Crônica | Parêntese

José Falero: Caminho das letras

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José Falero: Caminho das letras Minha irmã foi a primeira pessoa a me mostrar que a leitura não era um jogo de adivinhação. Sempre que a gente andava pela rua, de mãos dadas, ela apontava pra alguma placa e dizia: — E ali? O que tá escrito ali? Consigo lembrar do tipo de raciocínio que eu fazia, nesses tempos remotos. Eu achava que devia dar um palpite; olhar pro desenho das letras e tentar imaginar algo criativo; era isso que eu achava que era a leitura. — “Céu azul”? — Não! Ali tá escrito “sapateiro”. Nessa mesma época, eu costumava jogar pife com a minha finada vó, quando ela ia nos visitar. E eu sabia que, em algum momento do jogo, eu deveria baixar as cartas e dizer “bati!”, porque era o que eu via os mais velhos fazendo. Então, eu esperava; ia comprando e descartando, comprando e descartando, até o momento em que, tentando pegar a minha vó de surpresa, eu simplesmente baixava as cartas de repente e anunciava a batida, sem nem mesmo saber o que cada carta significava. Ela sempre balançava a cabeça e dizia assim: — Tá bom! Ai, que guri pentelho! Me ganhou de novo! Vó é vó. Por causa do carinho infinito da minha vó, eu levaria anos pra realmente aprender a jogar pife. Mas o real aprendizado da leitura veio ligeiro, graças à falta de dó com que a minha irmã revelava o meu desconhecimento do significado das letras. Não que ela não me amasse. Sempre fomos muito ligados; mais do que a maioria dos irmãos. Acontece que a minha irmã é só 4 anos mais velha do que eu; naquela época, portanto, ela própria também era criança e não tinha ainda a capacidade sutil de fingir que eu tava certo só pra evitar me magoar; além disso, ela própria devia ter aprendido a ler pouco tempo antes, e acho que brincar de ler coisas comigo era uma forma de ela mesma praticar. O fato é que eu comecei a perceber uma coisa estranha, e ao mesmo tempo fascinante, sobre a vida: havia coisas que eu entendia como funcionavam, e havia coisas que eu não entendia como funcionavam. O pife, por exemplo, eu pensava que já entendia como funcionava, porque minha vó legitimava as minhas batidas; mas o funcionamento da leitura era um mistério pra mim, porque, segundo a minha irmã, os meus palpites nunca tavam certos. Fui perguntar pra minha mãe como se fazia pra ler as coisas. E a minha mãe, então, começou a me ensinar, sempre de noite, depois que voltava das faxinas. Eu aprendi rápido. Crianças aprendem rápido. Logo eu tava lendo tudo o que eu via por aí, e também escrevendo coisas em cada pedaço de papel que eu achava. Aí, veio o mistério insolúvel do “G” e do “J”. Eu aprendi como eles funcionavam; conseguia ler e escrever coisas tanto com “G” como com “J”. O problema é que, naquela idade, muitos e muitos anos antes de eu vir a conhecer a […]

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Minha irmã foi a primeira pessoa a me mostrar que a leitura não era um jogo de adivinhação. Sempre que a gente andava pela rua, de mãos dadas, ela apontava pra alguma placa e dizia: — E ali? O que tá escrito ali? Consigo lembrar do tipo de raciocínio que eu fazia, nesses tempos remotos. Eu achava que devia dar um palpite; olhar pro desenho das letras e tentar imaginar algo criativo; era isso que eu achava que era a leitura. — “Céu azul”? — Não! Ali tá escrito “sapateiro”. Nessa mesma época, eu costumava jogar pife com a minha finada vó, quando ela ia nos visitar. E eu sabia que, em algum momento do jogo, eu deveria baixar as cartas e dizer “bati!”, porque era o que eu via os mais velhos fazendo. Então, eu esperava; ia comprando e descartando, comprando e descartando, até o momento em que, tentando pegar a minha vó de surpresa, eu simplesmente baixava as cartas de repente e anunciava a batida, sem nem mesmo saber o que cada carta significava. Ela sempre balançava a cabeça e dizia assim: — Tá bom! Ai, que guri pentelho! Me ganhou de novo! Vó é vó. Por causa do carinho infinito da minha vó, eu levaria anos pra realmente aprender a jogar pife. Mas o real aprendizado da leitura veio ligeiro, graças à falta de dó com que a minha irmã revelava o meu desconhecimento do significado das letras. Não que ela não me amasse. Sempre fomos muito ligados; mais do que a maioria dos irmãos. Acontece que a minha irmã é só 4 anos mais velha do que eu; naquela época, portanto, ela própria também era criança e não tinha ainda a capacidade sutil de fingir que eu tava certo só pra evitar me magoar; além disso, ela própria devia ter aprendido a ler pouco tempo antes, e acho que brincar de ler coisas comigo era uma forma de ela mesma praticar. O fato é que eu comecei a perceber uma coisa estranha, e ao mesmo tempo fascinante, sobre a vida: havia coisas que eu entendia como funcionavam, e havia coisas que eu não entendia como funcionavam. O pife, por exemplo, eu pensava que já entendia como funcionava, porque minha vó legitimava as minhas batidas; mas o funcionamento da leitura era um mistério pra mim, porque, segundo a minha irmã, os meus palpites nunca tavam certos. Fui perguntar pra minha mãe como se fazia pra ler as coisas. E a minha mãe, então, começou a me ensinar, sempre de noite, depois que voltava das faxinas. Eu aprendi rápido. Crianças aprendem rápido. Logo eu tava lendo tudo o que eu via por aí, e também escrevendo coisas em cada pedaço de papel que eu achava. Aí, veio o mistério insolúvel do “G” e do “J”. Eu aprendi como eles funcionavam; conseguia ler e escrever coisas tanto com “G” como com “J”. O problema é que, naquela idade, muitos e muitos anos antes de eu vir a conhecer a […]

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