Crônica | Parêntese

José Falero: Homem ou Rato?

Change Size Text
José Falero: Homem ou Rato?

Para mim, dormir nunca foi uma coisa fácil. Acordar, muito menos. E os tormentos que tarde da noite me dificultam o fechamento dos olhos são os mesmos que de manhã bem cedo quase me impossibilitam de abri-los.

No N.A., me ensinaram uma coisa importante: um dia de cada vez. É lugar-comum, eu sei. Mas funciona. Funciona de verdade. Um dia de cada vez, cada dia como se fosse o último. Faz de conta que é só hoje. Tenho adotado essa tática para suportar não só a abstinência, mas também o passar dos dias, as frustrações, as injustiças, a própria vida. Um dia de cada vez, e assim vai ficando mais fácil engolir a existência neste mundo sombrio.

Na verdade, já deixou de ser “um dia de cada vez”. Afinal, como todo remédio, também essa tática para de fazer efeito aos poucos e, em algum momento, torna-se necessário um aumento na dosagem. Há algum tempo, passei de “um dia de cada vez” para “um turno de cada vez”: primeiro a manhã, depois a tarde e por fim a noite. Então, quando isso também parou de funcionar, tive que progredir para “uma hora de cada vez”. Hoje em dia, já estou na esfera dos minutos.

Café é fundamental. Não faço planos a longo prazo, porque já me cansei de ver tudo dar errado sempre. Meus planos, então, são sempre minúsculos e singelos: assim aumento a minha probabilidade de ser bem-sucedido. Quando decido sair da cama, por exemplo, a única coisa que tenho em mente é tomar um café: é o meu único plano, é a minha única esperança, é a minha única ambição, é o meu único objetivo. Se não fosse o café, possivelmente eu nunca sairia da cama. E depois do café, normalmente é tudo na base do “seja o que Deus quiser”. Depois do café, vou só no embalo. Depois do café, a cada minuto que passa tenho que bolar um novo plano, sempre minúsculo, sempre singelo.

Levantei e botei a água no fogo. Pouca água, só para uma xícara, porque o café é solúvel. Até prefiro café passado, mas o ato de passar café já é um plano grandioso demais para mim. Enquanto o fogão fazia seu trabalho, fui ao banheiro.

Existem algumas coisas com as quais aprendi a lidar. O vazamento da pia do banheiro é uma delas. Lá atrás, há um gotejar insistente. Não importa o quanto se aperte a bendita rosca da mangueira, não importa a quantidade de veda-rosca que se ponha ali: a água insiste em vazar, os pingos insistem em cair. Um balde foi a solução. Deixo sempre um balde ali atrás. A água pinga dentro dele. Toda manhã, só o que tenho que fazer é despejar o balde e tornar a colocá-lo no mesmo lugar. Mas houve uma surpresa, desta vez.

Eu percebo que as pessoas que veem algum valor na sensibilidade tendem a se tornar cada vez mais sensíveis. Não é uma empreitada fácil, essa evolução (digo por experiência própria). Um dos momentos mais difíceis na vida de quem aposta na sensibilidade é o momento de decidir importar-se ou não em parecer louco. Em outras palavras, num dado momento a pessoa observa diante de si uma verdade, e tem a opção de abraçá-la ou não: abraçá-la significa abrir mão de ser considerado mentalmente são no âmbito do senso comum. Quanto a isso, de minha parte, me decidi pela lei do menor esforço. Fingir dá muito trabalho. Preferi ser honesto comigo mesmo, mais por preguiça do que por qualquer outra coisa. Querem pensar que sou louco? Pois que pensem! Não vou mover uma palha para provar o contrário. E é justamente esse tipo de postura que me permite contar uma história como esta.

Havia um rato dentro do balde.

Como toda manhã, também nesta o balde estava pela metade de água. Um balde meio vazio. O rato tinha caído ali dentro, e encontrava-se numa situação difícil: não podia se deixar afundar, pois morreria afogado, mas não tinha como alcançar a borda do balde para poder sair dali. Só lhe restava boiar, até que se esgotassem suas energias. E ele boiava. Boiava bravamente! Mexia as patinhas, para não se deixar afundar. Há quanto tempo já estava fazendo aquilo? Os ratos, pelo menos os da minha casa, são bastante espertos: só perambulam pelos cômodos no meio da noite; nunca à luz do dia. E agora já eram 9 da manhã. Isso me permitiu concluir que, na melhor das hipóteses, o pobrezinho devia estar se esforçando para não se deixar afundar há 3 horas, desde as 6 da manhã, que é quando a claridade toma conta da casa, nesta época do ano.

Quando fui pegar o balde para despejar a água e percebi o bicho ali, ele também me viu e se assustou. Nadou em desespero para o outro extremo do balde. Atravessou debalde o balde: se fosse minha vontade aniquilá-lo, seria a coisa mais fácil do mundo. Mas, para a sorte dele, não me importo de parecer um louco, e assim me encontro um tanto avançado no caminho da sensibilidade progressiva. Pude ver naquela criatura a mim mesmo. Vi claramente. Vi naquele rato o mesmo esforço inútil que o meu. O esforço dele para boiar e boiar, até que não houvesse mais energias e por fim viesse o afogo inevitável, esse esforço era idêntico ao meu. Eu não era melhor do que aquele rato, e foi isso o que percebi, naquele momento. Sei bem que a minha ida diária ao trabalho não fará mais por mim do que livrar-me da morte por fome, para que eu possa continuar trabalhando; em outras palavras, a única razão do meu trabalho é o meu trabalho; o meu trabalho serve ao meu trabalho; do meu trabalho, vem a pequena dose de energia para que eu possa continuar trabalhando, e nisso se resume a minha vida; não há qualquer lazer, nem qualquer perspectiva de mudança. E o rato se esforçando para não se deixar afundar na água do balde estava no mesmo barco que eu.

Decidi fazer por ele o que jamais será feito por mim: retire-o da água, com cuidado, para não machucá-lo. Libertei-o do trabalho sem fim. Naquele instante, falei o mesmo idioma do rato. Eu disse: “Vai, tu tá livre!”. E imaginei que ele iria. Imaginei que fosse sair correndo para trás da sapateira. Mas não. O bicho já não tinha mais forças. Acho que o desespero ao me ver, quando ele nadou para o outro extremo do balde, acho que aquilo esgotou as últimas energias dele. Uma vez liberto, tudo o que fez foi dar alguns passos, e então tombou, de ladinho, sem forças para fugir de mim, o gigante que (por que ele pensaria diferente?) estava prestes a esmagá-lo.

É curioso ver de perto um rato assustado. As semelhanças com a nossa espécie são muitas. O rato assustado também arregala os olhos; o rato assustado também fica ofegante. E ali, caído de ladinho, sem forças para mais nada, tudo o que o rato fazia era isso: ficava me olhando com os olhos arregalados, respirando ofegante, esperando que eu lhe fizesse o pior.

Naquele instante, bolei um dos meus planos minúsculos e singelos, os quais dão sentido à minha vida: planejei cuidar daquele rato. Em primeiro lugar, catei uma toalha limpa, para poder secá-lo. Estendi essa toalha no chão do banheiro. A minha ideia era colocar o bicho ali em cima e então puxar uma das pontas da toalha, para esfregar seu corpo todo ensopado. Mas não é fácil se comunicar com um rato. Não é fácil fazê-lo entender que a gente quer ajudar. Ele não acredita. E se há pouco falei no idioma dele, desta vez foi ele quem se expressou no meu. Quando eu aproximei a mão para pegá-lo, ele soltou um grunhido desesperado, que pude compreender muito bem: “Socorro!”. Afastei a mão na mesma hora.

Tive que ir à cozinha desligar o fogão, porque a água já estava fervendo. Depois voltei ao meu amiguinho. Desta vez, adotei uma estratégia contrária: em vez de colocá-lo na toalha, puxei a toalha para perto dele, e então comecei a secar-lhe os pelos. Ele não tornou a grunhir, mas notei que ficou mais ofegante do que nunca e arregalou ainda mais os olhos.

Aos poucos o bicho foi se acostumando. Conforme eu passava a toalha nele, de leve, ele foi respirando mais devagar, foi desarregalando os olhos, foi relaxando. Acredito que em algum momento ele passou a considerar o meu ato uma massagem, porque chegou a fechar os olhos, respirando tranquilo. Se eu parava, ele abria os olhos; quando eu tornava a passar a toalha nele, ele tornava a fechá-los.

Mas houve um momento em que os olhos dele não se abriram mais. Eu cutuquei ele, mas não adiantou: nem a isso ele respondeu. Reparei, também, que ele tinha parado de respirar. Foi a minha vez de arregalar os olhos e ficar ofegante. Não havia mais o que eu pudesse fazer. O rato estava morto. Aceitei esse fato. Não era o primeiro fato duro que eu aceitava na vida. O rato estava morto, como também eu estarei um dia.

Chorei muito, enquanto o enterrava no quintal. Olhei para o céu, em busca de amparo. Não encontrei amparo nenhum. Não há um gigante disposto a me tirar do meu próprio balde.

“Tu é um homem ou tu é um rato, guri?”, o meu finado pai costumava me perguntar, quando eu era pequeno. Eu gostaria que ele estivesse vivo agora, para poder retrucar da maneira mais adequada: “Em muitos casos, meu pai, o verdadeiro conhecimento consiste justamente em não saber a resposta para a pergunta”.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Figura de Linguagem, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.