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Falso lago

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Falso lago Foto: Marília Dias

Este fragmento é o começo do livro Falso Lago (Editora Zouk, 2023), de Carolina Panta, que terá sessão de autógrafos no dia 10 de novembro, às 19h, na Feira do Livro de Porto Alegre.

Quando o que é de dentro transborda, leva mato, galho, lama. Escorre abrindo sulco em terra dura, arrasta rocha de tonelada morro abaixo. A enxurrada interna derruba com força, dá caldo daqueles de sensação ruim no nariz. E a gente tenta ajeitar as roupas desarrumadas pelo corpo que já não cobrem mais nada. Uma cena tão ridícula quanto se afogar no raso do mar. Na água em que os velhos mijam, lugar em que as crianças pequenas ainda dão pé.

A chuva de dentro quando vem bate na cara e leva o corpo ao chão. A gente deságua, desalma, desaba. Arrastados, mas sobreviventes ao alagamento, talvez possamos conhecer o significado daquilo que alguns chamam por força, outros por fé. E se os olhos transbordarem frente ao espelho, então nos sentiremos vivos. E raros.

Modorra e suor escorrido entre as tetas, chuva pingo grosso vinda no horizonte e calor de trinta e nove. Protegida pela janela do ônibus, temi o céu chumbado que chegava à cidade. Uma massa colossal iniciou-se no alto dos prédios mais distantes e cresceu sem fim na vista. Nuvem. Cumulonimbus. Me lembro de revisar esse conteúdo para alguma prova de Geografia do guri. E quem se importa com nome de nuvem, mãe? Se o tempo feio assustava, eu deixava o ar entrar pelo nariz devagar e profundo. A transpiração excessiva, o barulho de motores, as pessoas-máquina. Necessário seria respirar e inspirar em intervalos longos e pausados, mas a tempestade de dentro do peito já avançava por cima de mim. E era água grande.

O ônibus no engarrafamento e da janela apenas carros carros carros e a formação feia da tormenta que não demoraria a tombar. Uma avenida de muitas pistas entrecortada pelo arroio chamado Dilúvio. E com a tempestade quase caída logo ali, a perspectiva de um derramamento bíblico a castigar a humanidade de Porto Alegre era já fato consumado. Se seria punição ou alívio ao calor de final de janeiro, só quando o vento iniciasse seu gemido se poderia dizer.

Enquanto o rebuliço de raios ao longe tomava o céu e causava agitação no coletivo lotado, um homem espalhava-se com pernas e ombros e me obrigava a escapar de sua presença.

Na fuga, o lado direito do meu corpo de quase noventa quilos fundiu-se à lateral metálica do ônibus. Diminuída das minhas proporções, reduzi-me a pouco mais de dois palmos feito molusco quando tocado contraindo-se em busca do interior da concha. Olhos fechados, inspirar e expirar em ritmo lento como o psiquiatra ensinou.

Com licença, senhor, eu educada poderia ter dito. Ou, quem sabe, utilizado até uma abordagem mais direta impostando a voz até que soasse como gostaria. Mas fingir-se de morta é instinto animal daqueles herdado pelo processo de evolução quando a presa precisa fugir do predador. Chama-se tanatose segundo os livros de biologia. E, pela sobrevivência, a orientação do corpo é apenas retomar as funções vitais quando se percebe que não há mais perigo.

Há anos não dirijo. Em tempos de carro próprio, era impensável estar metida no meio de tanta gente a balançar de maneira sincronizada aos buracos no asfalto. Do ar-condicionado, mãos ao volante, observava homens e mulheres no esforço diário e comovia-me. Consciência social essa esquecida num refrão da rádio fm. Mas a vida mudou, era eu, agora, a criatura de aquário superlotado observada pelos motoristas com caras de banho recém tomado.

Quando terminada a entrevista de emprego, eu sabia já ter perdido a vaga. Talvez por não ser tão bonita como a foto do currículo apresentava ou quem sabe avaliaram minhas roupas sociais desnecessárias à pouca formalidade da startup inovadora e um quanto mais justas do que deveriam no quadril e nos peitos. Podem ter reparado na sudorese exagerada e alguns tremores no canto da boca disfarçados pelas mãos. Logo de início, bom dia, como vai, a recrutadora focou algum ponto sobre a minha testa e ali ficou. Não me olhava, e, durante os vinte e poucos minutos passados, me fez procurar vestígio do ponto invisível como se eu tivesse sujeira presa entre as sobrancelhas e a linha que marca o início dos cabelos. Algum pedaço de comida do café da manhã engolido com pressa ou farelo da minha dignidade profissional deixada de lado nos muitos anos de desemprego como Assistente Social. Poderia até ser cacoete da mulher ou uma daquelas estratégias de recrutamento, armadilhas psicológicas facilmente aplicadas em uma profissional sem o perfil desbravador, curioso, pró-ativo necessário à instituição.

Talvez tenham me dispensado de vez quando viram meu celular com mais de cinco anos de uso e tela rachada. Foi meu filho, sorri em busca de uma leveza simpática ou da cumplicidade que só as mães são capazes de ter entre si. Reparei na anotação muito ligeira feita no computador pela mulher que de início pensei ser recém-saída da adolescência, mas que logo percebi apenas ser frequentadora assídua de academia e usuária de botox.

Da janela do coletivo, Cumulonimbus seguia sua marcha de encontro a Porto Alegre. Já era possível ver sua elevação verticalizada em relação ao céu. Uma torre gigantesca de algodão empilhado que, para as senhoras em discussão no banco da frente, mais parecia um cogumelo. Para mim, era como uma bigorna prestes a desabar da troposfera sobre a cidade, ainda que não soubesse da atividade intensa em seu centro, de suas correntes de vento ascendentes poderosas. Mas, para além dos formatos infantis que aprendemos a dar às nuvens quando somos crianças, a olhávamos com respeito e cautela que só a chegada de uma tempestade pode oferecer.

Se não escapasse do toró na descida da parada, pelo menos a chuva lavaria toda a sujeira misteriosa da minha cabeça e a presença exigente do homem e suas pernas, pelos e cotovelos no banco compartilhado.


Carolina Panta nasceu em Porto Alegre e é professora de Língua Portuguesa e Literatura, formada em Letras pela UFRGS. É editora da revista literária La Loba. Participa como escritora convidada da coletânea de contos escritos por mulheres Quebra-Ventres (Peripécia, 2023). Publicou os romances Dois Nós (Metamorfose, 2019), Olivetti Lettera 32 (Zouk, 2021) e Falso Lago (2023).

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