escorreram de seus olhos, e pela primeira vez parecia que ele nos via claramente. 

*

Em algum lugar lá fora, de Jabari Asim
Tradução de Rogerio W. Galindo
Editora Instante, 2024, 256 pp.


Jabari Asim nasceu em St. Louis, Missouri, em 1962. É poeta, dramaturgo e professor de escrita, literatura e produção editorial no Emerson College, em Boston, Massachusetts, onde coordena o programa de mestrado em escrita criativa. Foi editor-chefe da revista Crisis, publicada pela NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), fundada pelo historiador e ativista social W.E.B. Du Bois em 1910. É autor de livros infantis, de obras de não ficção e de dois romances: Only the Strong (2015) e Em algum lugar lá fora (2022).

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