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Dentrinho: na rua do país

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Dentrinho: na rua do país Foto: Marcelo Soares/Divulgação

Artista publica aqui letras inéditas compostas na pandemia

“Andava de noite numa estrada. Estava cansado e doente. Fiquei olhando para o outro lado do fiorde; o sol estava se pondo; as nuvens estavam vermelhas — como sangue —, senti como se um grito passasse pela natureza. Pensei ter ouvido um grito. Eu pintei essa imagem. Pintei as nuvens como sangue real. As cores estavam gritando.” Depois de ler na Folha de São Paulo esta descrição de Edvard Munch (1863-1944) sobre seu célebre quadro O grito, conforme descrito pelo historiador Arne Kristian Eggum, estudioso da obra do pintor norueguês, compus a canção O grito.

| O GRITO

Vitor Ramil

Eu vinha pela estrada, só

A noite desandava sobre mim

Na ponte me deixei ficar

A ouvir o que me confessava o rio   

Ando cansado e triste

Ando doente de seguir

O rio repetia sempre

As águas choravam sobre si

Ao longe o sol tingia o ar

As nuvens tinham sangue em suas mãos

Os campos retorciam-se

Em pigmentos de dissolução

A natureza gritou

Cores gritantes sobre si

Eu em mim mesmo gritei

Coisas gritantes sobre mim

Na ponte me deixei gritar

A ouvir a natureza sobre mim

Era começo de pandemia. A matéria do jornal contava que a tela de Munch também precisava de distanciamento social, pois a umidade da respiração humana estava deteriorando os amarelos pintados com pigmentos impuros. O distanciamento era então uma novidade, mas o grito de Munch continuava a se fazer ouvir, especialmente por mim e naquela circunstância. 

Começávamos, a Ana e eu, nosso isolamento em casa. Nos próximos meses, eu sairia regularmente para atender as necessidades da minha mãe; veríamos os filhos e a neta muito esporadicamente. Nada muito além disso. Em 2021, ainda dentro de casa, dentro de nós mesmos, eu comporia Dentrinho. Organizamos a casa como se fosse o interior de nós mesmos. O ar sempre se renova e não falta uma sala onde nos alcance o sol. Cada objeto tem algo a nos dizer. Assim temos suportado a distância da família e dos amigos queridos. Assim temos suportado o país doente para lá da Covid-19.

| DENTRINHO

Pra Ana Ruth

Um dia a mais você e eu

Um riso a mais eu e você

Porque

Um beijo a mais você e eu 

Nunca é demais eu e você

Porque a gente quer durar

E durando quer ficar

Bem juntinho 

Dentro de nós mesmos

Somos feitos de nós dois

Se de nós dois saímos por aí

Topamos com um mundo

Feito de nós mesmos

Tão igual a nós

Mundo feito de existir

Mundo feito de sentir-se em si e ir

Um dia a mais você e eu

Um riso a mais eu e você

Porque

Um algo mais você e eu

Nunca é demais eu e você

Porque a gente quer querer

E querendo se encontrar

Bem dentrinho

Junto de nós mesmos

Somos feitos de um lugar

Se do lugar saímos por aí

Topamos com um mundo

Feito de lugares

Tão iguais a nós

Mundo feito de existir

Mundo feito de se ir em se sentir

Um dia a mais você e eu

Um dia a mais eu e você

Porque

Um dia a mais você e eu

Um dia a mais eu e você

Eu e você

Assistindo na televisão a uma notícia sobre mutações do coronavírus compus Mutante, apropriadamente em outro idioma e sobre uma base harmônica em que os acordes soam estranhamente mudados. O próprio compositor, eu mesmo, pareço ter sofrido uma mutação ao compô-la, embora sinta-me, sob aparente austeridade, um mutante desde sempre.

| MUTANTE

Vitor Ramil

Mutaciones

Mudas acciones

Cosa de otro mundo

Los mutantes

Cambian lo de antes

Cosa de un segundo

Lo sé

Lo sé

Y lo sé porque soy mutante

El instante me hizo ver

Era uno no hace mucho

Y ahora ya no sé

No sé

No sé

Y no sé por que soy mutante

El instante me hizo ver

Era otro no hace mucho

Y ahora ya lo sé

Lo sé

No sé

A casa que me abrigou aos quatro anos de idade continua a fazê-lo agora, quando chego aos 59. É a mesma, é outra. Já compus uma canção para seus cupins estáveis. Já escrevi uma novela, Pequod, que transcorre em seus ambientes. Não me canso de estar nela, o que ajuda a enfrentar o isolamento. Seus quartos e corredores fluidos como as escaiolas, suas portas vivas me levaram a escrever Universo verso para a música do compositor e amigo André Ritter, que vive em Nova Iorque. A frase inicial “O universo passa em minha rua” usei ao responder a uma entrevista há muitos anos. Passado e presente, aqui estou.

| UNIVERSO VERSO

André Ritter – Vitor Ramil

O universo passa em minha rua

Já se dando a conhecer

Sem sequer abrir caminho, sem hesitação

O caminho é todo dele

É dele o lado de onde vem

E também pra onde vai

Mas não traz você

Nem me deixa em paz

Automóveis e poeira

Chuvas, risos, aviões

Tudo coisa desse mundo

Só você que não me vem 

Só você que nunca mais

O universo entra em minha casa

Quando quer e quando não

Sem jamais pedir licença, sem explicação

Minha casa é toda dele

É dele a minha solidão

E também o meu amor 

Mas não traz você

Nem me deixa em paz

Esses móveis, esses livros

Plantas, fotos, a TV 

Tudo coisa desse mundo

Só você que não me vem 

Só você que nunca mais

(Universo verso sem você)

De tempos nem tão idos assim, chegaram-me a mãe e o pai. Com ela e sua visão luminosa vieram os primeiros volumes de O mundo da criança, a neve que ri a cada pisada, a melodia encantadora do Flautista de Hamelin. Com o pai e sua visão sombria vieram velhos tangos e a hostilidade do mundo. Mas principalmente ele me deu a motivação para compor Piantao; ele, que pouco falava comigo ou manifestava interesse pelo que me interessava. Um dia, porém, quando eu escutava Bohemian Rhapsody em meu quarto, abriu a porta e comentou: “Muito bom isso”. Nunca esqueci. Então, agora, mais velho do que ele na época da inesperada manifestação e devidamente apartado do mundo lá fora, assisti a um filme ruim sobre o Queen e tive o impulso de compor algo de feitio operístico. A canção não demorou a nascer e a mexer comigo. Mamma mia, para gravá-la vou precisar de um coro de crianças!

| PIANTAO

Vitor Ramil

Mãe

O mundo é tão macio

Há neve no quintal

Eu piso e ela ri

Pai

O mundo é tão hostil

Ya sé que estoy piantao

No afano, soy un gil

Mãe

A flauta me atraiu

Já não vou mais voltar

Pai

El último cafe

Crepúsculo interior

Então se foi

Tocado pelo vento

Encantador

Un soplo adentro de su corazón

Percorreu caminhos sem lei

Fez a própria lei pra burlar

Conheceu lugares distantes

Da distância fez seu próprio lugar

Mas também se fechou

Quarto vazio

Quarto de se perder

A neve lá no quintal

Mundo hostil

Un hombre piantao

Que ri

Pobre, rico

Pobre, rico

Rico

O sol bonzinho

Sai pra me ver

No tengo fe

Ni yerba de ayer

Adeus, Mani

Eu também me vou

Adiós, muchachos

No resisto más

Adeus, adiós

Minha mãe, que vem atravessando incólume a pandemia na zona de risco dos seus 95 anos, continua a fazer, agora eu sei, o que mais gosta: cantar. Ela e o pai, mas talvez principalmente ela, pôs todo mundo para cantar em nossa casa. Quase todos os dias cantamos juntos. Se não estou, ela canta sozinha. Às vezes esquece meu nome, mas as letras das canções raramente lhe escapam. No dia do seu aniversário, 24 de maio, mesmo dia do Bob Dylan, dei a ela de presente uma canção, Só cantar, que compus pensando no clima de música e criatividade que ela e o pai criaram para nós. Cantamos juntos para ela, minhas irmãs, meus irmãos e eu. Som e gente somos nós.

| SÓ CANTAR

Vitor Ramil

Pra Dalva

Vamos só cantar

Como sempre

Nossa casa é nossa voz

Nosso modo de viver

Levemente

Som e gente somos nós

Um acordeom

Um ar de violões

Um violino

E vamos nós

É doce viver

Nas ondas do lar

A nossa casa é nossa voz

Quando um canta

Outro canta

Todos cantam

Por cantar

Um acordeom

Um ar de violões

Um violino

E vamos nós

É doce viver

Nas ondas do lar

A nossa casa é nossa voz

Mas nossa casa não é só música. Nela descobrimos, entre outras coisas, o prazer dos livros e o gosto por escrever. O que mais tenho feito na pandemia é ler. Muita notícia, jornais, incontornáveis no período. Mas também ensaios, história, poesia. A partir de um livro que adoro e que sempre me mira da lateral da estante do corredor, Álvaro de Campos – Livro de versos, organizado por Teresa Rita Lopes, compus Saudação a Walt Whitman, uma espécie de resumo, ditado por uma melodia, das 20 páginas do poema-constelação homônimo inconcluso. Musiquei Fernando Pessoa pela primeira vez aos 19 anos, Noite de São João. Esta é apenas a segunda vez. A diferença é que agora experimentei o experimento do poeta e provei da liberdade de seu homenageado ao viajar na (des)estrutura do poema e jogar com suas palavras. 

| SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

Vitor Ramil

a partir de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa 

De mãos dadas cá estamos

Eu e tu

Sinto tudo como tu

Sentiste tudo

Quantas vezes beijo

Beijo o teu retrato

Sentes isso onde estás

Lá onde é Deus

Velho Walt

Meu grande camarada

Evohé!

Sensações-em-liberdade

Sou dos teus

Não sou amigo, 

Não sou teu cantor

Olha bem pra mim

Tu sabes o que sou

Engenheiro e poeta

Podes ver

Sensacionista

Sei que estás feliz

Eu sou tu, eu sou tu

Eu sou tu, eu sou tu

Abram-se as portas

Que hei de passar

Passo sem explicações

Eu sou Deus!

Que nenhum filho da puta

Se atravesse

Pelo infinito eu vou

Até o fim

Que vontade de ganir e de saltar

De urrar, zurrar

Nas rodas me meter

Ser esmagado

Só pra te saudar

Ó moderno e eterno

Walt

Vem dançar

Esbarrar nos astros

Juntos

Vamos lá

Por tudo, em tudo

Walt

Vem dançar, vem dançar 

Vem dançar, vem dançar

Esse tempo todo as palavras só têm me faltado quando é inevitável sair. Se no abrigo da casa a existência pesa, o que dizer das pessoas que encontro na rua, vagando sem máscara, comendo no lixo, dormindo nas calçadas? “Na rua do país, de certa forma, estamos todos. Aqui, estamos aquém de nós”, foi o que pensei outro dia, ao voltar pra casa. Então compus Eu me recuso.

| EU ME RECUSO

Vitor Ramil

Eu já não sinto fome

Não me chamem pra comer

Eu já não tenho sono

Não me aqueçam pra dormir

Eu não quero conversar

Não me venham distrair

Eu preciso me focar no chão

Tô na rua do país

Fui jogado sem sentir

Quando vi já tava assim

Sendo parte do descarte

Eu me recuso

A viver aqui

Aquém de mim

Aqui

(Era um homem bom

Tinha o meu lugar

Cidadão pra lá do bem

E do mal

Era só viver

Se deixar levar

Cada dia 

Um novo dia)

Não joguem mais moedas

Me recuso a juntar

Não falem do futuro

Me recuso a durar

Me recuso

(Eu tô focado no chão

Não me venham distrair)

A viver aqui

Aquém de mim

(Eu tô focado no chão 

Não me venham distrair)

Aqui

Vitor Hugo Alves Ramil, mais conhecido como Vitor Ramil, é compositor, cantor e escritor de Pelotas. Começou sua carreira nos anos 80. Na música, lançou onze álbuns. É autor dos livros Pequod (1995), A Estética do Frio (2004), Satolep (2008) e A primavera da pontuação (2014).

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